segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Dos nossos ventos azuis-violeta

     Não é que a gente não devesse estar aqui, ou talvez seja melhor dizer que não é que a gente desmereça menos todo esse purgatório, mas é que tem alguma coisa na liberdade das mulheres que vale mais, alguma coisa azul-violeta que violentamente desaparece no baque seco da grade. Acho que é uma certeza inegável de que a gente livre estaria fazendo pelo menos cinco ou seis coisas diárias que se não fossem bonitas seriam pelo menos fundamentais, enquanto os homens não, nos homens não há como apostar muita coisa, não se vê qualquer vento púrpura adornando os movimentos, embelezado a liberdade deles.
     Anteontem Mirtes e eu deitamos pescoço com pescoço no sol meio pestilento daqui – não sei se já comentei que o sol que bate aqui parece um sol condenado, deve estar cumprindo alguma pena quase perpétua no retângulo celeste desse quintal – e fomos pensando no que a gente estaria fazendo se estivéssemos na rua. A Mirtes falou que num sábado desses um parque com os meninos não faria nada mal, eles brigavam muito pelas pipocas que jogavam nos peixes mas estavam sempre contentíssimos. Ela disse também do cachorro, um peludo enorme, desse tamanho, que ia sempre no parque e pulava desastradamente nas pessoas.
     A Mirtes é uma dessas moças que se estivessem soltas nem crime estariam cometendo, só haveria coisas fundamentais ou bonitas para fazer no sopro azul-violeta dos dias, minha borboleta. Ela tinha um marido desses que não vale a pena descrever porque todo o mundo já sabe somar as palavras num quadro óbvio, bebida, desemprego, bebida, mãos, braços, pêlos, bebida, saliva, pedaços de pau, nacos de garrafas, gritos, gordura, móveis quebrados, esgoto, esse tipo de marido. Na frente dos meninos, numa noite, em mais uma daquelas noites que ela nem descreve porque nem precisa já que é só somar aquelas palavras a algumas outras mais longas como a insuportável insistência dele em permanecer ali, o perigoso vazio que ele chamava de amor, a humilhante mania de xingar, é impressionante como esses maridos xingam e a gente já nem liga mas talvez as crianças, os vizinhos, nunca se sabe o quanto ligam para as palavras soltas e às vezes não são nem capazes de somá-las todas para fazer um quadro óbvio e compreender. Eles não compreenderam, foi preciso sugar-lhe os ventos azulzinhos e deixá-la aqui nesse sol estático me contando da noite em que ela de repente decidiu se limpar de todas essas palavras pesadas, peso de mais na vida da gente.
     Mirtes a essas horas poderia estar numa reunião da escola dos meninos mas agora já nem está certa se ainda há de fato uma escola dos meninos, poderia estar cozinhando um ensopado com patos, legumes, macarrões, poderia estar na fila de um banco pagando a luz, poderia estar num samba com a vizinha duas casas ao lado, numa rede sob as árvores, num ônibus abarrotado de gente até a casa da patroa, numa farmácia procurando absorventes, a Mirtes estaria em qualquer lugar envolta em ventos violetas, fazendo coisas bonitas ou fundamentais, e de fato há qualquer coisa na liberdade feminina que o mundo não deveria extirpar assim. Eu mesma se estivesse lá, já faz tanto tempo, é quase certeza que não estaria fazendo nada de muito errado, e no final das contas eram algumas poeiras que eu levava, de vez em quando umas plantas, e a moçada comprava contente, até nesse momento eu sentia o azulado da liberdade me enfeitando os gestos, quando me viam ficavam enfeitiçados, o olho longe mas as mãozinhas ávidas, e às vezes diziam que eu estava salvando a vida deles, era assim que diziam.
     Mas eu digo que hoje nesta segunda-feira, depois de tanto tempo eu provavelmente estaria levando a Marjorie para a aula de dança, dizem que ela está arrasando, ou dando banho na cachorra, eu também tenho uma cachorra linda que o dono deste lugar não deixa vir me visitar, acho um completo absurdo, um cachorrinho aqui dentro ia ser um encanto, as meninas quase iam ficar violetas, correriam no quintalzinho e o bicho deslizando nos corredores encharcados com sabão, rodos, panos, baldes, restos de arroz, papéis higiênicos, nós aqui dentro também temos nossa soma de palavras. Ou eu estaria terminando de fazer o almoço ou de escrever um livro, tenho ficado metida a escrever livros, e depois tomaria um banho e me encontraria com meu mocinho lindo numa cama daquelas bem macias, ele me abraçaria com as pernas bem quentes e diria as coisas que gostava de dizer, aquele mocinho que em tantos anos não veio uma única vez me abraçar aqui, e então só no fim da tarde eu iria para o restaurante num emprego bonito de garçonete que já me prometeram será meu assim que eu recuperar os meus ventinhos roxos.
     Eu não sei dizer se ficava mais nervosa quando passava pela revista, os olhos da polícia vacilando entre a minha mala eletromagnetizada pela magia do raio X e os meus olhos forjando inquietações de turista, quem sabe um mapa colorido nas mãos, o estômago borbulhando de cocaína e o pânico terrível de decolar, a decolagem era o pior momento, chorava. E era aí que o estômago se revirava de plástico borracha e fogo, um calor terrível por dentro, não sei como os aviões não caíam só por conta da convicção que eu tinha de que cairiam.
