sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Do meu Show




A casa perfeita
que ninguém visita.
A noite mais quente
que ninguém nem sente.
A ordem aflita
Que ninguém respeita.
A cama delícia
que ninguém amante.
A menina arfante
Que ninguém carícia.
A pintura eleita
Que ninguém aplaude
O choro de boneca
Que ninguém ampara
O vestido florido
Que ninguém repara
A idéia brilhante
Que ninguém heureca
O desejo contido
Que ninguém tomara
O cabelo comprido
Que ninguém afaga
O ingresso do show
Que ninguém paga
A taça de espumante
Que ninguém timtim

É o que sou,
o que preciso ser:
que Ninguém esteja sempre em mim.


sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Árido I


Vôo por sobre a cordilheira e cordilheira me evoca um monte de coisa. Cordial, olheira, alheia. CORDA.
Ela que se estica gigante, infinita, e fico pensando que é a pele de uma senhora deitada, uma pele manchada, enrugada, inerte. A cordilheira é uma senhora virgem e serena, e os topos de neve seus cabelos brancos, e por isso ela embora virgem muito mais sábia, muito mais vivida que eu.
Debruço os olhos por seus sulcos, cavidades, quem sabe rios, ou mesmo estradas, e ainda assim ela plácida, intocada por tantos sobrevôos. Invejo a cordilheira por sua serenidade mas não por sua solidão, que é também a minha.
Há treze anos a espiei no mesmo sobrevôo e talvez nos meus olhos a mesma dor, essa solidão genética, costurada em mim no berço. Essa solidão que enruga, envelhece, mas não cresce, não se consome nem cura. Há treze anos sobrevoei a cordilheira e há 26 me sinto apenas sobrevoada por toda a gente. 
Ela me envolve labirinticamente nos seus vincos distantes e me cospe do outro lado atarantada e seca. 
Invejo a cordilheira na sua aridez -- eu sempre tão fluida, a derreter nos beijos, abraços, a escoar erodindo os caminhos que não me abrem. Mas não a invejo na sua solidão, que compartilhamos hoje com a lua e o sol presentes ao mesmo tempo -- efêmera união típica de teimosia minha. 
Há treze anos eu sobrevoei e odiei a cordilheira. Odiei por espelhar minha solidão, meu excesso de pele intocada, minha virginidade que eu comparava às intermináveis tardes de férias assistindo sozinha ao pica-pau -- outro solitário. Odiei por se deixar sobrevoar assim, ao longe, por tantos anos. 
E hoje embora eu chore por sobre essa velha solitária e imensa -- quanta ternura na aeromoça que me trouxe subitamente um copinho com água --, não culpo a cordilheira, talvez já não culpe ninguém, nem a mim; choro de olhá-la feito espelho. 
Penso em afagá-la, alisá-la com força e entrega, até que tocada a pele se estique na sua imensa cama, até que se vá alinhando plana, planície, deserto, até que se deixem anular seus desenhos complexos, até que já não seja cordilheira. 
E então entendo sua sabedoria e a invejo mais uma vez, e decido eu mesma resplandecer ampla e montanhesca, para que nenhuma companhia ou afago me planifique, trivialize, para que eu mantenha sempre meus desenhos complexos de curvas, sulcos e estradas, e saiba admirar -- sem doer -- a distância segura a que me sobrevoam.    

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

MELT


MELT
O que há na minha matéria que derrete
--e lá fora o receio de tudo que derrete.
Massa quente que ao toque logo deforma
Envolve, encobre, extravasa
O que há em mim que derrete e não tem controle
Não cabe no aperto
No abraço
Nos dedos
O que há em mim que transborda

Assusta
Inunda
Corrompe
O que há em mim de vertigem que não me debruçam
--eu tão apoio, tão braços, tão bustos e não me debruçam.
O que há em mim que derrete e assusta
Areia movediça que se adivinha em alardes, gargalhadas, danças.
O que há em mim que derrete e ninguém segura
Ninguém contém, ninguém nem bebe nem guarda,
Não me nadam,
não se afundam, não se banham
O que há em mim do inglês MELT
E qualquer coisa de mel a amolecer o corpo
A enjoar as línguas
O que há em mim de insuportavelmente doce e denso
Que não esfria, não congela, nem desgruda
O que há em mim que a cada golpe
Em vez de secar, engrossar, recolher,
só enternece
Melting away

