terça-feira, 21 de outubro de 2008

bizarrinho...



Entre as nossas varandas

De vez em quando aparecia e olhava a rua com os cotovelos no parapeito, e me sorria por cima do biombo entre as nossas varandas. Ou às vezes sentava com as pernas abertas na banqueta e pintava as unhas do pé em dez segundos e depois ficava olhando o céu com os dedinhos em garra até secar o esmalte – eu via por baixo do biombo. Por entre os ramos da trepadeira que crescia desgovernada entre as nossas varandas, chegou um dia a me passar um bombom recheado de leite condensado.
Eu já não sabia do Júlio, resolvia seus assuntos na língua maluca em reuniões suspeitas e o sol na sacada só me fazia pensar no sol da minha casa. A casa que já não era minha porque agora o Júlio a minha casa em qualquer canto do mundo em que o colocassem -- eles tiram a gente do globo como uma mão gigante mexendo pecinhas num tabuleiro, vim empacar nessa varanda. E já faz tempo demais que ninguém joga esses dados.
Quando a gente chegou não vou dizer que tinha um brilho jovial nos olhos do casamento, não, olhos cansados, antes de falar com o porteiro ele apoiou a mão peluda na minha barriga, como se o filho quem estivesse nervoso, o filho que estivesse vendo os milhões de tijolinhos cor-de-rosa e as mil varandinhas lado a lado e empilhadas em vinte andares floridos e consumidos de trepadeiras e samambaias, Júlio, essas varandas!
Não, não tinha privacidade alguma, mas fui aprendendo a gostar da moça misteriosa que me dava doces através do biombo e que não falava mas se falasse seria na língua enrolada, usava um chapéu gigante que fazia sombra até a ponta dos seios, o tempo todo um animal no colo que eu pensava que era um cachorro mas que só podia ser um gato, o rabo tenso no ar, a serenidade. O Júlio chegou no meio da tarde depois de um telefonema arfante e me levou aos prantos, o hospital e sua língua enrolada, o filho num paninho e um médico explicando coisas que só o Júlio entendia e eu codificava pelos gestos e chorava imaginando a varanda vazia muitos mais anos e o Júlio que nunca mais pousou a mão peluda na minha barriga.
No dia seguinte eu era um balão estourado esquecido vazio em algum canto da festa. A moça passou as duas mãos pelo biombo e eu senti que chorava mas as lágrimas em algum lugar atrás das folhas da trepadeira, só o sorriso angelical nas frestas entre as folhas. As duas mãos quentes me acariciando a barriga inchada de líquidos e ares de morte, qualquer coisa de maternal naquelas unhas cortadas bem rentes me aquecendo o ventre com um sorriso que inspirava um beijo que o biombo impedia, uma das poucas coisas que o biombo impedia.
Naquela tarde me deu outro bombom recheado e riu quando eu babei o leite condensado e limpei a boca na manga do vestido, riu do jeito que a minha mãe ria escondido do meu pai que achava um absurdo essa de limpar a boca na roupa. Riu de um jeito que o Júlio nunca riu, e disse alguma coisa na língua enrolada, alguma coisa que eu fiquei escutando de novo e de novo dentro da minha cabeça, parecia uma amargura, uma maldade dita numa voz doce, uma palavra a ser repetida mil vezes num ritual colorido de tambores e sei mais o quê que faz esse povo com seus chocalhos e incensos.
Então, bem devagar, feito uma oferenda a Iemanjá voltando à praia de onda em onda, num olhar incompreensível de compaixão, foi empurrando por baixo do biombo o gato mole, a língua enrolada, enforcado num cordão de chupeta.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Confissão


