Zíper
Desde pequena ela puxa o zíper com essa força, quero continuar dormindo, não abro os olhos mas o zíper da primeira bota sobe de repente num rasgar agudo no meio da noite. Se eu abrir o olho vou ver a janela e as luzes intermitentes da rua que por algum motivo atingem um padrão, de quarenta em quarenta segundos o farol de um carro passa um feixe de luz pelo teto do quarto como um laser rastreando o ambiente, se eu me movimento quem sabe um alarme e o laser louco pelo quarto em redemoinhos de luzes e sirenes. Mas não abro o olho, a Amanda diz que tudo isso é parte da minha doença. Chama de doença, com um risinho charmoso no canto do lábio, e depois me abraça como se nada tivesse a menor importância.
Agora deve estar descalça de um pé, procurando o outro embaixo da cama, ou buscando uma meia para o pé descalço. Pelo silêncio, deve estar passando o batom, porque parou a respiração. Ou o rímel, no rímel também pára de respirar. Se eu abrisse o olho veria o rastro da luz da rua passar pelos cabelos enormes da Amanda e veria por um instante a poeira sobre ela, sobre os móveis. Não abro o olho e ouço as escovadas brutais que ela dá sem medo de arrancar os fios, eu sei que tira tudo da escova numa maçaroca preta e joga no lixo ao lado do vaso. Fica um montículo cabeludo sobre os papéis higiênicos parecendo uma vagina abandonada há séculos no banheiro.
Quando cresceram os pêlos ela andava pelo quarto nua como se procurasse uma calcinha mas era pra mim que ela andava, eu fingia que lia a revista mas de repente ela perguntava se o sutiã estava bom. Só o sutiã, nenhuma calcinha, e a agressividade da Amanda entre as luzes dos carros na rua ritmicamente passando o radar para detectar o menor movimento, a agressividade daqueles pêlos no meio da minha infância tão lenta.
Termina as escovadas bruscas e a outra bota de repente zíper na fúria dos zíperes de Amanda, por que tanto zíper e tanta força, no meio da noite o rasgo metálico, daqui a pouco é a minissaia que também zíper e a jaqueta zíper e a bolsa zíper e depois vai me olhar. Vai me olhar e se eu abrir os olhos vai fazer um sinal de silêncio que é um "zíper na boca", dizia isso toda a vez que me contava um segredo, sempre um segredo horrível que eu guardava com medo do zíper que eu talvez tivesse nos lábios.
Eu com medo das sombras dos abajures e a Amanda contando histórias de terror com a cara enorme no foco da lanterna, eu apertava os olhos na fronha molhada e fedida de baba choro e leite, eu gritava Pára, Amanda e ela ria com a luz da lanterna alaranjando as cavidades da boca e saindo em raios por entre os dentes. Agora não conta histórias mas ficam esses zíperes me impedindo o sono, a luz vacilante do abajur verde na penteadeira fazendo sombras, mil sombras nas paredes, no teto.
Deve estar contando o dinheiro na carteira e se eu abrir o olho vai me perguntar se está bonita. Eu vou dizer que parece uma prostituta, e ela vai rir e responder que então está muito bonita. Depois vai sentar na minha cama com todo o barulho dos couros e o perfume alcoólico que espirra inclusive nos cabelos. Vai sentar e vai me beijar a bochecha e me chamar de picurrucha mesmo eu já sendo tão grande, já sou grande, Amanda, não sou? E eu vou sentir o batom grudar devagarinho no meu rosto e depois no meu sono manchar o travesseiro e de manhã ainda a marca rosa do beijo aparecendo no espelho. Depois talvez pergunte se amanhã quero ir ao parque, vai fazer mil planos bem baixinho no meu ouvido, vai falar do parque e do shopping mas eu sei que só vai voltar na segunda-feira com olheiras e zíperes arrebentados. Vai me fazer um carinho no cabelo suado e balançar a cabeça com pena, morre de pena de mim. Depois vai sair bem silenciosa como se de repente, depois de tantos zíperes rasgando o meu sono, não pudesse fazer nenhum ruído. Então me faria um aceno e fecharia a porta lentamente, até sentir o clique discreto da maçaneta.
Mas eu não vou abrir o olho, nunca abro o olho. Termina de contar o dinheiro e eu ouço o barulho dos couros, das chaves, e o clique discreto da maçaneta.
