sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Exercício 5 (pedidos de Natal)


Hoje quero sair cedo do salão, quero que todas elas apareçam apenas para as mãos, nada de pés, esmaltes bem clarinhos, uma camada só. Quero que todas as clientes tragam papai-noel de chocolate, daqueles maciços, difíceis de morder. Quero abrir um deles e subir a rua chupando pelo gorrinho, quero que ele derreta rápido.

Quero que no salão ninguém pergunte nada, ninguém encoste a mão no meu ombro e diga que sinta absolutamente nada, quero que o Sandro tenha me sorteado no amigo secreto. Quero uma camisola roxa com as alças cor-de-rosa, alguma renda nos seios. Quero que o Sandro fique me olhando o tempo todo, meio de longe, e me dê a camisola, depois me abrace, e nesse abraço sussurre que eu devo ser muito bonita dormindo. Quero que ele ande comigo até o metrô e me fale da família dele.

Quero que a mãe já esteja em casa quando eu chegar, e que os vizinhos estejam quase todos no quintal, quero que o Seu Lázaro não venha. Quero que as crianças não fiquem correndo muito, que as meninas coloquem música de dançar, podem pedir pra olhar minhas fotos. Quero que as pessoas cheguem trazendo pudins, frangos, bolos, muito arroz, quero que a minha mãe tenha conseguido fazer o peru. Quero que alguém traga uma cesta de natal da empresa, com sidra e cerejas em calda. Quero morder as cerejas, muitas cerejas, melando todo o vestido, quero que as meninas também peguem cerejas e apertem, estourem, muitos vestidos ficando vermelhos, pegajosos, doces, quero um pote gigante de cerejas.

Quero que ninguém pergunte nada, quero que não escrevam cartões. Quero que a mãe fale com as mulheres sobre costura, sobre temperos, não quero ouvir a minha mãe contando da madrugada na fila, quero que ela esqueça os próximos domingos, quero que alguém fique pra dormir com ela, que ela não chore. Que nenhum completo imbecil venha explicar sobre procedimentos, sobre leis, sobre cálculos de anos, sobre concessões, enquanto arranca uma coxa de frango com o guardanapo, quero que ninguém venha dizer que tem certeza de que ele é inocente. Quero que ninguém tenha certeza de coisa nenhuma.

Quero que o meu pai tenha conhecido um rapaz muito bom, muito sozinho também, que proteja, um rapaz como o Sandro, que tenha os braços fortes, que fique acordado enquanto ele dorme, que saiba jogar os baralhos que ele gosta. Quero que ele não arrume nenhuma briga e que alguém divida com ele um panetone, um pote gigante de cerejas, quero que domingo ele não me conte nada, que não me diga nada, só me fale do natal de lá e de como os homens rezaram e repartiram frisantes em garrafas descartáveis, que o maior deles se vestiu de Papai Noel, que os guardas trouxeram papais-noéis de chocolate maciço. Quero que todas as celas estejam contornadas por luzinhas douradas piscantes, uma arvorezinha no canto do pátio vai sobrar acesa no silêncio tocando desafinada um noite-feliz bem agudo. Quero que meu pai não fique muito tempo, e se forem mesmo tantos anos assim quero que ele se mate. Quero que ele deixe todo o mundo em paz.

Quero as crianças caindo no sono nas cadeiras de praia do quintal, no sofá, e aos poucos as mães meio bêbadas vão recolhendo todas escoradas de barriga nos ombros, numa das mãos um saquinho com um pouco das sobras, quero a minha mãe embrulhando sobras de arroz até que não haja mais a quem distribuir, quero que sejam três horas da manhã e a minha mãe esteja sorrindo sozinha na cozinha e as meninas já estejam dormindo, quero colocar pouco dinheiro no sutiã e sair sem dizer nada, descer até a rua vazia cheia de luzes, caminhar de saia e sandália baixa até algum lugar que toque música muito alta, quero que o segurança me deixe entrar de graça porque já vai estar tão tarde. Quero uns copos de cachaça e quero conversar com umas meninas na fila do banheiro, vou dizer que sou de Recife e que não tenho onde dormir, quero que sejam travestis. Quero que elas me levem pra tomar café da manhã e que a gente pegue um ônibus muito lento que cruze a cidade silenciosa já debaixo de muito sol. Porque é feriado, porque é Natal, e o salão não vai abrir.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Brisa

Pode ser que por um instante, que talvez por alguns instantes, ou repetidas vezes, eu tenha desejado que ela fosse outra pessoa, uma amiga, qualquer uma daquelas pessoas a quem a essas horas já não é preciso dizer nem mostrar nada, já nem é preciso ser coisa nenhuma. Mas talvez não, talvez eu estivesse achando bom uma pessoa assim desconhecida – para não dizer estranha – os olhos limpos de mim, uma nova foto surgindo nas cores que eram possíveis, cores de vestidos, faróis, essas cores da madrugada.

Ainda assim é impressionante como em tantos momentos eu de fato pensei que seria melhor se ela fosse alienígena, qualquer coisa que de repente se desmaterializasse, sumisse, só pra que eu pudesse parar de falar, de sorrir, pra que eu pudesse ser eu mesmo, um eu-mesmo quieto, evidente. Porque de repente ela parecia uma pessoa completamente extraterrestre simplesmente por não ter estado aqui em nenhum dos momentos importantes da minha vida, por não ter idéia de quem eu sou enquanto há tanta gente querida que é capaz de saber a palavra exata que eu gosto de ouvir.

Mas depois, quando ela de fato se desmaterializou – na medida máxima em que essas menininhas da metrópole conseguem se desmaterializar –, fiquei pensando que é bom de vez em quando tudo assim tão leve, uma brisa breve e colorida que entrou pela janela do carro. Na estrada ainda sinto o vento no pescoço.