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Casa do Amor II




Você, que aguarda em algum lugar aí fora dessa minha casa que não tem campainha: só mais um minuto e eu abro. Pode sentar na sarjeta, na árvore, pode voltar depois da noite, da dança, pode esperar suado, ou dormindo, ou chorando. Esperar só mais um pouco que já abro.
Recolher do chão os cacos, os pedaços de vasos, as flores, estilhaços de espelho que acumularam: parece que fechei os olhos e pela casa passou um furacão quente e impossivelmente lento, é melhor você esperar só mais um pouco que ainda tem restos de comida na cozinha. Jogar fora o que sobrou do suco, da fruta, da sopa, marcas de chocolate pelas pias, dedos melados tingindo de açúcar os armários, azulejos – quantas vezes será que essas mãos espalmadas com fúria dulcíssima nessas tantas paredes, parece que nunca vou terminar de limpar.
Apagar das paredes também os recados, desenhos, quadros, recolher as fotografias e guardar quem sabe num fantástico sótão de sublimação e poeira. Ainda tem convidados na sala, que amigos são esses que foram ficando e nem são os meus, será que são pessoas esses vultos caídos nos sofás, será que são anjos delinquentes despencados de um paraíso que é preciso lavar completamente daqui.
Lavar – aguarde mais um pouco que ainda é preciso lavar – as roupas, costurar os rasgos, puxões, afagos, é preciso remendar o vestido que foi dilacerado, tirar as marcas, o cheiro. É preciso que já não haja perfume, nem suor, nem lembrança.
É preciso que eu me deite no chão e recolha debaixo da cama o que restou dos tantos monstros – que monstros são esses que deixaram aqui que não são os meus --, apanhar o que sobrou dos sonhos. Que sonhos eram esses que despencavam da cama em rochas de erosão e dor. É preciso que eu afaste janela afora os fantasmas que entraram com o vento, não é de bom tom uma casa assim assombrada.
É preciso acalmar os cachorros que latem no portão talvez sentindo a sua presença aí fora, ou quem sabe alguma ausência aqui dentro. É preciso estender nos varais sob o sol ardente a minha camisola, até que ela ferva, endureça, recomece, até que ela esqueça.
Mas é preciso acima de tudo que você traga lençóis novos, porque é impossível aguentar o peso dos meus, não se pode lavar mancha assim viciada. Arrancar da cama e dobrar carinhosamente pelas pontas, trocar as fronhas, e enterrar tudo no jardim feito um pano morto, sagrado, transcendental, enterrar como se enterra o que já não pode viver mas não pode apodrecer a olhos vistos, sem dignidade, decoro, adoração.
E quando enfim eu me erguer dessa incriticável faxina, quando tirar meus joelhos da terra velando esses lençóis doídos, vou abrir a porta e, quem sabe, até sorrir. Pode entrar, Meu Novo Amor.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Gata no cio



Já todas as luzes no escuro e as portas fechadas e o barulho hesitante do teclado do meu computador na única sala acesa dentre tantos corredores. O vazio, as sombras, as reminiscências das tantas gentes que passaram durante o dia, os choros, abraços, o tilintar das algemas, chinelos, crianças: tudo no silêncio jurídico da meia noite dentro do fórum criminal.

E é nesse lugar, nessa noite lenta, que ela sai das suas trevas no jardim central – esse impossível antro de vida selvagem na estufa de ar condicionado e sol fosforescente em mil lustres de licitação – para uivar o lamento agudo de mais um cio solitário. É aqui que ela chora o seu cio bandido, clandestino, seu cio de ferro.
A gata sozinha entre moitas quase sintéticas e passarelas negras por onde já não vê doutores, senhores, louvores, nem mesmo já não vê desgraças, só a sua fúria uterina a lhe contorcer os ovários, a pulsar no ventre esse fruto que não vinga, esse despontar de fertilidade desaproveitada. A gata malhada a gritar, a espalhar pelo eco a sua força, a sua dor de ausência, a embaralhar entre as letras do meu computador o chamado doído do seu desejo. Uma pausa minha a cada frase, o meu grito calado em respeito a esse miado louco desatendido porque não há animal que alcance a fêmea nessa impenetrável clausura.

