quarta-feira, 22 de abril de 2009

Astronauta



Fujo para o cinema e fico escondida no frio da sala num filme que depois me deixa atônita falando sozinha em inglês — o teatro o cinema o livro todos eles me arregalam os olhos e me deixam pulsando e me enchem a cabeça de pipocas coloridas que querem virar milho em espiga na tela do computador. Mas nos guias para os adolescentes tinha até gerente de festas mas não tinha escritor, nem diretor, e talvez nem ator porque se aos 17 anos você quer uma coisa dessas deve ser porque não está preocupado com nada dessa história de futuro que de repente chegou.
É bonitinho o menininho que diz Astronauta e as tias aplaudem rindo gordas mas aos 17 é preciso ter os pés na Terra, o mundo da lua explodindo cinzento, cinza nos nossos hormônios contidos de repente em roupinhas ridículas de adultos geométricos. Detesto adultos geométricos. Detesto adultos. Quero ser menina, menininha, quero ser pequena, minúscula como nunca tive a chance de ser: sempre o corpo alcançando o botão do elevador antes do tempo, as amigas balançando os pezinhos na cadeira escolar e meus pés gigantes ancorados no chão gelado sentindo a firmeza do solo, a frieza de pisar o tempo todo e alcançar sozinha os recônditos das prateleiras do armário. Acho que compro livros pela internet só pra encontrá-los de repente sobre a mesa da sala, largar a bolsa no chão e abrir afoita o papelão exagerado, o durex que não solta e pego desajeitada a faca em gestos violentos até meu pai acudir e abrir o presente que eu mesma me dei e já sei o que é e me entregar curioso, perguntar o nome, perguntar se é pra faculdade, depois me dar o plástico-bolha com um afago na cabeça sabendo que eu vou passar mais tempo me divertindo com o plástico-bolha do que lendo o livro.
Depois fujo do cinema — falando sozinha em inglês — e quero me esconder das pessoas, fico pensando onde toda essa gente passava as noites antes dos cinemas inventarem as promoções dos dias úteis. Quero fugir dos rostos conhecidos, impressionante como a Paulista noturna me joga na cara esses rostos de passado que rendem no máximo um sorriso constrangido, uma reparada no corte de cabelo, na roupa, e uma breve reflexão sobre o que pode ter se tornado a juventude alheia— principalmente daqueles que aos 17 desafiaram as tias sonhando com a lua em delírios sombrios de sublimação pela arte. É romântico idolatrar a dificuldade financeira nessa idade, adorar a singeleza de Demy Moore e o maridão antes da proposta maldita.
O Jardim Miriam chegou rápido de novo. A gente desenvolve uma relação delicada com o ônibus que leva a gente toda noite do cinema pra casa. Uma espécie de afeto freudiano pela imponência das rodas imensas, a porta que me acolhe abrupta aos trancos e depois oferece um assento quase macio. Encosto a cabeça no ombro do ônibus e agradeço esse instante de carinho, esse apoio desinteressado. Vai me levando pelo mesmo caminho de sempre e sinto que ele sabe a minha rotina, sabe os dias que venho cedo, sinto que tem vontade de me perguntar onde é que eu estava até uma hora dessas no meio da semana.
Hoje sonhei com o Jardim Miriam, eu esquecia a bolsa no banco e tinha de correr atrás do ônibus na descida da minha rua, ele não me via e eu gritava chorando mas ao mesmo tempo ria porque inúmeros bracinhos saíam da janela me chamando, seguravam a bolsa e vozes de incentivo me fizeram descer até o ônibus com seus braços quase humanos que me entregaram contentes a bolsa vermelha e continuaram sua jornada sem mim. Mas a gente pega esse afeto e esquece que o ônibus tem olhos que espreitam por baixo da saia durante o instante interminável do degrau, olhos de catraca vigilantes no entreperna, espreitando o menor sinal de conforto enquanto deito a cabeça no ombro do ônibus esperando um afago paterno que tire os objetos cortantes de perto da menina pequena e desajeitada que inspira ternura infinita com seus sonhos lunáticos de astronauta.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

