sexta-feira, 31 de julho de 2009

Notas para a definição de um leitor ideal - ALBERTO MANGUEL

O leitor ideal é o escritor no exato momento que antecede a reunião das palavras na página.
O leitor ideal não segue uma história: participa dela.
Um famoso programa da bbc sobre livros infantis começava, invariavelmente, com o animador perguntando: "Vocês estão sentados confortavelmente? Então vamos começar". O leitor ideal é também o sentador ideal.
Para o leitor ideal todos os recursos são familiares.
Para o leitor ideal todas as brincadeiras são novas.
"É preciso ser um inventor para ler bem." Ralph Waldo Emerson.O leitor ideal tem uma aptidão ilimitada para o esquecimento. Ele pode afastar de sua memória o conhecimento de que Dr. Jekill e Mr. Hyde são a mesma pessoa, que Julien Sorel terá sua cabeça cortada, que o nome do assassino de Roger Ackroyd é Fulano de Tal.
O leitor ideal sabe aquilo que o escritor apenas intui.
O leitor ideal subverte o texto. O leitor ideal não pressupõe as palavras do escritor.
O leitor ideal é um leitor cumulativo: sempre que lê um livro ele acrescenta uma nova camada de lembranças à narrativa.
Todo leitor ideal é um leitor associativo. Lê como se todos os livros fossem obra de um autor intemporal e prolífico.
Depois de fechar o livro, o leitor ideal sente que se não o tivesse lido o mundo seria mais pobre.
O leitor ideal tem um senso de humor perverso.
O leitor ideal jamais contabiliza seus livros.
O leitor ideal é ao mesmo tempo generoso e ávido.
O leitor ideal lê toda literatura como se fosse anônima.
O leitor ideal gosta de usar o dicionário.
O leitor ideal julga um livro por sua capa.
Ao ler um livro de séculos atrás, o leitor ideal sente-se imortal.
Paolo e Francesca não eram leitores ideais, pois confessaram a Dante que depois de seu primeiro beijo pararam de ler.
Leitores ideais teriam se beijado e continuariam lendo. Um amor não exclui o outro.
O leitor ideal compartilha a ética de Dom Quixote, o desejo de Madame Bovary, a luxúria da esposa de Bath, o espírito aventureiro de Ulisses, a integridade de Holden Caufield, ao menos no espaço textual.
O leitor ideal percorre as trilhas conhecidas. "Um bom leitor, um leitor importante, um leitor ativo e criativo é um leitor que relê." Vladimir Nabokov.
O leitor ideal é politeísta.
Robinson Crusoe não é um leitor ideal. Lê a Bíblia para encontrar respostas. Um leitor ideal lê para encontrar perguntas.
Todo livro, bom ou ruim, tem seu leitor ideal.
Para o leitor ideal, cada livro é lido, até certo ponto, como sua própria autobiografia.
Às vezes, um escritor pode esperar muitos séculos para encontrar seu leitor ideal. Blake demorou 150 anos para encontrar Northrop Frye.
O leitor ideal de Stendhal: "Eu escrevo para apenas cem leitores, para seres infelizes, amáveis, encantadores, nunca moralistas ou hipócritas, aos quais eu gostaria de agradar; só conheço um ou dois deles".
O leitor ideal conhece a infelicidade.
Os leitores ideais mudam com a idade. Aquele que aos catorze anos foi o leitor ideal dos Vinte poemas de amor de Neruda já não o é aos trinta. A experiência apaga o brilho de certas leituras.
Pinochet, que proibiu Dom Quixote por pensar que esse livro incitava à desobediência civil, foi seu leitor ideal.
O leitor ideal jamais esgota a geografia do livro.
O leitor ideal nunca pensa: "Se ao menos...".
Anotações nas margens indicam um leitor ideal.
O leitor ideal faz proselitismo.
O leitor ideal é capaz de se apaixonar por um dos personagens do livro.
O leitor ideal não se preocupa com os anacronismos, com a verdade documentada, com a exatidão histórica, com a precisão topográfica. O leitor ideal não é um arqueólogo.
O leitor ideal é um cumpridor implacável das regras e normas que cada livro cria para si mesmo.
"Há três tipos de leitor: um, que aprecia o livro sem julgá-lo; três, que o julga sem apreciá-lo; outro, no meio, que o julga enquanto o aprecia e o aprecia enquanto o julga. O último tipo verdadeiramente reproduz uma obra de arte; seus exemplos não são numerosos." Goethe, em carta a Johann Friedrich Rochlitz.
Os leitores que cometeram suicídio depois de ler Werther não eram ideais, mas simplesmente leitores sentimentais.
Os leitores ideais quase nunca são sentimentais.
O leitor ideal quer chegar ao final do livro e ao mesmo tempo saber que o livro jamais terminará.
O leitor ideal nunca se impacienta.
O leitor ideal não liga para os gêneros.
O leitor ideal é (ou parece ser) mais inteligente do que o escritor; o leitor ideal não usa isso contra ele.
Há um momento em que cada leitor se considera o leitor ideal.
Boas intenções não são suficientes para produzir um leitor ideal.
O Marquês de Sade: "Só escrevo para quem é capaz de me entender, e eles me lerão sem perigo".
O Marquês de Sade está errado: o leitor ideal está sempre em perigo.
O leitor ideal é alguém com quem o autor não se importaria em passar uma noite bebendo uma taça de vinho.
Um escritor nunca é seu próprio leitor ideal.
A literatura não depende de leitores ideais, mas apenas de leitores suficientemente bons.