Nesse lugar cheio de prisão vem ela escancarar sua escravidão maior, sua ânsia insaciável dentro desse grande bloco de concreto. A gata no seu lamento cada vez mais alto, insuportável desespero que nenhum afago abranda, nenhum copo de leite.

A cada berro fica em mim a certeza de uma energia linda, fulgurosa, única, que ela dissipa em
tremores de um cio desencantado de cárcere e solidão. Apago a última luz e deixo a gata sozinha com o eco insistente de todo o seu amor.
Lá fora uma súbita lua dourada num calor de inferno, que me segue até o carro, até a casa, até a cama.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Ali vem o homem com sua grande dor



 Pelos lugares de sempre aquelas mesmas pessoas  hoje num súbito respeito, num baixar de olhos, de tom de voz, amenizando os toques, os assuntos, fiscalizando o excesso de risadas, tudo porque eu tenho uma dor. Ali vem o homem com sua grande dor! Sou muito mais sólido, barroco, velho e importante porque tenho uma dor, uma dor notável, uma dor que no meio do embaraço tenta ser digníssima. Já não é uma dor de final de romancezinho, de um qualquer desencontro ou saudade carnal que uns quantos meses lavam. Nos mesmos lugares todas aquelas pessoas que se estivessem em outros séculos me tirariam os chapéus com algum incômodo pela minha chegada como se eu trouxesse comigo todo o permanente impacto da minha dor. 
É que eu tenho uma dor que é um escândalo, uma brutalidade, que ao mesmo tempo em que tira tantos respeitosos chapéus à minha volta é também uma dor de escárnio, de deboche, uma dor de instintos. Eu sinto dor em todos os meus instintos e não é possível que alguém de fato respeite uma dor que inflama o animal em mim, o que houver de sangue, de pêlo, de cheiro, buracos, abraços, avessos, eu sou essa dor que expõe os nervos como eu fosse um leão a fracassar todos os truques no picadeiro -- ouço até mesmo as crianças rindo de mim, e quem foi mesmo que fez esse leão assim tão inofensivo e triste. 
Não podem ser de respeito esses olhares diante de uma dor tão selvagem, mas também não são de piedade, que piedade precisa de um diminutivo, e eu sou um homem gigante, até mesmo meu nome denota tamanho, ninguém nunca pôde juntar piedade e meu nome numa mesma frase, num mesmo olhar. Durante o seu enterro minha concentração não era em compreender esse novo olhar que eu de repente passei a despertar ao redor de mim, era apenas em domesticar a minha dor. Você ali tão indecentemente morta e eu lutando pra afastar da minha quase bonita dor as rebarbas mundanas dessa morte monstra, que vem me dar ganas de leão, cadela, fera embriagada da solidão de um luto ilegítimo. 
Ele nunca me roubou você, ele roubou muito mais, talvez o direito de matar você, direito de ser eu a matar você. Talvez a essa altura da vida eu achasse que se você fosse morrer de uma morte dessas passionais, televisivas, midiáticas, seria pelas minhas mãos, as mãos de quem as gentes todas achavam fosse seu amor. E acontece também que eu já tinha decidido -- talvez antes mesmo de nascer -- que você (quem sabe ninguém no mundo) jamais morreria desse tipo de morte egoísta, tempestuosa, e a pergunta que talvez esteja nos olhos de todos esses chapéus baixando à minha volta é porque diabos (se eu exterminei da sua vida qualquer possibilidade dessa morte trágica) você foi buscá-la nos braços de um mal-resolvido qualquer, por que será que a mim foi negado até mesmo o direito de não perder o meu amor num homicídio passional. 
Você, que morreu pela paixão de outro, e não pela minha, porque a minha não matava, não doía, não negava nem cobrava, você deixou essa pergunta que faz com que os chapéus se baixem diante deste luto maldito, porque é um luto que não sabe se você merece a dignidade desta dor, se você estaria chorando diante de um túmulo meu. Você que saiu de repente da minha vida como quem vai comprar cigarros e resolve morrer assassinada por quem jamais teve o direito de dizer-se sequer apaixonado por você -- será que ele sabia do seu absurdo e inacreditável medo de altura? --, você me deixou de uma forma que não posso sequer perguntar por quê, há quanto tempo, e o que será que um homem que foi capaz de matá-la em razão de algum desespero que você provocou nele, o que será que esse homem um dia lhe deu, que feitiço, que alumbramento, que encanto homicida tinha esse rapaz pra que você me deixasse na mágoa desconsolada da sua mortalha sem flores. 
Não te trago flores porque já não sei nem se minha visita é por você bem-vinda, ninguém lhe traz flores porque a todos acomete a sensação de que talvez você não gostasse daqueles a quem dizia que amava. Ele nos roubou o direito ao luto, porque amar sozinho, mesmo a uma morta, é insuportável, e eu não lhe trago flores porque seria mostrar a você e ao mundo que a sua morte me encerra num amor para sempre não correspondido. E eu deixo você aí sozinha -- embora isso também me doa -- e sigo chamando a atenção de todos com essa minha dor incrédula, pensando, sonhando, quem sabe talvez, que a sua morte tenha vindo logo depois que você, aos prantos, de repente sã, bradou que me amava, que não me deixava, que morria por mim.  