     No dia em que não deu certo, quando o policial olhou nos meus olhos e viu qualquer coisa evidente, acho que já era o medo do avião me queimando o estômago e os olhos, naquele dia o pavor estava todo especial. Enquanto ele me levava para uma salinha onde possivelmente me eletromagnetizariam e depois me olhariam embaraçados, porque até eles sentem pena desse momento em que tudo desaba por conta de uma coisa que você comeu e que deveria ser um segredo só seu, uma coisinha sua no seu estômago, eu ia caminhando assustada até a salinha mas pensando que pelo menos não era o avião que desabaria, e depois me flagrei chateada porque naquela noite nenhum avião caiu, não fui salva de coisa alguma.
    Dali em diante foi demorando um tempo para eu perceber que a ventania azul-violeta desapareceria definitivamente, e eu nunca mais vi a Marjorie em qualquer lugar que não fosse acinzentado, que não tivesse um cheiro acinzentado, cheio de mulheres completamente acinzentadas. Ela vem aqui com a minha mãe, mostra uns passos tímidos de dança, dá uns risos discretos com os meninos da Mirtes, e eu fico com a impressão de que todo esse ritual, a viagem, a madrugada escura na fila, a revista, a violação, o cheiro, o sabão, o sol condenado, o cinza, todas as palavras juntas, tudo isso só para ver a mãe já trazem a menina sem o vento azul, sem nada para me oferecer. A liberdade fica sempre lá fora.
    Eu não tinha marido nenhum pra matar porque o meu sumiu antes que desse tempo de chamar de marido, de pai, de homem, antes que se pudesse pedir, gritar, matar, e deve ter sido melhor assim. A Mirtes conta que quando a faca de fato entrou ela não acreditava, ela achou que no final tudo ia continuar como antes, ele iria para o hospital e voltaria cuspindo ódio ou quem sabe arrependimento. Olhou os meninos que agora não sei se estavam mesmo embaixo da mesa ou se esse foi um toque dramático da minha cabeça, olhou e continuou segurando o cabo da faca e depois olhou o bêbado que também a olhava e talvez em algum lugar da consciência ele já soubesse que não seria apenas uma costurinha no hospital para que tudo voltasse ao normal. Ela acha que viu um sorriso, ele estava sorrindo.
     Disse que é uma sensação granulosa, a faca suja de peixe atravessando rápida os tecidos, veias, fibras e na hora não parece que foi você, que foi sua mão, parece que foi a faca, a faca sozinha buscando silêncio, saúde, paz, Amén. A Mirtes deixou a faca ali dentro mesmo e chamou a ambulância, diz que enquanto esperavam ele ficou ali ajoelhado, quieto como nunca, imóvel, um silêncio mágico. Sentou na frente dele e ficou pensando se pedia desculpas, ela também sangrando do soco no olho, na boca, na orelha, e resolveu só aproveitar o silêncio, a última coisa bonita e fundamental que ela fez antes de lhe tomarem os ventos violetas.
     Eu não tinha marido pra matar e acabei me enfiando naqueles aviões turbulentos cheios de turistas animados, eu mal conseguia conhecer as cidades, naquele dia eu ia para um lugar diferente, estava decidida a passar pelo menos uma noite lá, quem sabe sair pra dançar. O policial olhou a barriga eletromagnetizada e eu senti como no ultrassom que descobriu a Marjorie quando tudo menos ela deveria estar se formando dentro de mim. Ele não me pediu muita explicação, apenas me perguntou se eu sabia o que havia na minha barriga, como o médico perguntou quando descobriu o bebê. A gente sempre sabe.
     Naquele dia eu também por alguma razão fui me enganando, pensei que talvez me arrancassem as drogas da barriga e me levassem do hospital direto para casa junto da menina, da minha mãe, da cachorra, e elas me dariam broncas terríveis e eu choraria disposta a recomeçar tudo, a arrancar a faca do peito dos maridos, costurar as chagas, refazer famílias, naquele dia eu já sorria pensando que finalmente tinha despertado de um pesadelo esquisito que não combinava comigo. Mas a minha casa ficou lá, nunca me levaram de volta e eu não consigo me lembrar do cheiro, tinha um cheiro doce do xampu da Marjorie misturado com omelete e mexerica, um cheiro que passeava pela sala, já pedi para minha mãe trazer o xampu, o omelete e a tangerina, mas não funcionou, talvez seja preciso o vento azul-violeta de três mulheres livres ajeitando a casa, fazendo a comida, a lição de casa, os livros, remendando os vestidos.
     Eu sei que parece cruel dizer uma coisa dessas mas as mulheres nunca deveriam ser presas assim, como eles, nessa desnecessidade. Há muitas coisas bonitas e fundamentais que deixam de ser feitas lá fora, há toda uma ventania doce que nos abandona, que deixa de girar em volta da nossa cintura, dos braços, saias, cabelos. Há uma infinitude de cores e de cantos que é tomada de nós e também do mundo que perde em cores e cantos, acúmulos de nós nessas masmorras macilentas.
    E mesmo aquelas que se estivessem lá fora estariam fazendo os mesmos crimes, também se ocupariam de tantas coisas bonitas ou fundamentais que o balanço acabaria positivo. Por mais que às vezes a gente tenha a mesma culpa que eles, a certeza de que sempre, durante toda a vida, durante toda a história, fizemos tanta coisa certa faz desse cárcere uma injustiça maior. A certeza de que, ao contrario do que dizem, a primeira a errar nunca foi a gente, nunca vai ser, em nenhum dos tantos casos que acinzentam por aqui, a certeza de que estaríamos todas agora tomando conta de assuntos bonitos ou fundamentais, levadas na harmonia dos nossos ventos azuis-violeta, essa certeza faz com que a prisão de uma mulher seja a mais absoluta violação da energia do mundo, o mais incompreensível desperdício de vida.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Descanse em paz