(Alberto Manguel, À mesa com o Chapeleiro Maluco - ensaios sobre corvos e escrivaninhas - grifos e resumo meus)

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Melhor amigo (para ler teatral-histericamente)

Lorde, olha pra mim, Lorde, não é possível que você não me escute nunca. Eu não consigo entender, cachorro, o que foi que eu te fiz, não consigo. As pessoas dão risada mas quando eu paro pra pensar tudo isso é muito sério, tudo isso dói, você me dói, Lorde. Não acredito que você não tenha pena, os cachorros costumam ter pelo menos um pouco de piedade. Olha pra mim! Animal sádico.
Não finge que não está me ouvindo, sua bola peluda, seu monstrinho, agora vai ser assim aqui nessa casa, vou tratar você como merece... Continua me ignorando, o bichinho. Não, Lorde, é sério mesmo, vem aqui olhar pra mim quando falo. Você vai viver mais o quê? Uns dez anos! Dez anos com esse cachorro, um estranho dentro da minha casa.
Mais dez anos do seu lado passeando na calçada sem que você seja capaz de um bom-dia, uma lambida, uma orelha erguida que seja. Escuta, Lorde, o mundo se divide em pessoas que compram gatos e pessoas que precisam de cachorros. Eu procurei um cachorro, você entende? E eu não sei o que querem de mim com essa tortura, eu precisei de um cachorro, mas você parece um cretino de um gato que vai passar dez anos na minha casa sem cruzar os olhos nos meus. Os gatos pelo menos encaram, erguem o rabo assustadores. Olha pra mim, pelo amor de deus!
O que querem de mim? O que foi que eu fiz, eu nunca ergui um dedo contra você! Se eu estivesse sozinha, sozinha é diferente. A gente chega em casa exausta, esquenta a janta, toma uma ducha, dia-sim-dia-não liga a tevê. Mas eu, eu abro a porta da sala e vejo você no fim do corredor, e não é capaz de abanar um segundo a porra do rabo! Estático, casmurro, pedante. Eu detesto você, Lorde, você não tem o direito de fazer isso comigo!
Quantos meses você ainda vai passar com o focinho embaixo dessa porta? Ele não volta, cachorro, aceita isso! Escuta, ele não volta! Que coisa, o homem chegava tarde da noite, fazia um afago distraído na sua cabeça e reclamava de deitar você naquela barriga enorme, porque você espera nessa maldita porta?!
Eu devo ser insuportável mesmo. Dez anos assim, meu deus. E se eu te achar morto no meio da casa um dia, hein? Vai ser que nem achar uma mariposa, viva ou morta, tanto faz. Só vou tirar você dali e esquentar a comida, vai ser assim, Lorde? E se um dia você me achar morta, hein? Vai ser capaz de dar um mísero latido pra chamar o vizinho?
E à noite? E à noite, Lorde? Eu não suporto mais as noites. Termina o filme e eu saio do quarto devagar, silenciosa, sempre com a esperança de que vou encontrar você feliz trazendo um brinquedinho, de que você veio fazer amizade, veio roçar o nariz no dorso da minha mão e pedir colo com manhas de cachorrinho. Depois eu finjo pra mim que não me importo e busco água na cozinha. No caminho, sua respiraçãozinha agitada e esses olhinhos vidrados na porta da sala, ele não volta, pelo amor de deus, entende isso e vem dormir aqui dentro. Olha só, Lorde, eu forrei sua caminha bem quente, olha o ossinho, Lorde! Olha essa porcaria de ossinho!