texto bem velho sobre o mamão da mila! - revivendo o HD antigo



Mamão

Ela se sentou sobre o pé direito, na cadeira da sala, e deixou o outro pé balançar entre as unhas do gato. Deitou a cabeça no braço apoiado na mesa de vidro, e foi comendo, displicente, a pequenas colheradas, um mamão. Aos poucos percebeu que o mamão a contentava naquela manhã; quem sabe até ele merecesse que o comessem direito. Ajeitou-se na cadeira, livrando sua meia preta das patas do gato e cruzando os pés. “Perna de índio!”, ouvira tantas vezes na escola e outras tantas já dissera quando dava aulas.
Foi comendo o mamão com cada vez mais avidez, admirada da doçura da fruta. A colher raspando tímida no pomo e trazendo rugas alaranjadas à boca. Chegava a sorrir, a menina do mamão doce. Via a fruta emagrecendo aos poucos, e pensava até que à última colherada me faria um telefonema -- você não sabe que mamão doce acabei de comer!
Acontece que, quase ao fim da refeição, um azedo insopitável lhe fez cuspir sobre o restante. Ficam nela uns lábios contraídos para o lado, uns olhos arregalados e uma testa franzida de explícita decepção. Ela olha o mamão traiçoeiro, com a última mordida cuspida com rancor dentro dele, e vê nele todo o mundo que algum dia já conheceu. Os amigos, os pais, professores de infância: todos grandes e frustrantes mamões. Tão doces na superfície, tão apaixonantes, até que chegava ao âmago deles e doía na língua o amargo, a podridão.
Quando me contou sobre os mamões de sua vida, primeiro pensei no meu âmago e temi que lhe tivesse azedado na língua. Depois temi que ela jamais tivesse me cavado tão fundo com sua colherzinha displicente, sem nunca sentir na boca todo o meu amargo.
Depois, pensei que meu mamão é diferente do dela. As minhas pessoas chegam totalmente desinteressantes, poucas me levam à primeira colherada. À segunda, quase nenhuma! Vão abrindo aos poucos o meu apetite, a colher indo e voltando mais fundo. Cuidadosa, embora com mais e mais vontade. Quase todas endurecem ou estragam antes de dar à minha colher suas energias mais íntimas. E o pequeno azedo na ponta da língua me dá mais encanto do que todas as camadas doces, o azedo escancarado sem disfarces, entregue sem vergonhas. Revelar o açúcar, qualquer um revela! Especial é o mamão que me deixa chegar àquilo que procura esconder. Quero um mamão que me deixe realmente prová-lo até o final, doce ou azedo. Nu e descascado à minha frente. E que, de tão devorado, não tema mais nada e se faça cada vez mais doce na minha colher.
Depois, ainda na mesa do mesmo bar em que ela reclamou das frutas da sua vida, lembrei, com desgosto, de que simplesmente detesto mamão.