Narcisismo

O bico do funil ficando fino a cada dia, a qualquer hora não sobra um diâmetro sequer que deixe entrar na minha bolha alguém que não seja um nome no celular, uma foto sem foco num site azulado na minha internet lentíssima. A seleção afunilada do meu afeto que deixou entrar três ou quatro na minha bolha, e mesmo assim anda difícil a amizade com qualquer coisa que não me espelhe, toda exceção até agora frustrante.
O funil ampulheta deixando passar um fino fio de areia até parar o tempo e os meus vínculos todos uns registros na memória e umas risadas nostálgicas de uma época em que as pessoas valiam à pena, meu funil tirando o mundo todo de perto, de dentro de mim. Triste confessar, doce mundo, mas não há ninguém. Cercada de imbecis, de bestas irracionais galopando calçadas com suas alegrias mesquinhas, com suas sabedorias de correntes eletrônicas e filmes odiosos, triste dizer, mas vocês todos não prestam para nada.
A gente disfarça, faz um social, sorri a toa distribuindo compaixão, mas chega do politicamente correto: meu funil me protege de vocês. É horrível dizer uma coisa dessas, eu sei, mas, do jeito que os tempos estão, com o funil sem aceitar as gentes assim tão incapazes de qualquer coisa que lave esse mofo cinzento, enormes as chances de eu vir a detestar completamente o meu próprio filho.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Adequa



A gente ouve que duas pessoas se casam pra viver juntas num apartamentozinho e todo o mundo foge aos pares para os seus cantos. Eles dizem que é assim o amor, e a gente se adequa. Eles dizem que o certo é trabalhar oito horas por dia e passar mais três no trânsito, eles dizem que é normal escoar quase metade da vida em papéis insossos que a gente ensaia na juventude e perpetua até os ossos doerem de exaustão; eles dizem, e a gente se adequa. A gente acorda um dia e se percebe numa cavalaria desgovernada de motores e latas, respirando fumaça e correndo perigo, mas a gente se adequa − fica até clichê reclamar disso. Então eles dizem que adequar é verbo defectivo, não pode conjugar em quase pessoa nenhuma, e ainda assim a gente dá um jeito e com muito custo continua se adequando.
Eles dizem que não é certo perder a cabeça, virar a mesa, rodar a baiana, descer do salto. Não deixam passar duas semanas no quarto suando entre livros e pipocas de microondas, porque não é assim, e vão adequando a gente em doses diárias de neurolépticos psicotrópicos e de repente no diagnóstico vem escrito neurastênico e não adianta dizer que a gente não se adequa, não adianta dizer que está errado.
Eles contratam dez incompetentes e enfiam em ternos quentes de muito fino trato e gravatas academissíssimas e um microfone disfônico pra ensinar como é que são as leis, e invariavelmente a gente se adequa. O português se revolta, a gramática se contorce tentando avisar que há vida demais lá fora, que dá pra correr de ponta-cabeça, dá pra trepar sem a dança do acasalamento, existe música além das mesmas músicas, deve existir alguma coisa embaixo desse tapete pesado e poeirento que enfiaram sob os nossos pés, sob os nossos passos.
Mas nós, nós nos adequamos.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Segunda-feira à noite num café da esquina



