sábado, 21 de julho de 2012

Sobre as agulhas nessa longa tarde fria


 


O sol bate de um lado só da mesa, e
--Talvez seja melhor dessa vez você sentar pra cá, ta mais quentinho.
Como sempre, ele veio menos agasalhado do que seria razoável, e ela pensa que essa mania irritante seja medo da proteção – ou medo de mostrar que é preciso alguma proteção. Ou talvez seja apenas uma incredulidade sobre a sordidez climática: faz um frio impossível para uma tarde tão linda.
Eles estão aí pra mais um espetáculo gastronômico sempre muito tenso – pra ela, talvez – porque a qualquer momento ele pode mudar os humores, de repente uma azeitona que não se solte do caroço ou uma mensagem banal que acabe por chegar no celular dela. A rede frágil da alegria a se a se embeber em vinho.
 Completamente sentados na mesa do almoço, sentados nas mesas dos bares, jantares, nas cadeiras dos cinemas, no sofá. Completamente sentados porque se estivessem de pé ficaria muito claro que não há para onde ir. Não há caminho possível juntos, e no entanto
--A gente podia viajar no fim de semana que vem
e ela sonha com a praia como se lá fossem fazer sentido, como se cada novo local em que se sentassem pudesse trazer uma nova hipótese desse caminho que desde o início é tão visivelmente inexistente – se fosse possível ao inexistente tornar-se assim visível. Não há caminho para um lugar que não se sabe explicar onde é.
--Quem sabe o Chile, no feriado
E cada palavra tem um peso que não se alivia, cada garfada a dificultar na língua porque a todo tempo sentados, muito sentados, unicamente porque de pé não se abraçam, não se tocam, não se sustentam. Porque de pé uma hora é preciso ir a algum lugar e desde o começo era muito claro que não havia um lugar a que pudessem de fato caminhar juntos.
O peso contraditório daquilo que não pode ser eterno, e por não ser eterno rouba o tempo de tudo que talvez já devesse ter começado, porque apenas se pode de fato começar algo que se prolongue. Eles ali estão apenas sentados. Ainda que estejam sentados há mais de um ano, é muito claro que jamais começaram nada.
E ao garçom pedem as mesmas coisas de sempre em busca da alegria garantida, do contentamento inequívoco, porque alguma coisa ali precisa ser segura, alguma coisa precisa se repetir com a constância e certeza que teria o amor. Como se conhecer de antemão o que se vai comer fosse equivalente a acordar do lado de alguém tão conhecido e amado como o macarrão de sempre do restaurante favorito.
Ela abre a bolsa e a nécessaire pra procurar qualquer coisa sem importância, talvez um espelho, um comprimido, e acaba tirando sem querer uma agulha que talvez tenha se despregado de um pequeno carretel para rasgos repentinos – não que ela saiba costurar – e passa a segurar a agulha num desconcerto sem solução, desnorteada com a impossibilidade de apoia-la em qualquer lugar.
Tenta prendê-la na toalha da mesa, no guardanapo, tenta espetar num palito, qualquer coisa que pudesse proteger o mundo daquela ponta subitamente agressiva, e ela pensa em como fica vulnerável segurando a agulha sem poder desfazer-se dela, imaginando os riscos de todos os locais em que ameaça pousá-la.
Está ela ali a lutar contra a sua minúscula arma quando ele ergue da mesa a rolha do vinho, e sem qualquer hesitação afunda a agulha na cortiça, e ele sorri triunfante: a grande sagacidade do dia.
Ela não sorri, porque tudo neles é pesado, e finalmente percebe. Ela percebe que durante todo esse tempo não houve uma só agulha que brotasse dela que ele não tivesse tornado inócua.
Ele com suas agulhas a qualquer momento sob as unhas dela, nos seios, nos olhos. Suas agulhas envenenadas que ao menor toque a fazem belamente adormecer por tanto tempo – cem anos? Ela feito um vudu masoquista a murchar na espera de uma redenção que não vem. Ele a espetar-lhe o peito a todo o tempo, e depois beijando as feridas como o grande herói de uma guerra íntima.
--A gente pode pedir mais um vinho
E ela calmamente a refugar qualquer agulha que possa ela própria ostentar nas mãos, a inocular uma a uma nas infinitas rolhas dessa longa – mas não eterna – tarde inexplicavelmente gelada e linda.

Um comentário:

Márcia disse...

Essa nossa busca incessante de esgotar... esgotar os temas e as almas, esgotar os vínculos e os vícios, sugar até o fim do fim do último gole.. limpar o prato e o copo... até olhar para o vazio e desesperar ... a impossibilidade de sair antes do último ato...mesmo quando se adivinha um final viciado e sem graça...