quinta-feira, 26 de julho de 2012

A Casa do Amor



Duas mãos de tinta cor de berinjela na parede da direita, atrás do sofá amarelo e florido. Quadros, muitos quadros – na verdade pôsteres de filmes –, abajures estratégicos, e a mesa perfeita para o jantar em exatamente cinco amigos, ou oito se ocuparem o sofá.
No quarto a cama grande com os lençóis macios, a uns dois ou três metros da cama do cachorro, que cresceu ali desejando somente o que desejam os cachorros e os amantes: que absolutamente nada mude. E a pergunta é quem foi que deixou o amor sair?
Logo aquele amor que diante da porta sempre escancarada a todo tempo sorriu e ficou, ficou como se não houvesse sentido em ir a lugar algum quando se mora justamente na casa do amor. Logo aquele amor que podia ir aonde quer que fosse e só ficava porque ali era o melhor lugar para ficar.
Quem foi que deixou o amor sair quando estava estampado nos olhos tímidos de culpa e inquietude que ele saía para nunca mais ser o mesmo. Talvez ainda segurando a maçaneta ele tenha se voltado para trás e olhado uma última vez para os dois sentados no sofá alisando o cachorro e quem sabe tenha até mesmo dito que só ia comprar cigarros e já voltava, mas a voz saiu de tal forma que os dois naquela hora já sabiam, e alisavam o cachorro mais forte, e mais rápido, pensando que podiam fazer alguma coisa pra que ele não partisse – qualquer coisa, nem que fosse trancar aquela porta sempre tão docemente aberta –, mas esperando também que no lugar dele outro amor mais convicto viria.
E o amor fechou bem devagar a porta atrás de si, quase sem ruído, quase sem doer, e antes disso ao invés de apagar a luz ele a acendeu, deixou brilhando uma luz insuportável e feia, que esmiuçava os detalhes das peles ao amanhecer, que fazia suar, que encardia o roxo da parede e mostrava que nenhum dos pôsteres de filmes significava qualquer coisa pra eles. Saiu e deixou os dois ali como que sem saber onde ficava o interruptor, sem acertar o abraço, a conversa, o sono, sem saber nem mesmo alisar o cachorro – o cachorro que, só ele, não entendia.
Talvez a pergunta não seja nem quem foi que deixou o amor sair, mas sim quem foi que impediu que ele entrasse de volta quando ele bateu à porta, sem muita certeza, sem muita saudade, mas disposto a ficar, a tentar, a ocupar de novo os espaços e harmonizar as luzes. Ele batia à porta quem sabe ansioso principalmente pela alegria do cachorro que talvez ainda esperasse a retomada do espetáculo crônico da felicidade.
E ele bateu, e os dois se olharam, sem dizer nada – o cachorro latia sem parar diante da porta --, mas eles não abriram, talvez por medo de olhar na cara daquele amor andarilho, que por tanto tempo sumira assim, e que voltava não se sabe com que mãos, com que olhos, com que anseios, o amor que talvez fosse, ele próprio, um estranho ali. Ouviram os passos distanciando no jardim, e finalmente souberam que a casa – que já não era do amor – não era a casa de ninguém.
Agora, sem nunca mais receber notícias daquele amor, eles descobriram que os móveis simplesmente não cabem em casa nenhuma. Por qualquer razão que dói mais que a luz indecente que ele deixou ardendo contra os olhos deles, é preciso mudar completamente tudo, cada centímetro da tão preciosa bagagem, porque não há um novo amor no mundo cujo lar contemple o que se era e o que se poderia ser.
E já nem o cachorro espera.

sábado, 21 de julho de 2012

Sobre as agulhas nessa longa tarde fria


 