quinta-feira, 23 de julho de 2009

The Sea

Olho o mar sozinha com o poodle cansado no colo. Um americano imaginário senta ao lado com o ar cinematográfico de indiferença.
-- Do you think it's beautiful?
--what? the sea? ... well... i've never heard of anyone who said it wasn't beautiful... It's a whole bunch of water that moves itself. Water moving itself has gotta be beautiful.
--like the rain, maybe...
--yeah, but the rain is just water falling from the sky. The sea is not falling. The sea knows perfectly what it's doing.
O americano desapareceu e o poodle continua cansado olhando pra mim, não para o mar. Tenho a impressão de que as pessoas em volta se perguntam se o cachorro entende mesmo inglês.
Não posso ficar tanto tempo sozinha.

sábado, 4 de julho de 2009

Para falar em cima de uma mesa qualquer


A gente marca a passagem do tempo traçando a altura da criança no batente da porta e vendo fotografia, mas hoje eu vi o tempo estampado, carpido na minha cara-de-pau. É isso que mostra a idade, a indiferença às situações tão desafiadoras da infância.

Eu queria que o pizzaiolo me desse um tantinho de massa pra brincar na mesa. Ele sempre dava, era só pedir, mas eu importunava a minha mãe até que ela mesma fosse até ele e entregasse na minha mão o montinho cheirando a ovo com farinha.

Com 14 anos eu morria de vergonha de comprar os bonequinhos coloridos de açúcar, Ai, moço, não sei, acho que ele gosta do Bob Esponja... desse peixe também, isso, o Nemo, pode colocar dois Nemos e um desse cachorro, ele adora cachorrinho. Com 16, ganhei um celular, e a conversa absurda já começava na fila, Lindinho, acho que hoje não tem do Barney, não serve um palhacinho? Você disse que os de cor forte são mais gostosos, não são? então!

Entrar na farmácia para comprar camisinha era uma missão coletiva, chamava as amigas para que a conversa ficasse mais rica em detalhes: um irmão folgado que talvez tivesse encomendado um pacote de preservativos. Umas lixas de unha, xampu e um desodorante pra disfarçar, É só ele ouvir que estou vindo na farmácia que já vem pedir favor. A mera idéia de que o caixa pudesse me imaginar transando tornava a compra insuportável, se tivesse troco, então! Com certeza ele aproveitaria pra subir os olhos da minha cintura até a minha boca, sempre esse, o trajeto. Mais tarde, o que me perturbava era a idéia de que o caixa achasse que eu poderia eventualmente estar constrangida.

O tempo passou tirando uma a uma minhas vergonhas graciosas, enchendo de pragmatismo minha rápida passada na farmácia, quarenta e cinco centavos para facilitar o troco. Não deixei de comprar bonequinhos coloridos de açúcar, mas a moça já sabe que quero os de cores fortes, Esse vermelho daqui, o jacaré, o ursinho, ah não é ursinho? isso, o sapo. Não percebo os pensamentos dos outros, o tempo apagou o riso perverso e o lúdico que eu via no rosto de todo o mundo. Hoje o meu cheiro depende do que está no mostruário de perfumes da Onofre – se algum vendedor me oferece ajuda digo que vou espirrar no pescoço pra depois ver se meu namorado gosta, Quanto custa esse mesmo? O tempo que me tirou o frio na barriga e me encheu de apatia e pressa.

Mas agora, quando me imaginei subindo aqui e dizendo o que quer que fosse pra vocês, percebi que o tempo não me deixou, e talvez nunca vá me deixar imune a esse tipo de vertigem. Pânico só de pensar no olhar de vocês, na maneira como os pés se voltam um para o outro, ou como a minha barriga marca o elástico da calcinha quando eu respiro, desespero imaginando que iam rir de mim quando eu não soubesse onde pôr as mãos.

Algumas situações ainda fazem a gente se sentir uma adolescente comprando camisinhas.