Mamão
Ela se sentou sobre o pé direito, na cadeira da sala, e deixou o outro pé balançar entre as unhas do gato. Deitou a cabeça no braço apoiado na mesa de vidro, e foi comendo, displicente, a pequenas colheradas, um mamão. Aos poucos percebeu que o mamão a contentava naquela manhã; quem sabe até ele merecesse que o comessem direito. Ajeitou-se na cadeira, livrando sua meia preta das patas do gato e cruzando os pés. “Perna de índio!”, ouvira tantas vezes na escola e outras tantas já dissera quando dava aulas.
Foi comendo o mamão com cada vez mais avidez, admirada da doçura da fruta. A colher raspando tímida no pomo e trazendo rugas alaranjadas à boca. Chegava a sorrir, a menina do mamão doce. Via a fruta emagrecendo aos poucos, e pensava até que à última colherada me faria um telefonema -- você não sabe que mamão doce acabei de comer!
Acontece que, quase ao fim da refeição, um azedo insopitável lhe fez cuspir sobre o restante. Ficam nela uns lábios contraídos para o lado, uns olhos arregalados e uma testa franzida de explícita decepção. Ela olha o mamão traiçoeiro, com a última mordida cuspida com rancor dentro dele, e vê nele todo o mundo que algum dia já conheceu. Os amigos, os pais, professores de infância: todos grandes e frustrantes mamões. Tão doces na superfície, tão apaixonantes, até que chegava ao âmago deles e doía na língua o amargo, a podridão.
Quando me contou sobre os mamões de sua vida, primeiro pensei no meu âmago e temi que lhe tivesse azedado na língua. Depois temi que ela jamais tivesse me cavado tão fundo com sua colherzinha displicente, sem nunca sentir na boca todo o meu amargo.
Depois, pensei que meu mamão é diferente do dela. As minhas pessoas chegam totalmente desinteressantes, poucas me levam à primeira colherada. À segunda, quase nenhuma! Vão abrindo aos poucos o meu apetite, a colher indo e voltando mais fundo. Cuidadosa, embora com mais e mais vontade. Quase todas endurecem ou estragam antes de dar à minha colher suas energias mais íntimas. E o pequeno azedo na ponta da língua me dá mais encanto do que todas as camadas doces, o azedo escancarado sem disfarces, entregue sem vergonhas. Revelar o açúcar, qualquer um revela! Especial é o mamão que me deixa chegar àquilo que procura esconder. Quero um mamão que me deixe realmente prová-lo até o final, doce ou azedo. Nu e descascado à minha frente. E que, de tão devorado, não tema mais nada e se faça cada vez mais doce na minha colher.
Depois, ainda na mesa do mesmo bar em que ela reclamou das frutas da sua vida, lembrei, com desgosto, de que simplesmente detesto mamão.
Ela se sentou sobre o pé direito, na cadeira da sala, e deixou o outro pé balançar entre as unhas do gato. Deitou a cabeça no braço apoiado na mesa de vidro, e foi comendo, displicente, a pequenas colheradas, um mamão. Aos poucos percebeu que o mamão a contentava naquela manhã; quem sabe até ele merecesse que o comessem direito. Ajeitou-se na cadeira, livrando sua meia preta das patas do gato e cruzando os pés. “Perna de índio!”, ouvira tantas vezes na escola e outras tantas já dissera quando dava aulas.
Foi comendo o mamão com cada vez mais avidez, admirada da doçura da fruta. A colher raspando tímida no pomo e trazendo rugas alaranjadas à boca. Chegava a sorrir, a menina do mamão doce. Via a fruta emagrecendo aos poucos, e pensava até que à última colherada me faria um telefonema -- você não sabe que mamão doce acabei de comer!
Acontece que, quase ao fim da refeição, um azedo insopitável lhe fez cuspir sobre o restante. Ficam nela uns lábios contraídos para o lado, uns olhos arregalados e uma testa franzida de explícita decepção. Ela olha o mamão traiçoeiro, com a última mordida cuspida com rancor dentro dele, e vê nele todo o mundo que algum dia já conheceu. Os amigos, os pais, professores de infância: todos grandes e frustrantes mamões. Tão doces na superfície, tão apaixonantes, até que chegava ao âmago deles e doía na língua o amargo, a podridão.
Quando me contou sobre os mamões de sua vida, primeiro pensei no meu âmago e temi que lhe tivesse azedado na língua. Depois temi que ela jamais tivesse me cavado tão fundo com sua colherzinha displicente, sem nunca sentir na boca todo o meu amargo.
Depois, pensei que meu mamão é diferente do dela. As minhas pessoas chegam totalmente desinteressantes, poucas me levam à primeira colherada. À segunda, quase nenhuma! Vão abrindo aos poucos o meu apetite, a colher indo e voltando mais fundo. Cuidadosa, embora com mais e mais vontade. Quase todas endurecem ou estragam antes de dar à minha colher suas energias mais íntimas. E o pequeno azedo na ponta da língua me dá mais encanto do que todas as camadas doces, o azedo escancarado sem disfarces, entregue sem vergonhas. Revelar o açúcar, qualquer um revela! Especial é o mamão que me deixa chegar àquilo que procura esconder. Quero um mamão que me deixe realmente prová-lo até o final, doce ou azedo. Nu e descascado à minha frente. E que, de tão devorado, não tema mais nada e se faça cada vez mais doce na minha colher.
Depois, ainda na mesa do mesmo bar em que ela reclamou das frutas da sua vida, lembrei, com desgosto, de que simplesmente detesto mamão.
2 comentários:
eu lembro desse texto. você me mostrou quando a gente tava se conhecendo (da primeira vez).
linda a foto nova!
texto maravilhoso...amanhã sem duvidas vou ler todos...hã encontrei por acaso,acho que tinha que ser assim.eu estava procurando fotos de cadeiras de sala.Jà esta em meus favoritos.
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