Noite de Quinta
Uma quase noite de quinta – o livro da Vila Sésamo da minha avó diria lusco-fusco – e o rodízio municipal de veículos me lembra de que eu deveria sair sempre sem carro. Pego o ônibus no começo da linha e vou sentada num semi-sono que me dá o direito de pensar em como gostaria de um vestido com a estampa e as cores amarela e cinza do estofado do acento. Se eu estivesse guiando pensaria se vale a pena mover o carro a cada dois metros de movimentação no trânsito; numa curva talvez xingasse um pedestre.
Há vinte anos vivendo em razão de uma decisão tomada aos 17, uma escolha revestida da magia e ingenuidade adolescente. Decisão de que, aos 21 anos, eu era velha demais para voltar atrás. Um x num quadradinho inocente e desde então o mundo jurídico me deu um marido depressivo e um emprego público com a estabilidade que parece se estender a todos os setores da minha vida, tudo completamente estável e imutável. O mundo jurídico também me deu dois filhos ingratos que podem estudar tranqüilamente numa escola particular, e ainda sobra para a natação e o inglês. Talvez os planos que eu tinha aos 17 anos se concretizem quando eu economizar o suficiente para mandar os meninos ao exterior, quem sabe um curso intensivo de férias. Talvez possam trazer um perfume do free-shop e a certeza amarga de que tudo lá fora é melhor. E aí talvez eles adultos sumindo pelo mundo atrás de qualquer coisa que eu não procurei, tudo pela escola particular, a natação e o intercâmbio de dois pirralhos que eu nem conhecia. Tem também o plano de saúde...
O ônibus vai me deixar a umas quatro quadras de casa e eu vou parar no meio do caminho para fazer um carinho na bolha do calcanhar, como fosse um cachorro que late e um pouco de afeto fizesse parar. Vou entrar em casa e antes de conseguir tirar o sapato o mais novo vai dizer que não gosta de frango com quiabos, e o mais velho vai responder o meu olá sem tirar os olhos de um vídeo-game barulhento. O marido vai chegar talvez antes da meia-noite, sem tirar os olhos de um ponto fixo no nada, contando uma causa que perdeu e não me interessa. Vai contar devagar, mastigando o frango. Vai tomar um banho quente demais e deitar exausto, sem lembrar que tem sangue, sem lembrar que é gente. E um pouco antes de pegar no sono vai sussurrar, confuso, que esqueceu de pagar a natação dos meninos.
Uma quase noite de quinta – o livro da Vila Sésamo da minha avó diria lusco-fusco – e o rodízio municipal de veículos me lembra de que eu deveria sair sempre sem carro. Pego o ônibus no começo da linha e vou sentada num semi-sono que me dá o direito de pensar em como gostaria de um vestido com a estampa e as cores amarela e cinza do estofado do acento. Se eu estivesse guiando pensaria se vale a pena mover o carro a cada dois metros de movimentação no trânsito; numa curva talvez xingasse um pedestre.
Há vinte anos vivendo em razão de uma decisão tomada aos 17, uma escolha revestida da magia e ingenuidade adolescente. Decisão de que, aos 21 anos, eu era velha demais para voltar atrás. Um x num quadradinho inocente e desde então o mundo jurídico me deu um marido depressivo e um emprego público com a estabilidade que parece se estender a todos os setores da minha vida, tudo completamente estável e imutável. O mundo jurídico também me deu dois filhos ingratos que podem estudar tranqüilamente numa escola particular, e ainda sobra para a natação e o inglês. Talvez os planos que eu tinha aos 17 anos se concretizem quando eu economizar o suficiente para mandar os meninos ao exterior, quem sabe um curso intensivo de férias. Talvez possam trazer um perfume do free-shop e a certeza amarga de que tudo lá fora é melhor. E aí talvez eles adultos sumindo pelo mundo atrás de qualquer coisa que eu não procurei, tudo pela escola particular, a natação e o intercâmbio de dois pirralhos que eu nem conhecia. Tem também o plano de saúde...
O ônibus vai me deixar a umas quatro quadras de casa e eu vou parar no meio do caminho para fazer um carinho na bolha do calcanhar, como fosse um cachorro que late e um pouco de afeto fizesse parar. Vou entrar em casa e antes de conseguir tirar o sapato o mais novo vai dizer que não gosta de frango com quiabos, e o mais velho vai responder o meu olá sem tirar os olhos de um vídeo-game barulhento. O marido vai chegar talvez antes da meia-noite, sem tirar os olhos de um ponto fixo no nada, contando uma causa que perdeu e não me interessa. Vai contar devagar, mastigando o frango. Vai tomar um banho quente demais e deitar exausto, sem lembrar que tem sangue, sem lembrar que é gente. E um pouco antes de pegar no sono vai sussurrar, confuso, que esqueceu de pagar a natação dos meninos.
5 comentários:
Pq vc escreve esses textos que me dão vontade de largar tudo ir ir Into the wild?
caramba, tinha esquecido o quanto esses textos são bons.
um beijo pra ti, flor.
ah, descobri por quê: eu não os conhecia!
rá. que boa surpresa.
Lindinha, será que quando passar a época de faculdade ainda vai escrever sobre essa temática depressão jurídica/ casamentos vazios?
Lindinha, será que quando passar a época de faculdade ainda vai escrever sobre essa temática depressão jurídica/ casamentos vazios?
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