sábado, 26 de novembro de 2011

O vôo

Exploro o espelho como querendo virar suas páginas, eu quero ter coragem de me perguntar por que eu preciso às vezes me prender assim, por que é que de uma hora para a outra eu baixo os olhos e ato pés e mãos aos móveis mais pesados da sala nova.
Bem na hora do vôo as minhas asas num muxoxo proposital e vexaminoso, as garras escondidas na minha própria carne, os olhos distraídos num torpor de fantasias. Por que será que, justo na hora de crescer os braços, estender as mãos até tantos dos meus sonhos – por que tantas mortes no meu sonho agora? Por que tanta morte nos meus sonhos? –, por que será que quando o mundo me vê tão grande eu me encolho doída na caixinha mais minúscula que alguém me oferece?
Por que será que a vertigem do vôo que eu talvez pudesse dar me finca os pés, afunda os passos nessa lama densa. Que lugar comum é esse a que eu me entrego e me apago e me rasgo.
Onde a vontade de quebrar minhas correntes, despontar livre de novo, desperta, desencaixada dos cubículos pequenos, da mesquinharia da vida dos outros, de volta no fluxo das minhas palavras, do meu samba, da minha noite. Onde a coragem de me soltar do eixo mecânico que me dá corda, bailarina de plástico a rodopiar aflita no espaço marcado da caixinha.
Chego a pensar que foi tudo um grande medo da queda que podia vir depois de um vôo. Mas virando as páginas desse espelho cru, penso que é o pavor do espetáculo de bater mil vezes as asas, espalhar vento nos cabelos de todos, fazer um estardalhaço de giros, arfadas, gritos, sem conseguir – nunca, jamais – sair do lugar; e não por uma distração do corpo ou do coração, mas porque estaria ali, inegável, inadiável, a notícia de que essas asas nunca prestaram para voar. 

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Carta pra mim


Nesta madrugada de repente eu tenho 25 anos e escrevo uma carta para mim. Uma carta que eu poderia me escrever aos 15 anos, que eu poderia me escrever aos 35. Uma carta absolutamente necessária para mandar lembranças a algumas daquelas que eu fui e que agora me fazem tanta falta.
Escuta, eu quero que você feche os olhos e sinta os próximos 25 anos chegando com todas as verdades que você merece, porque eu tenho certeza que você merece todas as verdades que escondeu de você esse tempo todo. Hoje de repente você tem 25 anos e está escrevendo uma carta para mim como se tivesse 15, com a mesma dor de quando tinha 15, mas sabendo que de repente 35, e que é preciso apontar direito a mira desse canhão furioso antes que você saia em disparada contra o próprio peito, a bomba fervendo em mil estilhaços de espelho.
Quero que você acorde e sinta os olhos mais firmes, os lábios mais precisos, o abraço mais livre. Quero que escancare as janelas e grite todo o seu desapego de tudo que te consome, que te exaure, que suga o teu tempo e energia. Amanhã você é uma mulher e é preciso abandonar tanta fantasia, é preciso parar de fugir da própria paz como se o silêncio do espírito fosse fazer saltar aos olhos a singeleza, a mesquinharia que é de fato a felicidade.
Amanhã você vai aceitar o amor e suas banalidades, vai olhar pro seu reflexo e não esperar nada além do que pode e deve ser, porque não é preciso muito mais do que isso. E vai tomar de volta nas mãos os seus minutos, cada um deles, porque eles são somente  seus, e eles escoam, eles correm, e a última coisa que você quer é sentir ainda as mesmas dores quando forem 35, 45 anos de idade, essas mesmas dores dos 15; a dor de quem não percebe nem valoriza no próprio pulso inquieto o giro irrefreável dos ponteiros.