terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Azulada e dura



Quando a temperatura está acima de todos os graus e você vai ao Departamento Estadual de Trânsito com uma pasta de documentos, você se preocupa em se encaixar dentro das sombras em todo o caminho desde o metrô, e depois em se abanar de pé na fila com a pasta sem que os documentos caiam, e você sai do Departamento Estadual de Trânsito horas depois com as burocracias um pouco mais resolvidas, na cabeça três ou quatro carimbos, a atendente que não sorria de jeito nenhum, você se pergunta por que esperava tanto esse sorriso, os carimbos, o sol, as sombras já se moveram e é difícil acertá-las, você pensa em agendamentos, e está com uma estranha vontade de resolver mais burocracias.
Vasculha nos arquivos dos fardos mentais insignificantes qualquer pendência governamental ou similar que possa fazer sentido geográfico nessa tarde quente, é subitamente muito importante que esta se torne a tarde das soluções, você odeia pendurar deveres, a cabeça ainda nos carimbos fotos três por quatro um cadastro, e de repente o rio Tamanduateí cercado de gente, um cachorro que é resgatado pelo corpo de bombeiros, algo de ferro mergulhado no rio, algo que sua mente resolve chamar de grua, deve ser uma grua que desce do caminhão dos bombeiros e os populares em volta estão filmando, não é um dia para resgates, sua cabeça ainda se demora nos carimbos, é o dia das burocracias.
Você desvia apenas de leve o trajeto na direção do milagre, já decidida que pode caber um milagre no meio desta tarde quente, muitos celulares na direção do rio, um vídeo a que depois talvez você assista na internet e possa dizer que viu tudo de verdade, que o cachorro de fato entendeu o trabalho dos bombeiros e subiu com eles aliviado e grato, então você estica discretamente os olhos por cima dos celulares, só para poder dizer que viu mesmo o resgate. Na cabeça um pouco de milagre mas ainda um monte de carimbo requerimento pasta suor três por quatro biometria, ali embaixo no rio Tamanduateí você vê por apenas um segundo o bote com o corpo de bruços, a mulher azulada e dura, as pernas, a saia encharcada, o corpo que ondula nos celulares, você viu por apenas um segundo, a imagem que ficou desta tarde muito quente perto do Departamento Estadual de Trânsito.
E então você continua tentando chegar ao metrô, carimbos, cadastros, é possível que numa tarde como esta o corpo de uma mulher seja filmado de bruços no bote dos bombeiros dentro do rio Tamanduateí, complicando o trânsito, você não sabe se ela foi jogada ali durante uma briga, se veio arrastada pelas águas na enchente, se ela pulou, não aguentou o peso das crianças das sacolas do medo, de toda forma assassinada, catraca, sua pasta de documentos diligentemente contra o peito, assuntos resolvidos, o bote, departamento, perícia, a imagem rápida, azulada e dura.


terça-feira, 16 de outubro de 2018

Estarrecimento é quando

É preciso que o cachorro ainda pule quando eu abro a porta, será que ele pode parar com isso essa semana? Um dia abro a porta e ele me olha do fundo da sala, imóvel, ele entendeu tudo, o país, entendeu os meus olhos todas as noites quando abro a porta eu mesma ainda sem acreditar, meu cachorro de repente também com esses olhos imóveis de estarrecimento. 
Estarrecimento é quando o cachorro não consegue sair da cama para comemorar a sua chegada, e é quando você não consegue sair de casa para comemorar a sua vida, é quando o vizinho não encontra a porta, não sabe onde foi parar o seu país. 
Eles dizem que o Brasil tem mais de sete mil quilômetros de litoral, o mar batendo bonito na areia, mas já não parece assim, aonde foi o mar, não cabe o mar e tudo isso na mesma terra, estamos secos de incêndio. 
A gente procura, eu e o cachorro, as janelas dos vizinhos sentindo a mesma coisa, é preciso que os vizinhos sintam a mesma coisa, não porque diminua a coisa, a coisa é imensa, mas só porque parece que poderemos um dia pular todos juntos da cama e comemorar o retorno do país, o barulho do elevador do país subindo de volta, o som das chaves na mão do país, nós e os vizinhos, é bom saber que eles moram nas mesmas dores, esperam os mesmos gritos. 
É preciso que o cachorro ainda salte e abane o rabo quando a gente entra e os vizinhos ainda recebam desconhecidos sensuais para um pouco de vinho ou uma paixão ou um pedaço de pizza, será que os meus vizinhos vão continuar recebendo desconhecidos diante da minha janela morta, quando o país inteiro estiver apagado, vai ter alguma luz nas janelas? 
A gente escuta que o ódio cresceu ainda mais, e pra onde pode ser, que espaço tem, se não é no ônibus silencioso que a gente pega pra casa, se não é na janela do vizinho, se não é no cachorro, é preciso que o cachorro tenha alguma felicidade, pelo menos ele, a energia de pular da cama até a porta, se nem ele vier, já não sei, se eu abrir a porta e ele não vier, não sei.

