terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Seres fantásticos



Brumadinho tinha um monte de cachorro, porque as pessoas tinham as suas vidas e tinham os seus cachorros, e alguns deles foram salvos, então vamos supor que você e eu adotamos um cachorro que foi resgatado ali, nós estamos esperando que ele chegue de Minas Gerais, parte dos pelos por enquanto ele não tem, a lama arrancou, a outra parte está nas orelinhas tremelicando nos fundos do caminhão da Ong. Depois de muito tempo vendo o mesmo chão e ouvindo a mesma lataria ele dorme, porque é assim que funciona, mas o sono já não é o mesmo.
Ele sobe pelo elevador com você e eu abro a porta e o felicito muitíssimo, testo todas as minhas vozes que indicam alegria, mas ele entra degavar, sente o nosso chão gelado, que é tão firme. Procura no cheiro do sofá as pessoas que você e eu não somos.
Como será ter em casa agora um cão que entende de tragédias, nós tão levianos, acabou o café, o detergente, digo alguma coisa sobre o sinal da internet, você vai até a sala apertar botõezinhos, o cachorro move as orelhas na direção das nossas vozes mas o que dizemos não importa, ele sabe, nunca diremos nada que tenha um pedaço da magnitude do que ele já viu.
Parado diante da varanda o nosso cão pode estar tomando um pouco de sol, ou pode estar vigiando o horizonte, é do horizonte que chegam as piores catástrofes, de agora em diante ele está atento, não vai acontecer de novo, ele vai alertar muito antes de a morte quebrar estes vidros e derrubar as paredes, vai tirar todos nós daqui, nunca mais uma perna um braço um corpo inteiro destroncado, não tinham explicado pra ele que donos podiam morrer assim, logo ele tão atento diante do berço, não fosse aparecer um animal selvagem, um invasor, agora nós dois temos um cão que entende mais do que pode caber dentro da cabecinha quente sob o sol da varanda, ele aceita muito grato o meu carinho que dói porque agora ele sabe que os carinhos acabam e então todas as coisas têm o tamanho das ausências que carregam.
Um cão que talvez tenha sido erguido do barro quase sólido, as patas de trás ainda presas, e quando enfim o olho viu o bombeiro o que ele entendeu é que nós os seres humanos somos fantásticos, fazemos o que ele não fez por ninguém, nós salvamos, e é assim que ele vive em nosso apartamento, amando completamente o que é humano e tão benevolente, atento à janela de onde pode vir a lama, a televisão ligada falando dele, dos restos de tudo que era dele, um humano muito gentil ao microfone lamenta profundamente, o cão na varanda sabendo tão mais que você e eu – você que sobe agora com café, detergente, a revista do mês e papel higiêncio –, ele festeja a sua chegada porque de fato cada retorno é uma sobrevivência, suspira satisfeito, a sorte que tem, o cão sabendo tanto e ainda assim os olhinhos de amor, a língua afoita na direção do que é humano, seres fantásticos.