terça-feira, 29 de julho de 2014

Sobre as nossas delicadezas II


Existe um telefone celular e ele é doentiamente um companheiro, na mão, no bolso, bolsa, roupa, metrô, ele é um companheiro quase maníaco guardando suas fotos, músicas, confissões, estabelecendo os mais ansiosos e desesperados contatos, e esse aparelho de tempos em tempos, de tão solicitado, cai desastradamente no chão, mas sempre fica tudo bem.
Ele cai, às vezes solta a tampa de trás, a bateria escapa para lugares insondáveis e você fica tateando o asfalto como quem procura a vida de um grande amigo temporariamente inconsciente depois de uma queda. Você encontra, e então ele está de volta, pronto para a próxima queda, já ativo no desespero da próxima comunicação – atrasos, saudades, trânsito, dúvidas, súbitas incompatibilidades de gênios.
Só que daí um dia, na centésima queda da altura da sua mão – nem é a pior das quedas, é na verdade uma quedinha de nada, perto das tantas outras, um esbarrão à toa, um deslize, nem mesmo cuspiu a bateria --, e quando ele se ergue do chão vem o espanto diante de uma tela multifragmentada e áspera que enfim não deve mais responder aos seus insistentes toques. E você olha a tela desproporcionalmente estraçalhada e pensa que ela foi ingrata, mimada, porque isso não precisava ocorrer justo hoje, com essa queda, se ela resistiu a coisas tão piores, e de repente a ruptura parece um capricho, uma vaidade, justo num dia como esse.
Mas daí olhando pro seu telefone bem no fundo dos mil vidrinhos doloridos, você percebe que na verdade ele resistiu mais do que devia. E que muita coisa e muita gente resiste mais do que devia, tanta queda, chute, golpe, atropelo, e a tela intacta e leal mantendo os anseios das suas comunicações, até que um dia não tinha mais forças, e era bom que esse dia chegasse, porque não está certo ser derrubado displicentemente assim tantas vezes, e chega uma hora que se não quebra fica a dúvida de como serão as próximas quedas, o que é um jeito terrível de se viver.
E você fica aí parado, no meio da calçada, olhando para o telefone celular com a tela gratuitamente espatifada esperando que com isso ele te ensine alguma coisa, nem que seja a quebrar de vez em quando, e bem antes da centésima queda, pra que alguém fique te olhando assim do jeitinho que você está fazendo, quase se arrependendo e já louco de saudade, porque não é saudável ficar durando assim quando te jogam tanto, chega a parecer que você pode cair, e cuspir a vida na sarjeta, ou embaixo das mesas, que depois fica tudo bem, e você volta, servil e diligente, e não, não é saudável que se disfarcem tanto as nossas delicadezas – senão é até capaz que, na queda fatal, você ainda seja culpado pela desproporção. 
Mas daí você está lá parado pensando tudo isso e fazendo planos sobre como tratar bem o seu futuro telefone, e passa a mão na tela, e assim, mesmo inacreditavelmente em pedaços, ela funciona, ela sorri.