Madalena de cócoras na concentração da tesoura, mil papelotes
vermelho-cintilantes acumulando no chão entre os pés descalços, as unhas também
vermelhas no piso gelado, Ainda na toalha, Leninha!, põe logo a roupa, vai. Água
nas coxas pingando hora ou outra no papel picado, Um segundo, Estela, vai me
penteando o cabelo.
Na cama Teodoro já fantasiado mexia distraído nas plumas
da varinha de Estela, talvez desinteressado da pressa, dos recortes, do cabelo,
da toalha, ou talvez fingindo desinteresse de todas as coisas que quem sabe
amasse demais. Madalena sem tirar os olhos do papel e da tesoura, e os cachos
molhados resistindo à escova que parecia violenta e de repente sucumbia no
carinho infinito de Estela, Pra quê tanto papelzinho, Lena, ufa...!
E depois Madalena em trajes de guerreira quem sabe um
pouco engraçados de fragilidade e timidez, e Teodoro lançando comentários
distraídos, ou mais uma vez fingindo distração de tudo aquilo que realmente
importa, Mais parece uma escoteira, Lena. Ele com apenas um lençol caído no
corpo, pendente num ombro, para ser qualquer coisa que se possa ser com um lençol
assim, normalmente um grego, Põe pelo menos isso na cabeça, Teozito.
As pessoas do ônibus com qualquer coisa diferente nos lábios e
sobrancelha, essa qualquer coisa que surge nos ônibus quando entram fadas,
guerreiras e deuses gregos com suas gargalhadas, e as pessoas já não sabem se
ficaram de mau humor ou se querem sorrir, e por isso talvez só desviem o olhar
pra onde não haja a visão insuportável dessa invasão de alegria. Madalena
segurando um saco com seus papeizinhos e com a outra mão tentando tirar uma
foto dos três e sempre na foto um olhar furtivo de um passageiro de trás num
susto com o flash.
A noite sem nada demais, um vento entre chuvas, e já nem
é carnaval, e a pista de dança quase vazia que eles adoram e ocupam como se os
três fossem tantos, como se os três ali fossem muitos, como se eles fossem
todos. E as rodas em cirandas súbitas, o samba, as marchas, o saudosismo de
épocas que eles não viveram mas poderiam ter vivido, poderiam estar ali fazendo
as mesmas coisas em todas as épocas, em todos os mundos.
Madalena girando e caindo nos dois em vários beijos, os
três em tortos abraços, ou as duas num salto sobre Teo que mais uma vez se
distraía com o rótulo de alguma garrafa – ou na verdade de novo só finge não ver
o que talvez ame demais –, que então aperta as duas contra o lençol do seu
corpo já cheirando a cerveja, desodorante e reminiscências de lança-perfume.
E num abraço desses Madalena rasga a sacola e atira para
o alto seus papéis picados, que descem todos num giro lento, mil corações
vermelho-cintilantes flutuando devagar enquanto todo o resto passa rápido em
volta deles, enquanto todos correm, pulam, sambam, os corações a descer em
voltas vacilantes sobre os três, os olhos encantados, embaçados de esperar a queda, de
desacreditar no pouso de tantos celofanes rodopiando laminados, como se fosse
impossível haver mais amor que ali onde choviam os coraçõezinhos recortados na
pressa do horário do último ônibus.
Na volta os olhos doídos do sol da manhã, e os
passageiros que já não estranham a invasão exausta de fadas sem varinha,
guerreiras puídas e gregos cambaleantes de cicuta. E os três deitam as cabeças
uns nos outros e acordam na mesma cama apertada, ainda rindo, e vão encontrando
entre os lençóis tantos corações cintilantes, amassados, molhados. Mesmo no
banho depois vão tirando tantos corações nos recônditos mais inusitados, entre
os cachos, nos seios, pêlos, umbigos, tantos corações atravancando o ralo e
estancando a água em redemoinhos avermelhados de crepom, celofane e cartolinas.
E embora os corações tivessem caído lentos sobre eles foi
tudo em volta passando tão rápido, em escovadas violentas do tempo, na
distração de quem de fato se desatenta do que mais importa. Estela se cansa de
acordar sozinha, doída das noites já sem varinha, sem deuses, sem guerreiras.
O tempo rasgou tudo mal cortado na pressa talvez do último
ônibus, mas Estela acorda –sozinha e doída –, e toda manhã acha entre os
lençóis pequenos corações laminados de crepom, celofane e cartolinas, grudados
na fronha, no pescoço, no ventre, escorrendo pelo ralo do chuveiro, caindo de
dentro das roupas do armário, das calcinhas, dos vestidos.
Não adianta lançá-los ao alto, que já não há olhos
embaçados que os recebam num giro sincero de amor. Não há mais onde caírem
tantos corações que talvez já nem saibam encantar.
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Lindo...
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