terça-feira, 24 de março de 2009

Da velha volúpia de me sentir translúcida (luiz, você ainda está por aí?)

Hoje à noite o ônibus me fez pensar um monte de coisa a meu respeito, coisa boba que ninguém sabe mas fiquei pensando que é um absurdo ninguém saber. Quero ser um pêssego descascando numa puxada só, óbvia e doce na vermelhidão em volta do caroço.

Ninguém sabe que há dias – melhor dizer há anos, há todos os anos – boto o fone de ouvido no ônibus e. Primeiro vou dizer que todos os meus fones de ouvido têm fases bem delineadas de suas vidas: primeiro estão novos e pouco a pouco me convencem de que o antigo era melhor; depois de um mês, um dos lados perde a cabecinha de borracha, e eu continuo enfiando no ouvido com o metal arranhando e quase soltando; depois essa lado quebra de vez e eu fico escutando de um lado só, até me frustrar com o silêncio total e me dedicar a encontrar o próximo. E é essa dinâmica que me faz parar de ouvir as mesmas três músicas e passar para as próximas três.

Todos os dias tenho colocado o fone que está na fase de funcionar só do lado esquerdo e ouço Living La Vida loca do Rick Martin no último volume, e me imagino fazendo coreografias de musicais Broadway, geralmente tenho saias muito curtas e faço movimentos rítmicos completamente alheios à minha realidade física. Depois ouço a mesma música de novo, e pela terceira vez, e imagino que alguém que não me conheça muito bem esteja assistindo maravilhado, querendo entrar na minha vida louca.

Eu podia guardar essas coisas pra mim e pulverizá-las todas entre os meus personagens pouco a pouco, mas não seria honesto, nem me satisfaria, e além disso ia aumentar a paranóia insuportável dos meus amigos de procurar vestígios de mim nas minhas criaturas como inspetores ardilosos à caça de digitais engorduradas na cena do crime. Quando eu era pequena imaginava uma câmera que me seguia, e meus conhecidos eram fiéis telespectadores. Quando eu era pequena, isso devia ser falta de amor-próprio, e hoje em dia deve ser amor-próprio demais: vocês não podem perder um detalhe desta maravilha que sou eu.

Algumas pessoas ouviram falar, mas ninguém desconfia o quanto minha cachorra me magoa quando não se importa comigo e foge de mim. Minha cachorrinha me evita. Aliás isso já está no livro novo que eu estava escrevendo, e dane-se o próximo inspetor que tentar me algemar com essa história de me expor nos meus personagens, eles todos fazem isso, todos os escritores que eu amo, todos aqueles que eu daria tudo pra ser.

Aliás, ninguém sabe que esse meu próximo livro está parado por algumas razões, talvez eu não saiba que é porque não estou pronta para falar de um amor de lésbicas como aquele. Ou talvez seja porque eu estava gostando muito e fiquei com medo, o maior medo do mundo de o meu namorado não gostar. E ele morre de medo de não gostar, cada palavra que eu escrevo é uma contorção nos olhinhos aflitos, Ai meu deus o que eu vou dizer se eu não gostar, o que eu vou fazer, eu não estou gostando, meu deus alguém me ajude isto está uma porcaria, socorro! E ele é o único que ainda diz alguma coisa quando não gosta, os outros ficam em silêncio, e meu deus como eu detesto o silêncio de vocês, isso é outra coisa que vocês têm que saber.

Outra coisa que ninguém sabe é que eu gosto, sim, de direito. Daquela partezinha que eu fico fingindo pra mim que um dia vou poder mudar. E que eu queria que acabassem de uma vez por todas com essa história de reputação ilibada pra algum dia eu virar juíza, eu poderia sim virar juíza e fazer de um jeito diferente, avisar todo o mundo que não precisa de terno, fazer tudo ao contrário – e ficar condenada ao interior do interior do estado para sempre. Mas não vão tirar a reputação ilibada – e isso tudo fica no Google em cachê sabe-se lá por quanto tempo, e além do mais eu sou um pêssego descascando ao mínimo toque – e a Justiça nunca vai chegar na lama, nunca vai entender a lama, nunca vai chafurdar, espirrar, engasgar na lama e olhar pro mundo com os mesmos olhos embaçados de lama. Um amigo meu – cuja profundidade na lama me impede de compreendê-lo – sempre diz que está com os pés na lama e ninguém vai entender nada disso com os pezinhos no salto alto ilibado da reputação.

