domingo, 25 de janeiro de 2009

Chá, biscoitos e trovoadas no fim da tarde


Não sei de onde a coragem, meu santo, é capaz que nem abram a porta, fico assim gelada na entrada espiando pela janela gritando Helena, quem sabe roubá-la e levá-la ao meu reino, dois povos em guerra pela mulher mais bela do mundo. Desculpe entrar assim molhada, saí depressa e esqueci o guarda chuva, como é que ela está?
O olho arregalado e a respiração de ódio como se eu um guerreiro disposto a qualquer coisa, Quem foi que te chamou aqui? A sala escura tem uns móveis novos e um gato de madeira que devem ter trazido daquela viagem misteriosa, quero gritar Helena-Helena-Helena mas alguma coisa na sala pesada me oprime. Desculpe a saia pingando, olha aí, estou molhando tudo, bem que eu tinha ouvido a previsão chuva-intensa-com-trovoadas-no-fim-da-tarde, vim apenas saber se ela piorou, senti um aperto e vim, será que.
Estou tão abalada que tenho vontade de abraçar você, minha querida bruxa amarga, abraçar e chamar de mãe, mãezinha, você me oferecia chá com biscoitos de abacaxi, não lembra? Depois perguntava gentil se as meninas não queriam ver um vídeo ou coisa assim, tão gentil, mãezinha, que parecia a velhinha rechonchuda da embalagem de pães de queijo congelados, agora eu só quero ver a minha Helena, querida bruxa azeda, olheiras roxas do tamanho do buraco nesse seu coração. Você não entra aqui, eu já disse.
Vontade de dizer pra você mãezinha que uma coisa dessas não se faz nem com um bicho feito eu, implorar, ajoelhar assumindo o pecado que você quiser na sua fogueira maternal, Se ela entendesse que eu estou aqui ia querer que eu entr., Ela não entende! De repente a mãezinha num choro convulsivo, o lábiozinho gorducho tremelicando e quero mesmo abraçá-la, não precisa desse ódio, Dona Solange, a gente tem de se ajudar, lembra quando eu dormi aqui a primeira vez? Liguei pra minha mãe no meio da noite chorando, medo, muito medo de dormir, quem sabe um defunto ensangüentado embaixo da cama, você me sentou no seu colo e cantou até passar o choro. Hoje mais medo ainda, Dona Solange, minha segunda mãezinha, você me olhando com essa cara de nojo como se eu um monstro, uma aberração, Eu só quero vê-la, percebe? olhar pra ela um pouco, quem sabe ela me veja e fique bem consciente!
Dona Solange dois olhos redondos vermelhos, as veiazinhas desenhadas feito um mapa de guerra, eu o alvo imóvel, talvez ela pense que o meu fim seja o fim de todos os problemas dela, a Helena acordando linda e sem doença e com um namorado perfeito, quem sabe um médico formado e um consultório salmon-pastel do ladinho de casa, e ainda por cima homem, já imaginou que maravilha, ahn, mãezinha, você deve ter emagrecido dez quilos nas últimas semanas. Nesse momento ela deve ficar só com a gente, acabou a farra, mocinha, vai embora agora.
Acabou a farra. Vontade de explicar que ela não conhece a Helena, não conhece, três anos, mais de três anos, um apartamento lindo, se você tivesse ido visitar uma só vez teria se encantado, nosso quarto vermelho e ela pintava coisas lindas na parede. Numa hora dessas devia estar com quem a conhece, mãezinha, no meu colo no meu peito no meu travesseiro rindo o riso louco da doença, só eu entendo as febres os tremores.
A Helena experimentando meu vestido preto e reclamando do quadril pequeno, ah se ela soubesse como é ruim ser assim toda grande, esbarrando nos móveis, a infância inteira a Cinderela com seu sapatinho minúsculo sapateando na cabeça, só quero a minha menina pequena, minha Helena tão linda, os cabelos que ela prendia e me esticava o pescoço pra eu sentir o perfume novo, naquele dia a gente foi no teatro e ela já tinha a doença mas acho que não sabia, no meio da peça um desmaio discreto, parecia que tinha apenas deitado a cabeça de leve no meu colo, eu cochichei Helena-levanta-que-vexame-isso mas ela nada, ali deitada em mim, escolheu o meu colo pra desmaiar macia. Ainda bem que eu sempre fui grande e ela tão pequena, peguei no colo feito noiva de novela e ela acordou no táxi, acordou boa já dando ordens, queria voltar pra peça, imagina hospital, que coisa maluca de jeito nenhum.
Esse gato de madeira, quem sabe esse gato não tem a ver com a doença, ahn? Cada vez que vinha almoçar com vocês voltava pra casa mais doente, dizia Carla-Carlota-ando-tão-fraquinha-cuida-de-mim e eu beijava tudo, mãezinha, beijava o peito arfante, a respiraçãozinha curta, cancelava reunião, salário, viagem e não largava a mão quente sempre úmida, culpa desse gato sinisitro que ia sugando as forças aos poucos, Eu vou entrar, Dona Solange, a senhora não perde nada com isso.
Emagreceu dez quilos e envelheceu dez anos na última semana, a velha. Já disse que de jeito nenhum, Carla! A vozinha trêmula me lembra o chá com biscoito e a gente tão pequena pedindo deixa-a-gente-brincar-na-chuva, a Helena sempre tarada por chuva. Ano passado mesmo na praia quis sair na chuva, o cabelo encharcado e ela rindo, tropeçou na areia e aquilo foi virando lama, precisava ver que coisa nojenta, detesto areia molhada.
Ia dar tudo tão certo, mãezinha, a gente estava até vendo de ter um nenê, olha aí, já estou ficando nervosa de novo, vou acabar ajoelhando e implorando e isso não é do meu feitio, um nenê rosinha e você ia acabar aceitando, uma hora ia perceber como era lindo, a Helena completamente apaixonada e mãe, os seios miúdos crescendo de leite, ou quem sabe o meu peito já tão grande e o bebê se empanturrando, lambendo, sugando, pedindo mais e mais e você toda avó oferecendo chazinho e biscoitos de abacaxi, teria sido tão simples, não teria? Esses desmaios, meu santinho, e essa velha aí de pé achando que é tudo castigo de algum deus macabro que ela alimenta em rezas solitárias.
Se ela estivesse consciente, Dona Solange, se tivesse forças já teria voltado pra casa, só quero ver, só isso, não encosto, pelo amor de deus, duas semanas chorando sozinha, olha o que vocês fazem comigo, olha essa roupa rasgada, molhada, sente o meu hálito de fome porque só o estômago sente fome e o resto não, a cabeça teimosa só quer chorar, telefonar, doer doer doer. Eu queria acompanhar os exames, queria explicação do médico, sentir a mão do doutor no meu ombro e o olhar compenetrado e sem eufemismos, eu mereço essa mão no meu ombro, está me entendendo?
Empurro a mãezinha de leve e vou direto ao quarto, tanto tempo esses corredores e ainda lembro os caminhos todos, essa mulher correndo furiosa atrás de mim como se a casa uma loja de cristais e eu uma criança rebelde desgovernada entre as prateleiras. Helena na escuridão só com a luzinha azulada da televisão num filme-desenho que assistíamos juntas nas férias, agora o capitão diz Voce-tem-um-último-desejo-antes-de-morrer? e o coelhinho muito perspicaz responde sim-senhor-gostaria-muito-de-continuar-vivo, e então o capitão, distraído e apressado, vai dizer que-seu-desejo-seja-atendido e quando perceber a derrota o coelho vai arrematar com e-batatas-fritas-por-favor.
Helena, Leninha, acorda, olha quem está aqui! Acorde logo, olha sua mãe no telefone, vai saber para que autoridade policial está ligando. dona Solange, ela não gosta das almofadas assim, pelo amor de deus, o pescoço caído assim pra trás, ela usa no mínimo três, lá em casa tem uma em formato de coração que ela punha na lombar. não, Leninha, não deixa o pescoço assim, abre o olho, Helena, pelo amor do nosso santinho, está me escutando eu vim te ver, pense no nosso nenê, ahn? ano que vem quem sabe a gente faz um berço multicolorido do jeito que você queria. dona Solange, desliga esse telefone e vem depressa aqui, me abraça, me ajuda, dona Solange, não, não grita assim, faz aqueles biscoitos de abacaxi que a gente adora. eu te concedo um último desejo, Helena, abre o olho bem bonito pra mim, Leninha, por favor, só essa última vez.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Estado de Sítio