Flora bate a cinza do cigarro na lata de coca-cola e Alice chega esbaforida, deposita com força a bolsa pesada na cadeira sobressalente e reclama do calor dessas noites de fumaça e obras, sempre uma perfuração aqui ou ali doendo no asfalto e nos ouvidos, Você ia odiar muito a minha vida hoje, Fauna! Flora traga sorrindo em volta do cigarro, sorri o melhor que pode com os lábios em semibico. Uma aula terrível! E agorinha xinguei um caminhão que atravancou o cruzamento passando no farol vermelho, estacionei ali mesmo pra te ver e ele disse Tchau Gordinha, gordinha, você acredita? Flora apaga o cigarro na madeira da mesa e amassa o limão do copo com a ponta da unha roída, Ele falou pra te irritar, linda, você está muito bem, você sabe, não sabe?
Talvez Alice saiba mas hoje tanto chocolate que se sente mesmo grande demais, o vestido exorbitando nos quadris, Preciso de um milk shake. Flora continua com os mesmos cabelos longuíssimos e as covinhas sorridentes fazendo chacota de algum problema que pode ser muito sério, e não é séria essa queda? Os livros acumulando no pó e as leis atrasadas no tempo e as notas caindo e elas disfarçam em espasmos de genialidade.
Sabe, Fauna, Fauninha querida, muita coisa pra aprender e a gente não lê, não escuta, não anota, vai pesando no ombro, passei o dia todo feliz porque ia te ver à noite, só um cafezinho de nada e já deixa a gente tão aliviada, Alice ia dizer mas Flora termina a coca-cola, Você se importa se a gente ficar só um pouquinho, quero fazer cocô. Tudo bem... Mas posso pedir o milk shake? O cocô espera o milk shake e Flora sente a brisa nos cabelos negros e longos, um pouco mais apagados de cigarro e decepção, a gente fica indo nesses motéis baratos que acabam com o cabelo.
Emprestaram um livro fantástico, Fauna, o dia todo lia e lembrava de você! Alice vasculha na bolsa num tilintar de chaves e balas, deixando escapar guardanapos sujos, papéis, preservativos, desodorantes até tirar o livro protegido no saco plástico, Meu amigo que emprestou, ele fica uma onça se uma digital de chocolate numa página, não quero nem imaginar, credo! Alice se apruma na cadeira e começa a leitura rápida demais sem se importar se a amiga escuta, ela não é de escutar muito bem. Tão bonita... deve fazer o quê, uns oito anos. Oito anos a garotinha de faixa na cabeça sentada no chão fazendo alguma lição de casa e Alice observando com seu jeito de achar os outros interessantes e querer conversar sem ter coragem, oito anos lendo livros juntas no refeitório do shopping, as férias como fossem eterna viagem pelos quarteirões do bairro. Agora o cabelo apagado de cigarro e a Alice gordinha ampliando os quadris à espera de um parto que parece a melhor coisa do mundo, Já pensou um bebezinho aqui, Fauna?
Alice vira a página e se não fosse o Caio Fernando Abreu que tivesse escrito teria sido ela, Alice odeia quando alguém escreve e não foi ela, “... naquele bar infecto onde costumávamos afogar nossas impotências em baldes de lirismo juvenil, imbecil, e eu disse não, meu bem, o que acontece é que como bons-intelectuais-pqueno-burgueses o teu negócio é homem e o meu é mulher, podíamos até formar um casal incrível, tipo aquela amante de Virgínia Woolf....”. Alice pára a leitura porque Flora não ri, talvez não goste, talvez não consiga escutar no meio das obras, das olimpíadas na televisão de plasma do bar, das vozes neuróticas da noite de segunda-feira, ela não é de escutar muito bem. Mas o casal de meia idade na mesa ao lado está olhando contente, talvez ache bonito duas moças – bonitas? – bancando as cultas numa noite quente, talvez se enxerguem não oito mas muitos anos atrás em suas leituras boêmias, Qual o nome desse livro, mocinha?, e anotam num guardanapo úmido de cerveja.
Oito anos e talvez seja tudo a mesma coisa, as mesmas meninas com suas ancas parideiras e a mesma vontade de encher a rotina de cenários e viver pra sempre no palco. Alice gira na mesa a pulseira vermelha gigante e ameaça um carinho na mão morena, o amarelado charmoso nas pontas dos dedos, mas não é tudo a mesma coisa. Não poderia ser, Fauna, é que nem café com leite. não adianta adicionar mais leite e mais pó na mesma quantidade, nunca vai ter o mesmo gosto, nunca. foram trazendo mais de nós e não tem como ser a mesma coisa. mais pó, muito forte; mais leite, fraco demais. Alice fica com a sensação de já ter dito isso antes e Flora esquece os olhos em algum ponto confortável na rua, talvez um farol de estacionamento piscando em cima e embaixo na intermitência hipnótica dos faróis, Já li isso em algum lugar, essa coisa do café...
Fauna apóia o quarto cigarro num cinzeiro de plástico que o garçom trouxe meio molhado e saca um caderno da bolsa gigante, Vou te mostrar a casa que eu quero. Um desenho colorido caprichado de réguas e detalhes, na mesa gigante de centro uma planta aquática, Tem de ser aquática, Alice sugere que devem ser vizinhas e Flora concorda brevemente, Olha só, o tapete é laranja de fuxico, e essas coisinhas aqui são os brinquedos do gato, o gato fica aqui. você, não, Alice, você eu sei que vai atrás das coisas de anos atrás, talvez se case mesmo com quatro pessoas, talvez engravide uma mulher, mas eu... eu sou café com leite, não sou? cada vez mais leite! E ri observando o desenho da própria casa, faz um carinho na cama de casal que vai ser de madeira bem escura.
E de repente Flora tão menina podia sim ter feito o mesmo desenho oito anos atrás sonhando com marido e casa e hoje tão perto o marido e tão perto a casa e no entanto um medo terrível revolvendo o estômago, medo de um diploma vazio sem lastro no banco, a casa da mãe se perpetuando pelos anos, as economias lentas e os concursos fracassados, E se a gente não conseguir, Alice quer perguntar, E se der tudo errado, Fauna, tudo errado? Quer perguntar mas Flora chama o garçom, Vamos indo, Alice? preciso mesmo fazer cocô.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Texto de 4 anos atrás

