terça-feira, 21 de outubro de 2008

bizarrinho...



Entre as nossas varandas

De vez em quando aparecia e olhava a rua com os cotovelos no parapeito, e me sorria por cima do biombo entre as nossas varandas. Ou às vezes sentava com as pernas abertas na banqueta e pintava as unhas do pé em dez segundos e depois ficava olhando o céu com os dedinhos em garra até secar o esmalte – eu via por baixo do biombo. Por entre os ramos da trepadeira que crescia desgovernada entre as nossas varandas, chegou um dia a me passar um bombom recheado de leite condensado.
Eu já não sabia do Júlio, resolvia seus assuntos na língua maluca em reuniões suspeitas e o sol na sacada só me fazia pensar no sol da minha casa. A casa que já não era minha porque agora o Júlio a minha casa em qualquer canto do mundo em que o colocassem -- eles tiram a gente do globo como uma mão gigante mexendo pecinhas num tabuleiro, vim empacar nessa varanda. E já faz tempo demais que ninguém joga esses dados.
Quando a gente chegou não vou dizer que tinha um brilho jovial nos olhos do casamento, não, olhos cansados, antes de falar com o porteiro ele apoiou a mão peluda na minha barriga, como se o filho quem estivesse nervoso, o filho que estivesse vendo os milhões de tijolinhos cor-de-rosa e as mil varandinhas lado a lado e empilhadas em vinte andares floridos e consumidos de trepadeiras e samambaias, Júlio, essas varandas!
Não, não tinha privacidade alguma, mas fui aprendendo a gostar da moça misteriosa que me dava doces através do biombo e que não falava mas se falasse seria na língua enrolada, usava um chapéu gigante que fazia sombra até a ponta dos seios, o tempo todo um animal no colo que eu pensava que era um cachorro mas que só podia ser um gato, o rabo tenso no ar, a serenidade. O Júlio chegou no meio da tarde depois de um telefonema arfante e me levou aos prantos, o hospital e sua língua enrolada, o filho num paninho e um médico explicando coisas que só o Júlio entendia e eu codificava pelos gestos e chorava imaginando a varanda vazia muitos mais anos e o Júlio que nunca mais pousou a mão peluda na minha barriga.
No dia seguinte eu era um balão estourado esquecido vazio em algum canto da festa. A moça passou as duas mãos pelo biombo e eu senti que chorava mas as lágrimas em algum lugar atrás das folhas da trepadeira, só o sorriso angelical nas frestas entre as folhas. As duas mãos quentes me acariciando a barriga inchada de líquidos e ares de morte, qualquer coisa de maternal naquelas unhas cortadas bem rentes me aquecendo o ventre com um sorriso que inspirava um beijo que o biombo impedia, uma das poucas coisas que o biombo impedia.
Naquela tarde me deu outro bombom recheado e riu quando eu babei o leite condensado e limpei a boca na manga do vestido, riu do jeito que a minha mãe ria escondido do meu pai que achava um absurdo essa de limpar a boca na roupa. Riu de um jeito que o Júlio nunca riu, e disse alguma coisa na língua enrolada, alguma coisa que eu fiquei escutando de novo e de novo dentro da minha cabeça, parecia uma amargura, uma maldade dita numa voz doce, uma palavra a ser repetida mil vezes num ritual colorido de tambores e sei mais o quê que faz esse povo com seus chocalhos e incensos.
Então, bem devagar, feito uma oferenda a Iemanjá voltando à praia de onda em onda, num olhar incompreensível de compaixão, foi empurrando por baixo do biombo o gato mole, a língua enrolada, enforcado num cordão de chupeta.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Confissão


Narcisismo

O bico do funil ficando fino a cada dia, a qualquer hora não sobra um diâmetro sequer que deixe entrar na minha bolha alguém que não seja um nome no celular, uma foto sem foco num site azulado na minha internet lentíssima. A seleção afunilada do meu afeto que deixou entrar três ou quatro na minha bolha, e mesmo assim anda difícil a amizade com qualquer coisa que não me espelhe, toda exceção até agora frustrante.
O funil ampulheta deixando passar um fino fio de areia até parar o tempo e os meus vínculos todos uns registros na memória e umas risadas nostálgicas de uma época em que as pessoas valiam à pena, meu funil tirando o mundo todo de perto, de dentro de mim. Triste confessar, doce mundo, mas não há ninguém. Cercada de imbecis, de bestas irracionais galopando calçadas com suas alegrias mesquinhas, com suas sabedorias de correntes eletrônicas e filmes odiosos, triste dizer, mas vocês todos não prestam para nada.
A gente disfarça, faz um social, sorri a toa distribuindo compaixão, mas chega do politicamente correto: meu funil me protege de vocês. É horrível dizer uma coisa dessas, eu sei, mas, do jeito que os tempos estão, com o funil sem aceitar as gentes assim tão incapazes de qualquer coisa que lave esse mofo cinzento, enormes as chances de eu vir a detestar completamente o meu próprio filho.