Quero que todo o mundo saiba exatamente o quanto eu amo, porque embora o amor seja uma das coisas que eu mais repito, demonstro, insisto, exijo, às vezes me parece que é o que mais se esconde no superficial dos meus exageros teatrais. Queria que todo o mundo entendesse que se eu dou um sorriso sincero no elevador da faculdade, se eu puxo algum assunto, se eu me esforço, se eu adiciono no Orkut, se eu pego o telefone (aí você ultrapassou todos os limites da conquista, pergunte pra Rafaela!), se eu reagi com a minha própria voz (eu tenho uma voz detestável quando estou detestando a conversa) é porque eu amei, é porque eu amo, é porque eu gostaria muito de que você tivesse uma câmera pra assistir a cada pedacinho nervoso de mim, e queria que você tivesse uma câmera em você pra eu saber tudo bem rápido e não perder nada dessa coisa rara e tão refrescante que é gostar das pessoas.

(O Lucas – pronto, falei o nome e qualquer coisa poética-padrão perdeu-se no ar --, o Lucas reclama que eu não sou solícita e simpática com todo o mundo, perdão, muitos demoram e outros nunca me encantam, é bom pra valorizar a simpatia que vocês têm de mim. O legal de escrever um texto assim maluco é que eu posso fingir que estou falando de mim e ficar falando de vocês, ou melhor, falar de mim por horas fazendo de conta que falo de vocês.)

E uma coisa que todo o mundo sabe é que eu preciso de você, de todo o mundo, e isso fica evidente já no amarelo azulado das batidas doídas na casca do pêssego. E talvez por isso, pelo explícito dessa necessidade, desse machucado, desse roxo na pele exposta, que você, que todo o mundo, que a minha cachorrinha somem um pouco de mim.

texto velho, do outro blog:

a volúpia de me sentir translúcida. cada vício exposto sem rodeios nas rodas, nos encontros, nos bares. deixar meus trejeitos inflamarem no brilho das telas nos computadores de cada quarto. a tranqüilidade de ser uma só e sempre a mesma, seja às colegas, ao avô cristão, ao chefe ou ao psiquiatra. falar alto dos meus mais entranhados medos, e deixar ao capricho do acaso as cartas, os e-mails, as opiniões. publicar desejos indiscretos num receio vertiginoso de que os vínculos mais leves se afastem assustados por uma verdade que é tão comum, e se desmanchem em fofocas vazias. e deixar que me descubram despida de máscaras, sem educação, sem limite.
feito um menino espreitando a prima mais velha, entregar-me à concupiscência de observar pelo buraco da fechadura o novo amor no meu quarto, meu diário aberto no colo, numa leitura tão afoita quanto constrangida. deliciar-me nos seus rostos de susto, vê-lo enraivecer a cada confissão, a vontade de fugir agitando os seus pés sobre o tapete cor-de-rosa. e, sem entender nem consentir, vai se apaixonando a cada página, muito de mim numa overdose indefensável.
render-me ao deleite de pulsar nos lábios de quem descobre muito de mim em pouco tempo, e me dilatar nos olhos de quem esperava uma fantasia discreta de uma moça que quer ser aceita, mas encontra a indecência de quem não tem absolutamente nada a esconder. sentir o vento gelado ao escancarar a própria vida. pulverizar minha intimidade em metralhadoras e alto-falantes. derreter-me sob o calor dos olhares na pele tão transparente, e o encanto de me confiar, inerme, à curiosidade invasiva de quem quer que seja.
depois de tanta revelação, vulnerável ré de minha autenticidade, poderei alegar, realizada, aos berros, às gargalhadas, que só disse a verdade, nada-mais-que-a-verdade. e os que ali me julgarem guardarão, em suas pesadas consciências, a plena noção de que condenam a verdade em prol de sua própria e sempre viva hipocrisia.