Achei por acaso quando imprimia um trabalho no computador do meu pai. Escrevi para uma proposta do colégio -- descreva um personagem -- no segundo colegial.
"Lucas
Falta graça no andar jurássico, chocalhando os membros num desengonço, e quando tenta fazê-lo imponente ganha ares de palhaço. São assim os bons homens. Palhaços. Não que sejam engraçados com piadas, mas ao fazerem rir só pela própria existência, ridículos no literal da palavra. O nome é Lucas, mas aos amigos é Lulu – diz que nem são amigos. Não é feio, o moço, mas é de feio que se faz quando anda curvo pela rua a fugir dos olhares, e com toda a beleza que leva por dentro vai catando as latas e pacotes e papéis que vão pelo caminho a sujar a cidade. Lulu cuida bem de São Paulo. Cuida não só do lixo, mas ao dizer bom-dia. Ninguém diz bom-dia por aqui.
Senta na escada do colégio e tem sempre as mil manias de um lunático. A mais freqüente é a de comer a barra do agasalho. Depois que a boca cansa de mastigar o pano escuro, larga o casaco babado e parte para os polegares. Os dois já têm calos das mordidas. São três bolas duras e amarelas em cada dedo, doloridas. É aí que pega mais o nome “Lulu”, quando parece um bebê a chupar os dedos, os dois ao mesmo tempo. Aprendeu a nem ouvir as zombarias. Depois a brincadeira é com o cadarço do tênis, voltas e mais voltas em torno da canela fina de pêlos esparsos, para depois desenrolar e recomeçar as voltas. É assim até a mãe chegar.
Arruma a lisura dos cabelos no espelho do carro, como se algum fio ousasse sair do lugar, fugindo da fúria dos litros de gel. A mãe vai perguntando da escola, por que estava sozinho, por que tanto gel, cadê o agasalho, coisas de mãe. É só aí que Lucas fica nervoso. Aceita tudo, mas não aceita o fato de a mãe não aceitar. Por que esse apelido ridículo, filho? Como você deixa?
É em casa que Lucas esquece o “Lulu”, a mãe, a falta que os outros fazem. Tem papel e caneta. Não precisa de mais nada. Com um polegar descansando na boca, vive a vida de que mais gosta. Lucas é pai de homens fortes, viris, de borboletas agonizantes, princesas, barões, ladrões e até de estrelas. É pai de um romantismo excêntrico que prefere dar os espinhos em vez das rosas. E vai criando o próprio mundo e quando larga o lápis sente o peso do ar que respirara o tempo todo sem nem perceber.
A menina quieta é a personagem mais amada. Lucas trabalha nela como se a tivesse num abraço. Descreve os cachos longos como se os sentisse nas mãos, em lugar do lápis. Fala do cheiro de pêssego nos cabelos dela. Enquanto ele escreve, a menina joga ao seu mestre olhares apaixonados, deixando-se subjugar. Quando Lucas quer, ela sorri, ou chora, ou até dança. Ele põe na moça os mais lindos vestidos – podia tirá-los, mas não ousa. A menina quieta percebeu em Lucas o que ninguém jamais comprovará: os cabelos bons de afagar e o colo quente, que lhe serve de ninho em todas as noites pretas."

