quarta-feira, 27 de abril de 2011

Esticar o sábado


Esticar o sábado nas suas saias de lycra até a barra cobrir os joelhos vacilantes de uísque e salto alto. Esticar o sábado até as pontas cobrirem o sol dessas manhãs tão precoces de domingo.

Prolongar a noite em infinitos copos gelados, amolecer o sorriso doído que lateja duvidoso nos lábios, um sorriso torcido, cada vez mais consciente de tudo que ficou lá fora, a lycra fina do sábado que não esconde nada. É preciso explorar o sábado até onde ele puder agüentar, até que não haja mais ninguém em volta, até que o novo desconhecido adormeça barulhento, a respiração de gim-cigarro-e-halls-preto e nem mais o sorriso doído resista às frestas explícitas do mormaço matinal na janela.

Desidratar a cabeça até que não sobre espaço para o fluido ruidoso da semana pesando em bolhas por trás dos olhos: estragar, sabotar, arruinar, condenar o domingo à sua natural impossibilidade. Dedicar a noite ao absurdo, deixá-la entorpecer os músculos, umedecer as pernas no vazio pulsante da saia. Esticar a saia e o sábado até cobrir o dia, descobrir alguém que faça cinco minutos de diferença.

Destruir o domingo até que não caibam as antecipações da segunda-feira, a solidão inacreditável da segunda-feira. Passar o domingo com os olhos inchados, grudados, fechados: não abrir os olhos até o próximo sábado. Não abrir os olhos porque durante todos os dias não há quase ninguém que se queira ver na luz fosforescente dos ofícios.

Prolongar o sábado no colorido piscante nos sorrisos tão conscientes das horas passando no frio da rua. Sair pra fumar e perceber o amarelado das nuvens denunciando o domingo, massacrar o domingo numa carona semiperigosa pruma casa estranha. Esticar o sábado até que já não haja domingo, até que já não haja semana, até que já não haja.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Criança que fica


Uma menina, uma criança, com um pouco de pasta de dente seca na bochecha, a boca aberta e três cachos suados grudados na testa. Essa menina, essa criança, sentada no chão de terra com a saia arreada, esfregando os pés nos gravetos, fica ali como se ali fosse o único lugar do mundo.
Apesar da pasta de dente na bochecha a menina também tem migalhas de bolacha de chocolate no queixo, no lábio pequeno rachado de sol. Franze os olhos no mormaço e lança um punhado de terra sobre os próprios cabelos.
Pode ser que ninguém esteja olhando pra ela, pode ser que ninguém nem saiba onde ela está – vira-latas, que uma hora descobrem o caminho de casa. Um riachozinho marrom corre lento muito perto dela, vai molhando a terra de esgoto, duas latinhas de refrigerante encalham entre os tijolos quebrados.
Logo diante da menina passa a estrada, uns caminhões barulhentos, ela olha as rodas e franze de novo os olhos querendo na verdade proteger os ouvidos. Um pouco da água da estrada respinga nela, e ela ri. Fica ali rindo um riso à toa, essa criança que talvez nem saiba falar, e que ainda assim tem pasta de dente na bochecha, porque alguém teve o cuidado de escovar-lhe os dentinhos, mesmo que fosse antes da bolacha, mas também já não se sabe onde está todo o mundo, a menina ali na beira da estrada matando formigas com o calcanhar.
Atrás dela os barracos já meio no chão, umas paredes solitárias, só a armação da janela anunciando que ali alguma vez alguém com os cotovelos tranquilos pode ter falado sobre a chuva que vinha vindo, ou quem sabe as mãos tensas no apoio para gritar o nome de alguém, da menina, da criança, sozinha na beira da estrada, gritar e chamar, entregar um biscoito pela janela, e agora essa coisa de nem ter mais casa e só ter a janela.
A menina sozinha cutucando a terra e diante dela os caminhões passando e atrás mais ninguém, as tábuas, tijolos, janelas, as lajes todas no chão. Uma nuvem de poeira que vai baixando lenta, e a menina franze os olhinhos de novo, doídos.
A criança que ninguém pode ter esquecido, ninguém esquece uma menina com a pasta de dente rachando na bochecha e as migalhas frescas de biscoito, não é a garota que no meio da bagunça, dos gritos, das malas, da polícia, dos puxões, do fogo, acabou ficando pra trás, não pode ser uma menina de quem ninguém vai se lembrar na hora de armar tudo de novo em outra estrada.

A criança ali na beira da estrada diante das barracas vazias, caídas, é a criança que fica quando tudo acaba, e vai crescer, sentada no mesmo lugar, e quem sabe um dia vai cobrar as cantorias das janelas que eram dela, todas as janelas dela. A menina sozinha com os pezinhos na terra e a saia arreada e os olhos franzidos e o sorriso confuso é a criança que fica, que sempre fica, insistente, em toda casa que derrubam, em toda vila que cai.