domingo, 12 de abril de 2009

Mago


Quando eu tinha 13 anos arranjei um namorado que tinha quase 17, espinhas, boné e walk man. Eu decidi que a gente se apaixonaria um pelo outro, porque era assim que as coisas tinham de ser. Eu infernizava a vida dele com perguntas constantes e labirintos adolescentes dos quais ele nunca escapava sem me machucar: se um mago surgisse e revelasse que eu seria muito mais feliz com uma outra pessoa, você me levaria à festa e me deixaria do lado do homem e sumiria pra minha vida dar certo? Então ele pensava uns instantes -- ou fingia que pensava -- e depois respondia que sim, que me levaria, e eu chorava o resto do dia em discussões inférteis porque na verdade ele tinha desapego, não lutaria por mim, abriria mão de um grande amor sem qualquer sofrimento. Ou então ele dizia que não, que não me deixaria, e eu chorava porque ele tinha um amor egoísta, estava me usando e não se importava que eu não fosse feliz com ele.
Amando ou não esse menino cresceu do meu lado, quase cinco anos reprovado em testes de amor e devoção, mas não largava porque precisava de alguma coisa em mim. Talvez dos meus anseios pueris por um amor arrebatador, ou da minha própria devoção. Precisava de mim pra desligar a televisão e censurar as refeições gordurosas de moleque teimoso, precisava de alguém que não soubesse absolutamente nada da vida material, do funcionamento dos objetos, dos países, dos animais, do mundo. Alguém a quem ele pudesse inventar as respostas, ensinar jogos de baralho que ele aprendia na vida, na noite, nas viagens, e vinha mostrar à sua Penélope encantada. Precisava de alguém que risse de tudo que ele dizia, precisava de um retrato na carteira, cartas apaixonadas. Cinco anos porque precisava de alguém para os jogos mais femininos no videogame, alguém pra comprar cuecas, alguém pra dividir um cachorro, alguém pra lembrar o tempo todo, o dia inteiro, que era preciso amar.
Hoje eu encontro o moleque já sem espinhas e já com a televisão desligada, bebemos duas cervejas e eu dou risada de absolutamente tudo que ele diz e continuo não sabendo nada da vida material, que ele me explica com meias-verdades que eu absorvo sorrindo e depois reproduzo aos trancos preenchendo os vazios da memória e dizendo aos amigos que foi ele que disse. Hoje eu encontro o moleque e entramos nas mesmas discussões inférteis, qualquer coisa no sangue que ferve no borbulhar da argumentação. Mas já sabemos que, quando um mago explicou, pela última vez, que seríamos mais felizes assim, cada um foi pra sua festa encontrar os seus. Ele me levou pela mão e olhou fundo nos meus olhos quase adultos desejando boa sorte, e depois de umas cabeçadas e de um medo quase virginal, a gente caminhou muito bem.
Hoje encontro o moleque e durante a cerveja ou vinho ele me explica alguma coisa que eu não sei e eu dou risada de algo que mais ninguém riu, entendo errado qualquer frase óbvia, pergunto da frieza dos homens, e ele estuda a fragilidade das mulheres, seus pequenos bibelôs de ferro. E às vezes eu penso que era isso que o mago queria, era exatamente isso que o mago sabia que a gente precisava encontrar.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Continho

Pensei no celular, com a bateria quase acabando. Mas pensei de um jeito diferente, de um jeito literário. Quando um pensamento vem de um jeito literário ele vem gostoso, vertiginoso, a imagem se forma de repente num canto diferente do cérebro e eu fico com medo de que ela suma sem que eu tenha tempo de ver tudo, mas também não posso olhar demais se não a nitidez estraga todo o prazer sombrio de alguma coisa que promete ser mais do que está sendo. Pensei na bateria que talvez fosse o motivo de eu estar voltando pra casa, os dois ou três dias de duração da bateria são a medida das minhas idas e vindas.
Pensei na minha mãe, querendo saber se hoje eu vinha dormir, se amanhã, se ontem, e pensei em mim pensando que devia ir pra casa senão ficaria sem celular todo o feriado. E essa idéia da mãe que sabe que a filha volta quando acaba a bateria flutuou cor pastel no fundo da cabeça e eu decidi que encaixaria no próximo Exercício, talvez ainda hoje.
A Mila costumava perceber quando o pensamento vinha literário na minha cabeça, qualquer coisa no meu olho que se perdia e um frio na barriga e talvez porque nela também viesse o pensamento ela fungava feito um cão farejando o ar e brincava que sentia cheiro de continho em volta de nós. Minhas melhores vertigens são quando a Mila de repente vira um pensamento literário no fundo da minha mente e eu tenho pouco tempo pra chegar em casa e digitar a Mila embaçada atrás da cabeça, na fumaça do cigarro.
Mas depois pensei que é que nem fazer cocô. Se me vem a inspiração não posso demorar, não posso pensar muito nisso, tenho de ir até o banheiro fingindo pra mim que não sei de nada, que nada está acontecendo. Vou chegando e me convencendo de que vai ficar tudo bem se não der certo, outra hora quem sabe, não foi dessa vez. Mas na verdade eu sei que fico carregando pesado no corpo todos os cocôs e todos os textos que não deram certo.
Vou me aproximando e a idéia que eu fingia pra mim que não existia e ao mesmo tempo não podia deixar sumir no túnel escuro infinito de mim pode dar certo e pode não dar. Meu pai diz que eu escrevo que nem ele faz cocô. Mas, pra mim, fazer cocô é incrivelmente difícil.