Estrela



As duas máquinas de costura num tatatá dessincronizado, dois trens de carga a irritar os ouvidos o dia todo. A moça da máquina da esquerda pára a costura e tenta sintonizar o rádio de pilha, Vai começar, tenta avisar segurando entre os lábios dois alfinetes de cabeça azul. O homem do rádio começa uma história de terror, deve ser de terror porque a música de fundo lembra um castelo escuro com sombras suspeitas atrás das portas.
Margarida entre as duas máquinas tenta encolher a barriga, Ai, Janaína, assim você me espeta!, segura-se nos cabelos duros da moça que lhe prende alfinetes na cintura do vestido, Se apertar mais fica feio, Margarida. Pode apertar, aperta bem que esse pano fica uma beleza. O homem do rádio vai dizer o que está se movendo embaixo da cama mas a máquina de costura recomeça, um trem barulhento atropelando a história, estilhaços nos trilhos, O que foi que ele disse? Mas essa coisa não pára um segundo, não se pode ouvir o rádio?
Uma mulher aparece com duas sacolas, Queria que fizessem as barras. Mas só pra semana que vem, pode ser? Partiu sem responder, as sacolas abertas no chão, uma calça de listas laranjas se insinuando serpente pelo tapete, Ê gente sem educação. Anda, Janaína, vou atrasar, não posso atrasar por nada! Mas que raio de show é esse, Margarida? Mais um alfinete enrugando a cintura que ela afina em lufadas de ar, a cara ficando roxa, Aperta logo, anda! fui chamada, já disse, vão me pagar fortunas, a fama finalmente, mulherada, eu disse que o dia chegaria.
Uma senhora gorducha de chinelos se apóia no corrimão comendo uma mexerica, o cheiro cítrico atraindo os olhares, Dona Janete, dá um gominho pra mim? Dona Janete morde um gomo e puxa dos dentes para dar só a metade que Margarida engole com as sementes, Cuidado não manchar o vestido, menina! O homem do rádio grita apavorado, fala de morcegos, Não dá pra desligar a costura só um pouquitinho? Janaína tenta tirar o vestido de Margarida sem lhe arrancar os alfinetes, a moça nua escondendo os seios com uma mão e com a outra ajeitando a calcinha amarela que lhe penetrava as dobras, as meias grossas brancas acinzentando no chão sujo, Agora não vai parar nada que vai arrumar o meu vestido, atrasadíssima!
Dona Janete lhe enfia outro meio gomo na boca, Mas atrasada pra quê, mocinha? Já expliquei, um show todinho meu, canto e danço, uma hora e meia, ouviram? Uma hora e meia sem parar! Vão filmar e tudo, Seu Roberto disse que vão gravar CD, dá pra pregar mais firme esse botão de cima? Dona Janete senta na escada e abana o entrepernas com a saia florida, Mas então isso é coisa séria, é coisa de famoso? Famosíssimo! vocês que não me dão bola, fica essa barulheira da máquina mas hoje sou a estrela da noite, vou brilhar sozinha, vou ser mais um planeta no sistema solar, baby. E planeta agora brilha, Margarida?
Margarida examina as unhas com um esmalte perolado e depois examina os seios no espelho do canto, Você acha que cresceram muito? Demais, e quero ver essa barriga apertada no vestido! Ah Janaína, nem se nota, vai? Dona Janete levanta com dificuldade e estala as chinelas na direção da menina pelada, acaricia-lhe o ventre com a mão gelada de mexerica, Isso aqui tem o quê, quatro meses? Nem quatro, não, senhora, menos até. E o nome, já escolheu? Violeta, vai chamar violeta. Ai, mais que coisa mais cheia de flor que vai ser essa sua casa. E olhe que minha mãe chama Rosa. E seu pai, Seu Miosótis? As meninas da frente dão risada mas as de trás ficam olhando sérias, talvez porque não conheçam miosótis, ou porque o barulho da máquina e os morcegos macabros do rádio não lhes permitem participar das conversas, ou talvez porque Miosótis o nome do próprio pai.
Se for menino, Margarida, como é que vai fazer? Jacinto, jacinto é uma flor bonita, azulada. Não gosto de azul. Ah Margarida, azul é quase violeta! Janaína termina a cintura do vestido e lambe a ponta do dedo pra tirar da barra uma manchinha branca, vamos ver se vai fechar, com essa barriguinha! Já tenho até um bercinho roxo pra Violeta, sabia? o Miguel que arranjou lá na marcenaria, disse que ficou a tarde inteira pintando, fez umas florinhas pequenas no cantinho, precisa de ver que graça que ficou. E o Miguel sabe desse show? Não só sabe como vem me buscar aqui pra gente ir direto, disse que não me quer mais em pé dentro de ônibus sacolejando a menina na barriga, diz que essas coisas deixam o nenê meio biruta. Pois olha só, eu que não reclamava de um cuidado desses! Abaixa um pouco rádio, Luciana, não se escuta a conversa! Mas sabia que ele não queria que eu fosse? imagina só, não perco uma chance dessas por nada no mundo, meu nome e minha foto no cartaz, vocês não viram nos postes? Eu bem que vi um ali perto da padaria, mas pensei que fosse alguém parecido! Euzinha. essa ninguém me tira.
Janaína sobe o zíper do vestido aos trancos e depois sorri por cima do ombro de Margarida, mirando-lhe os olhos enormes no espelho, Você está a coisa mais linda que eu já vi. Margarida se olha ajeitando devagar o cabelo, um sorriso estático, Fiquei bonitona mesmo... Fecha os olhos numa tontura que disfarça apoiando no pau de uma vassoura, Janaína lhe segura o braço já principiando um escândalo mas Margarida lhe sussurra, os olhos molhados de um suor frio que lhe escorria da testa: quieta, pelo amor de deus.
Janaína olha para trás e vê as moças com suas máquinas, rádios e mexericas, uma delas lixa as unhas e discorda indignada do que diz o horóscopo do jornal. Sobe a mão por dentro do vestido de Margarida e um choro instantâneo lhe escorre pesado dos olhinhos amarelos de tabaco e fome, Muito sangue, Margarida, a Violeta indo embora! Margarida se apóia na parede do canto e pede de novo silêncio, os olhos dilatados ficando mais gigantes de pânico, É o Miguel buzinando, você não diga nada. Você vai sangrar a noite inteira! Aperta a própria barriga escondendo a cólica num sorriso doído. Enxuga o sangue num retalho caído no chão e sai tonteando num rebolado exagerado, as meninas em coro: Tchau, Margarida! muito sucesso pra você! Ainda acena de volta, o sorriso imóvel. No final do olhar se demora em Janaína, um brilho antigo se apagando nos olhos. Um brilho de estrela.