e me tirou o direito a uma agonia profunda, a um descabelar sem precedentes na história de todos os nossos amigos, parentes, talvez dos livros. Imagine-se o que não teria sido a tragédia da sua morte nos nossos vinte e poucos anos, nos nossos vinte e tantos planos, a paralisia completa de todos os meus sentidos diante da notícia, a vista embaçada de medo, a frouxidão dos músculos, a falta de forças para falar, protestar, e todos juntos com suas mãos tão jovens me erguendo do chão no espetáculo do túmulo e semanas depois todos já clamando por um recomeço, porque seria preciso um recomeço.

Poderia ter morrido meses antes da festa, ou dois, três anos depois do casamento, quem sabe eu ainda com a Cabíria no ventre, cada chutezinho uma vontade de vida e eu atada à catatonia da sua morte imprevisível, arrebatadora, inaceitável. Eu para sempre com a dignidade da jovem viúva, eu com o direito a mil ligações telefônicas. Eu com a beleza artística de longas camisolas negras a girar no carpete do quarto ao som de cameratas barrocas, gregorianas, despedaçando rosas em pétalas pegajosas de lágrimas, os vizinhos aos gritos no portão, e a ingenuidade risível de um copo com água e açúcar que me trariam incansavelmente até que eu conseguisse abandonar o sonho de você, o nosso sonho.