O sol bate de um lado só da mesa, e
--Talvez seja melhor dessa vez você sentar pra cá, ta mais quentinho.
Como sempre, ele veio menos agasalhado do que seria razoável, e ela pensa que essa mania irritante seja medo da proteção – ou medo de mostrar que é preciso alguma proteção. Ou talvez seja apenas uma incredulidade sobre a sordidez climática: faz um frio impossível para uma tarde tão linda.
Eles estão aí pra mais um espetáculo gastronômico sempre muito tenso – pra ela, talvez – porque a qualquer momento ele pode mudar os humores, de repente uma azeitona que não se solte do caroço ou uma mensagem banal que acabe por chegar no celular dela. A rede frágil da alegria a se a se embeber em vinho.
 Completamente sentados na mesa do almoço, sentados nas mesas dos bares, jantares, nas cadeiras dos cinemas, no sofá. Completamente sentados porque se estivessem de pé ficaria muito claro que não há para onde ir. Não há caminho possível juntos, e no entanto
--A gente podia viajar no fim de semana que vem
e ela sonha com a praia como se lá fossem fazer sentido, como se cada novo local em que se sentassem pudesse trazer uma nova hipótese desse caminho que desde o início é tão visivelmente inexistente – se fosse possível ao inexistente tornar-se assim visível. Não há caminho para um lugar que não se sabe explicar onde é.
--Quem sabe o Chile, no feriado
E cada palavra tem um peso que não se alivia, cada garfada a dificultar na língua porque a todo tempo sentados, muito sentados, unicamente porque de pé não se abraçam, não se tocam, não se sustentam. Porque de pé uma hora é preciso ir a algum lugar e desde o começo era muito claro que não havia um lugar a que pudessem de fato caminhar juntos.
O peso contraditório daquilo que não pode ser eterno, e por não ser eterno rouba o tempo de tudo que talvez já devesse ter começado, porque apenas se pode de fato começar algo que se prolongue. Eles ali estão apenas sentados. Ainda que estejam sentados há mais de um ano, é muito claro que jamais começaram nada.
E ao garçom pedem as mesmas coisas de sempre em busca da alegria garantida, do contentamento inequívoco, porque alguma coisa ali precisa ser segura, alguma coisa precisa se repetir com a constância e certeza que teria o amor. Como se conhecer de antemão o que se vai comer fosse equivalente a acordar do lado de alguém tão conhecido e amado como o macarrão de sempre do restaurante favorito.
Ela abre a bolsa e a nécessaire pra procurar qualquer coisa sem importância, talvez um espelho, um comprimido, e acaba tirando sem querer uma agulha que talvez tenha se despregado de um pequeno carretel para rasgos repentinos – não que ela saiba costurar – e passa a segurar a agulha num desconcerto sem solução, desnorteada com a impossibilidade de apoia-la em qualquer lugar.
Tenta prendê-la na toalha da mesa, no guardanapo, tenta espetar num palito, qualquer coisa que pudesse proteger o mundo daquela ponta subitamente agressiva, e ela pensa em como fica vulnerável segurando a agulha sem poder desfazer-se dela, imaginando os riscos de todos os locais em que ameaça pousá-la.
Está ela ali a lutar contra a sua minúscula arma quando ele ergue da mesa a rolha do vinho, e sem qualquer hesitação afunda a agulha na cortiça, e ele sorri triunfante: a grande sagacidade do dia.
Ela não sorri, porque tudo neles é pesado, e finalmente percebe. Ela percebe que durante todo esse tempo não houve uma só agulha que brotasse dela que ele não tivesse tornado inócua.
Ele com suas agulhas a qualquer momento sob as unhas dela, nos seios, nos olhos. Suas agulhas envenenadas que ao menor toque a fazem belamente adormecer por tanto tempo – cem anos? Ela feito um vudu masoquista a murchar na espera de uma redenção que não vem. Ele a espetar-lhe o peito a todo o tempo, e depois beijando as feridas como o grande herói de uma guerra íntima.
--A gente pode pedir mais um vinho
E ela calmamente a refugar qualquer agulha que possa ela própria ostentar nas mãos, a inocular uma a uma nas infinitas rolhas dessa longa – mas não eterna – tarde inexplicavelmente gelada e linda.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Faxina


Arrumar o quarto atual da vida e deixar nele só o que é lindo. Só o que é limpo. O que é esteticamente harmônico, bonito, agradável. Arrumar esse cantinho microcosmo que é o nosso contemporâneo espaço de viver, de dormir – dormir demais.
Ajeitar as cores dos quadros, das paredes, dos livros, num súbito feng shui da alma. Eliminar o que não orna, o que sobra, o que cansa a vista. O que dói o corpo, encobre as janelas, consome o ar, a comida, e acima de tudo o que consome o tempo. Deixar só o que é incrível e indubitavelmente belo, seguro, saudável, e acima de tudo doméstica e pragmaticamente funcional.
É preciso eliminar os excessos decorativos, tudo o que é supérfluo, fútil, desnecessariamente estimulante, alienante, viciante. Jogar fora as drogas, restos de comida, fardos de roupa suja. É preciso higienizar os objetos cortantes – talvez seja o caso de não haver objetos cortantes.
E então girar no centro desse quarto quase vazio, rodar muito rápido, várias vezes, até que pelo menos na ilusão de um labirinto interno haja algum movimento, uma queda, um medo, qualquer coisa que cure, que alivie, que ajude a habitar essa insuportável assepsia que é de repente a Felicidade.