O sol bate de um lado só da mesa, e
--Talvez seja melhor dessa vez você sentar pra cá, ta mais
quentinho.
Como sempre, ele veio menos agasalhado do que seria
razoável, e ela pensa que essa mania irritante seja medo da proteção – ou medo
de mostrar que é preciso alguma proteção. Ou talvez seja apenas uma incredulidade
sobre a sordidez climática: faz um frio impossível para uma tarde tão linda.
Eles estão aí pra mais um espetáculo gastronômico sempre
muito tenso – pra ela, talvez – porque a qualquer momento ele pode mudar os
humores, de repente uma azeitona que não se solte do caroço ou uma mensagem
banal que acabe por chegar no celular dela. A rede frágil da alegria a se a se
embeber em vinho.
Completamente sentados
na mesa do almoço, sentados nas mesas dos bares, jantares, nas cadeiras dos
cinemas, no sofá. Completamente sentados porque se estivessem de pé ficaria
muito claro que não há para onde ir. Não há caminho possível juntos, e no
entanto
--A gente podia viajar no fim de semana que vem
e ela sonha com a praia como se lá fossem fazer sentido,
como se cada novo local em que se sentassem pudesse trazer uma nova hipótese
desse caminho que desde o início é tão visivelmente inexistente – se fosse
possível ao inexistente tornar-se assim visível. Não há caminho para um lugar
que não se sabe explicar onde é.
--Quem sabe o Chile, no feriado
E cada palavra tem um peso que não se alivia, cada garfada a
dificultar na língua porque a todo tempo sentados, muito sentados, unicamente
porque de pé não se abraçam, não se tocam, não se sustentam. Porque de pé uma
hora é preciso ir a algum lugar e desde o começo era muito claro que não havia
um lugar a que pudessem de fato caminhar juntos.
O peso contraditório daquilo que não pode ser eterno, e por
não ser eterno rouba o tempo de tudo que talvez já devesse ter começado, porque
apenas se pode de fato começar algo que se prolongue. Eles ali estão apenas
sentados. Ainda que estejam sentados há mais de um ano, é muito claro que
jamais começaram nada.
E ao garçom pedem as mesmas coisas de sempre em busca da
alegria garantida, do contentamento inequívoco, porque alguma coisa ali precisa
ser segura, alguma coisa precisa se repetir com a constância e certeza que
teria o amor. Como se conhecer de antemão o que se vai comer fosse equivalente
a acordar do lado de alguém tão conhecido e amado como o macarrão de sempre do
restaurante favorito.
Ela abre a bolsa e a nécessaire pra procurar qualquer coisa
sem importância, talvez um espelho, um comprimido, e acaba tirando sem querer
uma agulha que talvez tenha se despregado de um pequeno carretel para rasgos
repentinos – não que ela saiba costurar – e passa a segurar a agulha num
desconcerto sem solução, desnorteada com a impossibilidade de apoia-la em
qualquer lugar.
Tenta prendê-la na toalha da mesa, no guardanapo, tenta espetar
num palito, qualquer coisa que pudesse proteger o mundo daquela ponta
subitamente agressiva, e ela pensa em como fica vulnerável segurando a agulha
sem poder desfazer-se dela, imaginando os riscos de todos os locais em que
ameaça pousá-la.
Está ela ali a lutar contra a sua minúscula arma quando ele
ergue da mesa a rolha do vinho, e sem qualquer hesitação afunda a agulha na
cortiça, e ele sorri triunfante: a grande sagacidade do dia.
Ela não sorri, porque tudo neles é pesado, e finalmente
percebe. Ela percebe que durante todo esse tempo não houve uma só agulha que
brotasse dela que ele não tivesse tornado inócua.
Ele com suas agulhas a qualquer momento sob as unhas dela,
nos seios, nos olhos. Suas agulhas envenenadas que ao menor toque a fazem
belamente adormecer por tanto tempo – cem anos? Ela feito um vudu masoquista a murchar
na espera de uma redenção que não vem. Ele a espetar-lhe o peito a todo o
tempo, e depois beijando as feridas como o grande herói de uma guerra íntima.
--A gente pode pedir mais um vinho
E ela calmamente a refugar qualquer agulha que possa ela
própria ostentar nas mãos, a inocular uma a uma nas infinitas rolhas dessa
longa – mas não eterna – tarde inexplicavelmente gelada e linda.
Um comentário:
Essa nossa busca incessante de esgotar... esgotar os temas e as almas, esgotar os vínculos e os vícios, sugar até o fim do fim do último gole.. limpar o prato e o copo... até olhar para o vazio e desesperar ... a impossibilidade de sair antes do último ato...mesmo quando se adivinha um final viciado e sem graça...
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