domingo, 29 de abril de 2012

Crepom, celofane e cartolinas






Madalena de cócoras na concentração da tesoura, mil papelotes vermelho-cintilantes acumulando no chão entre os pés descalços, as unhas também vermelhas no piso gelado, Ainda na toalha, Leninha!, põe logo a roupa, vai. Água nas coxas pingando hora ou outra no papel picado, Um segundo, Estela, vai me penteando o cabelo.
Na cama Teodoro já fantasiado mexia distraído nas plumas da varinha de Estela, talvez desinteressado da pressa, dos recortes, do cabelo, da toalha, ou talvez fingindo desinteresse de todas as coisas que quem sabe amasse demais. Madalena sem tirar os olhos do papel e da tesoura, e os cachos molhados resistindo à escova que parecia violenta e de repente sucumbia no carinho infinito de Estela, Pra quê tanto papelzinho, Lena, ufa...!
E depois Madalena em trajes de guerreira quem sabe um pouco engraçados de fragilidade e timidez, e Teodoro lançando comentários distraídos, ou mais uma vez fingindo distração de tudo aquilo que realmente importa, Mais parece uma escoteira, Lena. Ele com apenas um lençol caído no corpo, pendente num ombro, para ser qualquer coisa que se possa ser com um lençol assim, normalmente um grego, Põe pelo menos isso na cabeça, Teozito.
As pessoas do ônibus com qualquer coisa diferente nos lábios e sobrancelha, essa qualquer coisa que surge nos ônibus quando entram fadas, guerreiras e deuses gregos com suas gargalhadas, e as pessoas já não sabem se ficaram de mau humor ou se querem sorrir, e por isso talvez só desviem o olhar pra onde não haja a visão insuportável dessa invasão de alegria. Madalena segurando um saco com seus papeizinhos e com a outra mão tentando tirar uma foto dos três e sempre na foto um olhar furtivo de um passageiro de trás num susto com o flash.
A noite sem nada demais, um vento entre chuvas, e já nem é carnaval, e a pista de dança quase vazia que eles adoram e ocupam como se os três fossem tantos, como se os três ali fossem muitos, como se eles fossem todos. E as rodas em cirandas súbitas, o samba, as marchas, o saudosismo de épocas que eles não viveram mas poderiam ter vivido, poderiam estar ali fazendo as mesmas coisas em todas as épocas, em todos os mundos.
Madalena girando e caindo nos dois em vários beijos, os três em tortos abraços, ou as duas num salto sobre Teo que mais uma vez se distraía com o rótulo de alguma garrafa – ou na verdade de novo só finge não ver o que talvez ame demais –, que então aperta as duas contra o lençol do seu corpo já cheirando a cerveja, desodorante e reminiscências de lança-perfume.
E num abraço desses Madalena rasga a sacola e atira para o alto seus papéis picados, que descem todos num giro lento, mil corações vermelho-cintilantes flutuando devagar enquanto todo o resto passa rápido em volta deles, enquanto todos correm, pulam, sambam, os corações a descer em voltas vacilantes sobre os três, os olhos encantados, embaçados de esperar a queda, de desacreditar no pouso de tantos celofanes rodopiando laminados, como se fosse impossível haver mais amor que ali onde choviam os coraçõezinhos recortados na pressa do horário do último ônibus.
Na volta os olhos doídos do sol da manhã, e os passageiros que já não estranham a invasão exausta de fadas sem varinha, guerreiras puídas e gregos cambaleantes de cicuta. E os três deitam as cabeças uns nos outros e acordam na mesma cama apertada, ainda rindo, e vão encontrando entre os lençóis tantos corações cintilantes, amassados, molhados. Mesmo no banho depois vão tirando tantos corações nos recônditos mais inusitados, entre os cachos, nos seios, pêlos, umbigos, tantos corações atravancando o ralo e estancando a água em redemoinhos avermelhados de crepom, celofane e cartolinas.
E embora os corações tivessem caído lentos sobre eles foi tudo em volta passando tão rápido, em escovadas violentas do tempo, na distração de quem de fato se desatenta do que mais importa. Estela se cansa de acordar sozinha, doída das noites já sem varinha, sem deuses, sem guerreiras.
O tempo rasgou tudo mal cortado na pressa talvez do último ônibus, mas Estela acorda –sozinha e doída –, e toda manhã acha entre os lençóis pequenos corações laminados de crepom, celofane e cartolinas, grudados na fronha, no pescoço, no ventre, escorrendo pelo ralo do chuveiro, caindo de dentro das roupas do armário, das calcinhas, dos vestidos.
Não adianta lançá-los ao alto, que já não há olhos embaçados que os recebam num giro sincero de amor. Não há mais onde caírem tantos corações que talvez já nem saibam encantar.