segunda-feira, 31 de março de 2014

Sobre poços, sucos e formigas



Eram recreios cinzentos de correrias alheias, vozezinhas pelos corredores, pátios, quadras. Ela saía da sala de aula devagar, quem sabe tentando ficar, evitar a vista da alegria fria que não convidava, a festança que não abria sua rodas, sua músicas. A professora passava e sorria, às vezes condescendente, às vezes com indisfarçável piedade.

Ela sentava gorducha num dos andares gelados, atrás de um vaso enorme de onde cresciam miniárvores. Queria encolher e sumir doída na argamassa da parede, mas sempre o corpão grande demais, os cabelos num devaneio insolúvel, e elas tantas passando minúsculas, saltitantes, a lisura dourada dos fios cintilantes de sol, Nós-quatro-eu-com-ela-eu-sem-ela-nós-por-cima-nós-por-baixo-nós-quatro-eu-com-ela-nós-quatro-eu-com-ela-eu-com-ela.

Um dia a professora perguntou por que ela estava sozinha. O importante era demonstrar de pronto que era apenas uma opção, evitar a todo custo as comoções desastrosas dos cuidados pedagógicos. Era prioritário que se impedisse um discurso na sala de aula, a professora segurando a mão dela e lembrando a todos que não se devem excluir coleguinhas só pela aparência, ou pelo tamanho.

Aqueles recreios intermináveis com bisnaguinhas esmagadas no papel alumínio, o suco, o bolo, o Yakult, e a fome que continuava. A vontade traidora de comprar churros na cantina, todo o dia a resistência, a contagem dos minutos até o sinal da aula, até que não desse tempo de aumentar a barreira entre ela e o mundo com mais centenas de calorias.

Em algum canto fundo ela sentia que era melhor, que estava além de tudo aquilo, dos pisões, empurrões, das zombarias. As histórias engraçadas que escrevia, as professoras numa adulação sem fim. A Lua que a ouvia atenciosa e exclusiva. Mas era importante esconder o que não prestava, e o que não prestava era grande demais pra caber em qualquer discrição.

A educação física trazia o couro cruel das boladas diretas na cabeça, no estômago, impossível desviar da agilidade das princesinhas, dos meninos tão pequenos gritando-lhe o sobrenome – que terminava em ÃO – e então atirando humilhantemente a bola fatal, Queimou-queimou-queimou! Uma vez na sala de aula furou sem querer a palma da mão com um lápis, o sangue correndo rápido, a pele subindo, mas esperou silenciosa o seu número na chamada para gritar presente e só então andar desajeitada até a frente – era obrigada a se sentar na última cadeira e permitir a visão dos normais – chorando e pedindo para ir à enfermaria.

Quando vazou a garrafinha de suco, não quis atrapalhar a aula, passou horas preocupada em reter o líquido com a régua, um rodo sem ralo e sem pano puxando o melaço para baixo da cadeira, até que os alunos reclamaram de suas bolsas molhadas e a bronca veio em dobro. Sempre ela atrapalhando, sujando, sempre a gorda trazendo comidas impróprias na escola. Muito antes disso, aos dois anos, foi pela primeira e única vez encaminhada à diretora, por ter espontânea e barbaramente espancado um minúsculo menino que a caçoara demais quando derrubou o guaraná inteiro na mesa de aniversário de alguém. Sempre o comprido dos braços, o exagero do quadril esbarrando na fragilidade dos líquidos tão talentosamente contidos pelos normais.

Para diminuir psicologicamente o tamanho, buscava o ridículo nos adereços dos Bananas de Pijama, na mochila da Barbie. Lamentava não caberem nos pés os tênis de velcro do ursinho Puff – desde os oito anos calçava 38-39, e logo veio o sutiã. Logo virou a Louca, a Mongol, a Nenezão, até que começou a sentir gosto pela humilhação, pois era assim que recebia mais e mais atenção. Passou a trazer presentes das lojinhas de 1 dólar, que distribuía aleatoriamente – com algumas preferências – na entrada da sala. Começou a ter amigos, depois uma amiga de verdade, também gigante, mas que não tinha qualquer problema com isso. O seu grande amor – amou-o chorosa por quatro anos, desde os oito anos – finalmente segredou-lhe que ela não era bonita, mas “dava as coisas”, era boa. Era boa.

Hoje não sei dessa menina, mas tudo dela resiste imbatível em mim. Tenho sonhado com formigas – o que parece indicar solidão. Tenho tido recreios solitários de mil vozes contentes, mas os professores já não se preocupam com a minha inabilidade em abordar os outros. Tenho pedido carinho demais e recebido infinitamente menos, e tenho concluído o revés do que pensava a menina gorducha: as pessoas que se bastam não são incrivelmente suficientes e interessantes, elas têm na verdade muito pouco a trocar com os outros.

A menina sozinha era um poço de amor acumulando num canto, um poço doendo profundo de devoção, uma entrega completa esquecida na água parada daquela solidão incompreensível. A menina sozinha ainda é esse poço, mas cada vez mais turbulento de tanta pedra, tanto gelo, tanta gente que buliu aqui e sumiu no vazio dos seus egos secos. Eu e a menina somos líquido quente, doce. Líquido que vaza vexaminoso das garrafinhas, copos, latinhas, que transborda exagerado de cada abraço, que não cabe mesmo na imensidão de mim.

2 comentários:

lucas fábio disse...

ah, minha linda. tanta saudade de quando eu vinha sempre aqui. somos tão parecidos... só não seria capaz de descrever tão bonito minha infância e adolescência solitárias. volta a escrever todo dia, volta. é tão rápido pra você...

Anônimo disse...

Eu nunca me esquecerei da Renata Yamamoto.Era uma japonesinha, de óculos que transformavam seus olhinhos fechados em verdadeiros holofotes.A turma a ridicularizava de todas as formas possíveis e imagináveis.Eu tentava protegê-la, em vão...Mais fácil defender alguém de um tiroteio do que da perversidade das criancinhas que, invariavelmente, refletem a podridão e o vazio de seus pais...(Renato Rasera)