Pode ser a gota d'água

Joana: Pois bem, você escuta as contas que eu vou lhe fazer: te conheci moleque, frouxo, perna bamba, barba rala, calça larga, bolso sem fundo Não sabia nada de mulher nem de samba e tinha um puto dum medo de olhar o mundo As marcas do homem, uma a uma, Jasão, tu tirou todas de mim. O primeiro prato, o primeiro aplauso, a primeira inspiração, a primeira gravata, o primeiro sapato de duas cores, lembra? O primeiro cigarro, a primeira bebedeira, o primeiro filho, o primeiro violão, o primeiro sarro, o primeiro refrão e o primeiro estribilho. Te dei cada sinal do teu temperamento. Te dei matéria prima para o teu tutano. E mesmo essa ambição que, neste momento se volta contra mim, eu te dei, por engano. Fui eu, Jasão. Você não se encontrou na rua. Você andava tonto quando eu te encontrei. Fabriquei energia que não era tua para iluminar uma estrada que eu te apontei. E foi assim, enfim, que eu vi nascer do nada uma alma ansiosa, faminta, buliçosa, uma alma de homem. Enquanto eu, enciumada dessa explosão, ao mesmo tempo, eu, vaidosa, orgulhosa de ti, Jasão, era feliz, eu era feliz, Jasão, feliz e iludida, porque o que eu não imaginava, quando fiz dos meus dez anos a mais uma sobrevida pra completar a vida que você não tinha é que estava desperdiçando o meu alento, estava vestindo um boneco de farinha. Assim que bateu o primeiro pé-de-vento, assim que despontou um segundo horizonte, lá se foi meu homem-orgulho, minha obra completa, lá se foi (...)” (CHICO BUARQUE, Gota d`água, 1997)

domingo, 3 de agosto de 2008

Cobrindo Amanda de Azul

Quando Amanda entrou no quarto
Alice ainda dormia
A sombra azul nas pálpebras
Contra a luz azul do dia.
E os lábios num inchaço
De sono, vinho e sexo.