Mas você com a sua paciência deixou o tempo passar em nós, você me privou de uma tragédia a que eu pudesse eternamente culpar pela absoluta mesmidão dos meus dias, a que eu pudesse atribuir essa indiferença dos anos uns dos outros, ou pelo menos conferisse à trivialidade das rebeldias de Cabíria a melancolia misteriosa dos órfãos. Você deixou minha vida dormir do seu lado, no desconforto sempre alerta dos insones, até que ela não soubesse mais aonde ir ao acordar, até que ela não quisesse ir a lugar nenhum.

E agora, quando já era tarde demais para que sua morte me trouxesse uma tristeza profunda, quando já não há um golpe que me traga destaque, qualquer coisa pesada nos olhos, qualquer coisa de sábio no sorriso que por mais que se abrisse não seria pleno, agora quando já estávamos quase prontos a aceitar nossos passos juntos, agora que já não se pode perder um futuro, quando já não há plano, não há sonho a se destruir, a sua morte veio cedo demais, e, uma vez que veio cedo, veio demasiado tarde.

Agora que eu talvez já não tivesse por você o puro amor a ser violentado pela perda, a sua morte me traz uma tragédia medíocre, que me priva do asilo das suas conversas amenas, do seu chá, das suas idéias recentes de envelhecimento e companheirismo, da continuidade imaculada de um projeto, e me atira de repente no terreno das senhoras solitárias, sujeitas à piedade das outras senhoras, aos pensamentos perversos de quem me prevê longos vinte e cinco, trinta anos de uma castidade amarga. Você que não se foi a tempo de me tornar especial não podia me deixar aqui assim, sem beleza nem arrebatamento suficiente para rodar com as pétalas de rosa estraçalhadas entre as unhas. E ninguém virá me ajudar a recomeçar, não há recomeço. A tragédia ficou em mim, amornada, frouxa, a me amolecer ainda mais as carnes, os lábios, as bolsas embaixo dos olhos.

Hoje, na voz quase embargada de um choro encruado, nessa dolorida ausência do desespero que não me entra, não me toca, nessa ausência profunda do que seja você e do que não seja você, nessa incapacidade que sinto para o descabelamento, hoje só consigo dizer que mais incompleta do que a sua vida terminada assim numa freada é a minha vida que você embalou num sono indolente até ontem e condenou a um coma social a partir da madrugada.

Hoje só consigo dizer, meu bem, que a casa não respira, não há vozes, quase não há luzes, e é provável que nunca mais haja geléia de physalis, porque nunca fizemos questão, eu penso. Dizer que Cabíria não me olha nos olhos, talvez porque tenha medo de não encontrar nada, e também que sem você não há desejo nem dor, e as visitas todas perderão o jeito para a amizade, todas com a sensação de que os móveis ainda lhe pertencem, vão sentar de leve na borda do sofá porque até as cadeiras, as almofadas, as poltronas devem estar condoídas.

Só tenho a dizer, meu amor, que espero haja muita vida nesse lugar onde eles colocam gente como você, porque eu estou condenada para sempre, todo tempo, até o fim, a descansar em paz.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Nós que já enterramos nossos mortos

Nós que já enterramos nossos mortos, nossas caudalosas torrentes de mortos. Que já enterramos artistas, feiticeiras, marginais, e enterramos livros, músicas, vozes, até que fomos perdendo sob os nossos pés também a noção, o apego, o susto, o choque, a crença e também a incredulidade. Nós que já pisamos sobre os corpos das melhores e das piores coisas que foi preciso enterrar, pisamos em cima dos séculos. Nós que estamos no topo disforme de uma montanha insondável de milênios, guerras, conceitos, línguas, tribos, nós que enterramos o passado e sapateamos nos escombros, na ossada de tantas tragédias com nossas manias, gilletes danones modess e band-aids, nossos fossos fundos, nossos dutos, óleos, nossos pingentes de ouro, nossas minas. Nós que já não tínhamos mais o que enterrar, enterramos nossas vidas, ainda vivas, ao vivo, em rede internacional.