Desde pequena ela puxa o zíper com essa força, quero continuar dormindo, não abro os olhos mas o zíper da primeira bota sobe de repente num rasgar agudo no meio da noite. Se eu abrir o olho vou ver a janela e as luzes intermitentes da rua que por algum motivo atingem um padrão, de quarenta em quarenta segundos o farol de um carro passa um feixe de luz pelo teto do quarto como um laser rastreando o ambiente, se eu me movimento quem sabe um alarme e o laser louco pelo quarto em redemoinhos de luzes e sirenes. Mas não abro o olho, a Amanda diz que tudo isso é parte da minha doença. Chama de doença, com um risinho charmoso no canto do lábio, e depois me abraça como se nada tivesse a menor importância.
Agora deve estar descalça de um pé, procurando o outro embaixo da cama, ou buscando uma meia para o pé descalço. Pelo silêncio, deve estar passando o batom, porque parou a respiração. Ou o rímel, no rímel também pára de respirar. Se eu abrisse o olho veria o rastro da luz da rua passar pelos cabelos enormes da Amanda e veria por um instante a poeira sobre ela, sobre os móveis. Não abro o olho e ouço as escovadas brutais que ela dá sem medo de arrancar os fios, eu sei que tira tudo da escova numa maçaroca preta e joga no lixo ao lado do vaso. Fica um montículo cabeludo sobre os papéis higiênicos parecendo uma vagina abandonada há séculos no banheiro.
Quando cresceram os pêlos ela andava pelo quarto nua como se procurasse uma calcinha mas era pra mim que ela andava, eu fingia que lia a revista mas de repente ela perguntava se o sutiã estava bom. Só o sutiã, nenhuma calcinha, e a agressividade da Amanda entre as luzes dos carros na rua ritmicamente passando o radar para detectar o menor movimento, a agressividade daqueles pêlos no meio da minha infância tão lenta.
Termina as escovadas bruscas e a outra bota de repente zíper na fúria dos zíperes de Amanda, por que tanto zíper e tanta força, no meio da noite o rasgo metálico, daqui a pouco é a minissaia que também zíper e a jaqueta zíper e a bolsa zíper e depois vai me olhar. Vai me olhar e se eu abrir os olhos vai fazer um sinal de silêncio que é um "zíper na boca", dizia isso toda a vez que me contava um segredo, sempre um segredo horrível que eu guardava com medo do zíper que eu talvez tivesse nos lábios.
Eu com medo das sombras dos abajures e a Amanda contando histórias de terror com a cara enorme no foco da lanterna, eu apertava os olhos na fronha molhada e fedida de baba choro e leite, eu gritava Pára, Amanda e ela ria com a luz da lanterna alaranjando as cavidades da boca e saindo em raios por entre os dentes. Agora não conta histórias mas ficam esses zíperes me impedindo o sono, a luz vacilante do abajur verde na penteadeira fazendo sombras, mil sombras nas paredes, no teto.
Deve estar contando o dinheiro na carteira e se eu abrir o olho vai me perguntar se está bonita. Eu vou dizer que parece uma prostituta, e ela vai rir e responder que então está muito bonita. Depois vai sentar na minha cama com todo o barulho dos couros e o perfume alcoólico que espirra inclusive nos cabelos. Vai sentar e vai me beijar a bochecha e me chamar de picurrucha mesmo eu já sendo tão grande, já sou grande, Amanda, não sou? E eu vou sentir o batom grudar devagarinho no meu rosto e depois no meu sono manchar o travesseiro e de manhã ainda a marca rosa do beijo aparecendo no espelho. Depois talvez pergunte se amanhã quero ir ao parque, vai fazer mil planos bem baixinho no meu ouvido, vai falar do parque e do shopping mas eu sei que só vai voltar na segunda-feira com olheiras e zíperes arrebentados. Vai me fazer um carinho no cabelo suado e balançar a cabeça com pena, morre de pena de mim. Depois vai sair bem silenciosa como se de repente, depois de tantos zíperes rasgando o meu sono, não pudesse fazer nenhum ruído. Então me faria um aceno e fecharia a porta lentamente, até sentir o clique discreto da maçaneta.
Mas eu não vou abrir o olho, nunca abro o olho. Termina de contar o dinheiro e eu ouço o barulho dos couros, das chaves, e o clique discreto da maçaneta.
5 comentários:
Lindo esse texto, amor! E tão sexy...
As duas são você?
Também gostei...
E, como os textos às vezes são tristinhos, pelo menos "perhappiness" já revela um fiozinho de esperança.
Beijíssimo!
Sérgio
Valeu! Qual sérgio? meu tio?
Adorei o texto, ma... lembrei de quando eu aprendia a tirar o sutia com uma mao hahahah
beijao
aprendia a tirar o sutiã com as duas mãos! hahaha e o modelo era o bisonho, antes que pensem que estamos revelando intimidades! hahaha
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