Reclamei o meu espaço
E inventei coisas sem nexo
Mas Amanda ficou quieta
Olhando Alice nua.
Atirou-me uma cueca
E foi chorar na rua

À noite levei rosas
Prometi o que não podia
Amanda silenciosa
Me abraçou sem energia

Quando foi na livraria
Viu Alice atrás de um livro
Falou com ironia
Do meu beijo e meu colchão
Mas Alice num sorriso
Desmanchou a agressão
Os lábios num inchaço
de batom, poema e sexo
abrindo num aviso
de que tudo é mais complexo
Fechou os olhos devagar,
Cobrindo Amanda de azul.

Alice procurou o maço
Sorrindo depois de amar
Puxou o lençol num cansaço
Cobrindo Amanda de azul.

Festa de um desconhecido,
Amanda entrou no terraço,
Olhou no céu a lua
E Alice nos meus braços
Disse: a gente se habitua
E entrou no nosso abraço.
Declarou sua paixão
Entre beijos de euforia
E apertando nossa mão
Quis tirar fotografia.
Um flash colorido
Cobrindo Amanda de azul.

E o retrato envelhecido
Em cima do aparador
O tempo todo disse:
Adriano, Amanda e Alice
Inesquecível Amor.
Chega a noite e me deito
Com Amanda nos braços
E Alice entra de um jeito
Já seis pernas em laço
Apaga a luz amarela
E fica a luz da janela
Cobrindo Amanda de Azul.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Noite de Quinta

Noite de Quinta

Uma quase noite de quinta – o livro da Vila Sésamo da minha avó diria lusco-fusco – e o rodízio municipal de veículos me lembra de que eu deveria sair sempre sem carro. Pego o ônibus no começo da linha e vou sentada num semi-sono que me dá o direito de pensar em como gostaria de um vestido com a estampa e as cores amarela e cinza do estofado do acento. Se eu estivesse guiando pensaria se vale a pena mover o carro a cada dois metros de movimentação no trânsito; numa curva talvez xingasse um pedestre.
Há vinte anos vivendo em razão de uma decisão tomada aos 17, uma escolha revestida da magia e ingenuidade adolescente. Decisão de que, aos 21 anos, eu era velha demais para voltar atrás. Um x num quadradinho inocente e desde então o mundo jurídico me deu um marido depressivo e um emprego público com a estabilidade que parece se estender a todos os setores da minha vida, tudo completamente estável e imutável. O mundo jurídico também me deu dois filhos ingratos que podem estudar tranqüilamente numa escola particular, e ainda sobra para a natação e o inglês. Talvez os planos que eu tinha aos 17 anos se concretizem quando eu economizar o suficiente para mandar os meninos ao exterior, quem sabe um curso intensivo de férias. Talvez possam trazer um perfume do free-shop e a certeza amarga de que tudo lá fora é melhor. E aí talvez eles adultos sumindo pelo mundo atrás de qualquer coisa que eu não procurei, tudo pela escola particular, a natação e o intercâmbio de dois pirralhos que eu nem conhecia. Tem também o plano de saúde...
O ônibus vai me deixar a umas quatro quadras de casa e eu vou parar no meio do caminho para fazer um carinho na bolha do calcanhar, como fosse um cachorro que late e um pouco de afeto fizesse parar. Vou entrar em casa e antes de conseguir tirar o sapato o mais novo vai dizer que não gosta de frango com quiabos, e o mais velho vai responder o meu olá sem tirar os olhos de um vídeo-game barulhento. O marido vai chegar talvez antes da meia-noite, sem tirar os olhos de um ponto fixo no nada, contando uma causa que perdeu e não me interessa. Vai contar devagar, mastigando o frango. Vai tomar um banho quente demais e deitar exausto, sem lembrar que tem sangue, sem lembrar que é gente. E um pouco antes de pegar no sono vai sussurrar, confuso, que esqueceu de pagar a natação dos meninos.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Cinéfilos

ahahaha Mila, aqui vai sua encomenda. Pena que sou tão hábil em poesia quanto em pintura! beijos

