Uma menina, uma criança, com um pouco de
pasta de dente seca na bochecha, a boca aberta e três cachos suados grudados na
testa. Essa menina, essa criança, sentada no chão de terra com a saia arreada,
esfregando os pés nos gravetos, fica ali como se ali fosse o único lugar do
mundo.
Apesar da pasta de dente na bochecha a
menina também tem migalhas de bolacha de chocolate no queixo, no lábio pequeno
rachado de sol. Franze os olhos no mormaço e lança um punhado de terra sobre os
próprios cabelos.
Pode ser que ninguém esteja olhando pra
ela, pode ser que ninguém nem saiba onde ela está – vira-latas, que uma hora
descobrem o caminho de casa. Um riachozinho marrom corre lento muito perto
dela, vai molhando a terra de esgoto, duas latinhas de refrigerante encalham
entre os tijolos quebrados.
Logo diante da menina passa a estrada, uns
caminhões barulhentos, ela olha as rodas e franze de novo os olhos querendo na
verdade proteger os ouvidos. Um pouco da água da estrada respinga nela, e ela
ri. Fica ali rindo um riso à toa, essa criança que talvez nem saiba falar, e
que ainda assim tem pasta de dente na bochecha, porque alguém teve o cuidado de
escovar-lhe os dentinhos, mesmo que fosse antes da bolacha, mas também já não
se sabe onde está todo o mundo, a menina ali na beira da estrada matando
formigas com o calcanhar.
Atrás dela os barracos já meio no chão,
umas paredes solitárias, só a armação da janela anunciando que ali alguma vez
alguém com os cotovelos tranquilos pode ter falado sobre a chuva que vinha
vindo, ou quem sabe as mãos tensas no apoio para gritar o nome de alguém, da
menina, da criança, sozinha na beira da estrada, gritar e chamar, entregar um
biscoito pela janela, e agora essa coisa de nem ter mais casa e só ter a
janela.
A menina sozinha cutucando a terra e
diante dela os caminhões passando e atrás mais ninguém, as tábuas, tijolos,
janelas, as lajes todas no chão. Uma nuvem de poeira que vai baixando lenta, e
a menina franze os olhinhos de novo, doídos.
A criança que ninguém pode ter esquecido,
ninguém esquece uma menina com a pasta de dente rachando na bochecha e as
migalhas frescas de biscoito, não é a garota que no meio da bagunça, dos
gritos, das malas, da polícia, dos puxões, do fogo, acabou ficando pra trás,
não pode ser uma menina de quem ninguém vai se lembrar na hora de armar tudo de
novo em outra estrada.
A criança ali na beira da estrada diante
das barracas vazias, caídas, é a criança que fica quando tudo acaba, e vai
crescer, sentada no mesmo lugar, e quem sabe um dia vai cobrar as cantorias das
janelas que eram dela, todas as janelas dela. A menina sozinha com os pezinhos
na terra e a saia arreada e os olhos franzidos e o sorriso confuso é a criança
que fica, que sempre fica, insistente, em toda casa que derrubam, em toda vila
que cai.
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