sábado, 25 de agosto de 2018

Vida minha vida


Vida minha vida
Entro no bar de outras épocas, é tão bom entrar num bar de outras
épocas, as mesas repletas de outras formas de mim. Mas a nostalgia não é só minha, descubro que amanhã é a última noite desse bar que tem tantas décadas, as capas enquadradas dos melhores discos brasileiros, todas as capas do Chico Buarque, manchetes de época, tudo tem papeizinhos brancos colados nas molduras com o nome de alguém e o telefone, cada um que conseguiu garantir uma lembrança do bar.
O bar de outras épocas. Eu vinha aqui com pessoas de outras épocas, começa a me doer essa implosão do tempo em cima das próprias ruínas. Os dois músicos não envelhecem, talvez porque cantam as mesmas músicas, hoje há comoção em tudo (Vida minha vida olha o que é que eu fiz), cruzo os olhos com um ex-namorado de uma amiga, um homem que nos fez tão mal, ele canta com os braços pra cima, abraça os músicos, está também comovido, sabemos os dois todas as letras, que trágica é a afinidade.

Justo hoje, nesse bar, que acaba, justo hoje esse homem, eu e minha amiga tão juntas, duas meninas, era preciso rasgar os vínculos, enfraquecer (Verti minha vida nos cantos na pia na casa dos homens). Quem sabe hoje ele mudou, já passaram catorze anos, não sei, ninguém devolve aqueles anos que ele roubou de nós duas.
Eu poderia ter aparecido neste bar daqui a uma semana, um mês, um ano, a porta fechada, uma loja de roupas, seria diferente de ter aparecido hoje, estou de repente cúmplice das coisas todas que acabam. O ex-namorado da minha amiga não me reconheceu, eu acho, penso no colágeno que perdi. Minha mãe está fazendo 60 anos, ela gostaria deste bar, desta noite, um bar de colágenos imemoriais.
Minha outra amiga envia no celular um estudo, um alerta, beber dá
câncer, sorrio para o meu copo, eu hoje cúmplice das coisas todas que acabam. Um perigo estar sozinha no bar de outras épocas, que está acabando, onde eu vinha com pessoas que acabaram, de outras épocas. Se não conhecesse o ex-namorado terrível da minha amiga eu sorriria agora para ele, dançaríamos, erraríamos, começaríamos os próximos cinco anos mais apavorantes da minha vida (mas vida ali quem sabe eu fui feliz), um perigo a qualquer de nós estar sozinho no bar de outras épocas que está acabando.
Quando será que sabemos que um filho já pode ficar sozinho no quarto brincando, não vai botar um brinquedo pequeno na boca, a cabeça num saco plástico, o que foi que a minha mãe viu em mim e soube que eu já podia ficar sozinha no quarto, o que eu fiz pra conquistar isso, e depois quantas vezes mais, quantos anos, sozinha no quarto.
O quarto de outras épocas. Minha amiga avisa da bebida que mata mas
é o bar que está aqui morrendo (Vida minha vida olha o que é que eu fiz), que saudade difícil é esta, o bar de outras épocas, o quarto com brinquedos que eu já não ponho na boca, então eu muito sozinha com os brinquedos de várias épocas, o ex-namorado da minha amiga, tão terrível, encantador, os mesmos braços abertos para o céu, cantando as mesmas músicas, as pessoas de outras épocas, pessoas que eram completamente para-sempre, cantando as mesmas músicas no bar que a gente não sabia que um dia acabaria, porque a gente não achava que nada acabasse (Arranca vida estufa veia e pulsa pulsa pulsa pulsa pulsa mais). Quero mais.