Estado de Sítio

Uma casa pequena e os oito ali contentes, cada vez um era a Branca de Neve varrendo lavando servindo os sete anõezinhos bêbados com barrigas doendo de rir de piada, de alegria, de bobos. Vontade de cerrar os portões e as estradas e nunca mais sair do meio do bosque com as criaturas fantásticas entre as árvores, águas, teias de aranha.
A sala e o tapete que tinham cheiro de mato e foram ganhando perfumes, álcool, brigadeiro e tabaco – o cheiro de férias impregnado nas roupas, e as cinzas acidentais entre as páginas do livro. Esconderijos molhados no barro das moitas, atrás do carro, da geladeira, o vento frio de infância e na verdade sete anões gigantes e uma branca de neve qualquer desprezando a maçã e molhando a saia amarela rolando bêbada na grama.
A casa pequena e o relógio guardado festejando a virada do ano no tempo de cada um, no tempo do forno controlado ao acaso pelo tempo do estômago. O tempo dos passarinhos que acordam todos juntos. O som do champanhe estourando no escuro, velas e os votos para um ano que nasce mimado em berço de loucos e engatinha febril e sabe-se lá aonde vai se não ficar ali quietinho quente entre os cobertores e pernas, dormindo com o barulho dos grilos.
As risadas ainda no fundo do ouvido e estou de volta à cidade de repente e a segunda-feira doendo como nunca doeu. A segunda-feira uma garganta inflamada escancarada me engolindo, mostrando a língua numa zombaria infantil, vomitando suas incertezas sem pássaros, grilos, risadas.
Fecho a porta de casa, completamente sozinha, e nunca o silêncio urbano trouxe tanta solidão. O ano letivo – esse macarrão insosso – deitado imóvel e pegajoso na minha cama, empoeirado na pilha de papéis que resistiram ao ano passado. Dois mil e nove desmaiado nas obrigações todas tão desprezíveis que se eu fechasse os olhos e dormisse por um ano – um dia um príncipe e um beijo pueril na boca e uma viagem no lombo do cavalo e o happy-ever-after –, se eu dormisse assim aqui, sozinha embaixo da cama, até o final do ano, o mundo continuaria exatamente igual. A segunda-feira, minhas obrigações desprezíveis, a casa pequena do sítio vazia e escura, e a minha mala aberta com as roupas cheirando a cinzeiro, vinho e chocolate.