CINÉFILOS

Um homem enorme sentado no chão
chorando os amores que não voltarão
E lá atrás está Jurema
unhas fundas no estofado
e o olhinho mareado
no silêncio do cinema
Vai voltar pra Diadema
e contar pro namorado.
Mas sábado a bilheteria
tem o filme que ela queria
Só que ele muito ansioso
quer ver o tal do homem choroso
unhas fundas no estofado
e o olhinho mareado
no silêncio do cinema
e na sala ao lado Jurema
em gargalhadas convulsivas
porque um anão de camisola
tomou pílulas laxativas
No busão pra Diadema
conta tudo ao namorado
e ele então se descontrola
quer ver logo o anão cagado
E sábado a bilheteria
tem o filme que ela queria
mas ele diz que nem rola
quer ver o anão de camisola!
E na sala ao lado Jurema
unhas fundas no estofado
vê um filme fabuloso!
mas lembra então com saudade
o abraço do namorado
mão com mão no estofado
no silêncio do Cinema
e não diz mais a verdade:
Meu bem, que infelicidade!
que filme mais odioso!
E sábado a bilheteria
Tem o filme que ela queria
mãos coladas no estofado
quatro olhinhos mareados
no silêncio do cinema.

terça-feira, 6 de maio de 2008

A mureta



No chão uma toalha branca gigante com queimaduras de ferro e cigarro, as bordas com estampas de patos e flores num pedacico de lagoa. Em cima da toalha o colorido das mercadorias que ele anuncia numa rima insistente, o preço em giz de cera num papelão.
−Olha só, Clarinha, esse daqui é fantástico.
Clarinha sentada à princesa na ponta da toalha, as mãos no colo tapando o buraco da saia. Ele desfila um cortador de unhas que pode virar também um canivete ou um chaveiro. Depois é um cinto de tranças de couro sintético roxo que ele tenta lhe vestir na cintura e ela repele numa risada tímida.
−Olha esse aqui, esse não é do Paraguai, esse eu mesmo faço. Se quiser, eu faço um pra você, Clarinha.
A praça com suas poças espirrando barrentas e a menina num auto-abraço e baforadas de frio, um cachecol marrom que ele lhe enrosca lentamente no pescoço gelado, um beijo estalado no rosto que ela desvia enquanto um gorro da mesma cor
−Pra esquentar essas orelhinhas
e também para abaixar a cabeleira esvoaçando obscena no meio da praça. O vento mais forte e ele segura os cartões de Dia das Mães com seus impulsos de vôo, as asinhas de cartolina num abrir sutil que de repente uma fuga de poça em poça vento afora.
−Também um frio desses e você com essa saiazinha.
Um homem abaixa a gravata até o isqueiro chinês e compra às pressas quase sem parar o passo, some na escada do metrô sem esperar as moedas do troco.
−Esse daqui, olha, é uma beleza de ouvir música no banheiro. Você entra no seu banhozinho e deixa ali na pia, olha só, sintoniza rapidinho. Dá pra ouvir até as letras!
Ela mexendo no rádio calada e depois o rádio encostado no ouvido porque a gritaria da praça, os vendedores com as suas rimas, mendigos, sirenes, barulho demais e o radiozito no ouvido cantando alguma paixão de dar água na boca.
−É tudo isso meu, você pode pegar o que quiser, Clarinha. Tudo tudo tudo.
De repente a correria dos ambulantes com suas tábuas e chocolates e despertadores, a fuga para dentro da Catedral, atrás das árvores, embaixo dos caixotes do moço da reciclagem. A toalha se dobrando em trouxa num puxão, Clara que não percebe a pressa e se demora a levantar e ele a puxar na outra ponta, os alicates pelo chão, calculadoras.
−Vem menina, o rapa! Olha os guarda tudo vindo ali!
Ela guardando o rádio na bolsa antes que
−É tudo isso meu, seu guarda, não estou vendendo nada, não, senhor.
e agora a toalha em trouxa sacolejando e molhando no espirrar das poças e os dois de cócoras atrás da mureta num abraço mais apertado de modo a não escapar às vistas um tico de sapato ou quem sabe uma ponta de toalha com um urso de pelúcia e uma capa de celular.
−Aperta mais, Clarinha, tudo tudo tudo meu, você vai ficar com o que você quiser.
Ela cansada cedendo ao colo, ao lábio dele respirando quente e rápido entre o gorro e o cachecol dela.
−Não liga, não, Clarinha, eles fazem isso é pra gente ter um instantinho de intimidade mesmo.