quinta-feira, 26 de julho de 2012

A Casa do Amor



Duas mãos de tinta cor de berinjela na parede da direita, atrás do sofá amarelo e florido. Quadros, muitos quadros – na verdade pôsteres de filmes –, abajures estratégicos, e a mesa perfeita para o jantar em exatamente cinco amigos, ou oito se ocuparem o sofá.
No quarto a cama grande com os lençóis macios, a uns dois ou três metros da cama do cachorro, que cresceu ali desejando somente o que desejam os cachorros e os amantes: que absolutamente nada mude. E a pergunta é quem foi que deixou o amor sair?
Logo aquele amor que diante da porta sempre escancarada a todo tempo sorriu e ficou, ficou como se não houvesse sentido em ir a lugar algum quando se mora justamente na casa do amor. Logo aquele amor que podia ir aonde quer que fosse e só ficava porque ali era o melhor lugar para ficar.
Quem foi que deixou o amor sair quando estava estampado nos olhos tímidos de culpa e inquietude que ele saía para nunca mais ser o mesmo. Talvez ainda segurando a maçaneta ele tenha se voltado para trás e olhado uma última vez para os dois sentados no sofá alisando o cachorro e quem sabe tenha até mesmo dito que só ia comprar cigarros e já voltava, mas a voz saiu de tal forma que os dois naquela hora já sabiam, e alisavam o cachorro mais forte, e mais rápido, pensando que podiam fazer alguma coisa pra que ele não partisse – qualquer coisa, nem que fosse trancar aquela porta sempre tão docemente aberta –, mas esperando também que no lugar dele outro amor mais convicto viria.
E o amor fechou bem devagar a porta atrás de si, quase sem ruído, quase sem doer, e antes disso ao invés de apagar a luz ele a acendeu, deixou brilhando uma luz insuportável e feia, que esmiuçava os detalhes das peles ao amanhecer, que fazia suar, que encardia o roxo da parede e mostrava que nenhum dos pôsteres de filmes significava qualquer coisa pra eles. Saiu e deixou os dois ali como que sem saber onde ficava o interruptor, sem acertar o abraço, a conversa, o sono, sem saber nem mesmo alisar o cachorro – o cachorro que, só ele, não entendia.
Talvez a pergunta não seja nem quem foi que deixou o amor sair, mas sim quem foi que impediu que ele entrasse de volta quando ele bateu à porta, sem muita certeza, sem muita saudade, mas disposto a ficar, a tentar, a ocupar de novo os espaços e harmonizar as luzes. Ele batia à porta quem sabe ansioso principalmente pela alegria do cachorro que talvez ainda esperasse a retomada do espetáculo crônico da felicidade.
E ele bateu, e os dois se olharam, sem dizer nada – o cachorro latia sem parar diante da porta --, mas eles não abriram, talvez por medo de olhar na cara daquele amor andarilho, que por tanto tempo sumira assim, e que voltava não se sabe com que mãos, com que olhos, com que anseios, o amor que talvez fosse, ele próprio, um estranho ali. Ouviram os passos distanciando no jardim, e finalmente souberam que a casa – que já não era do amor – não era a casa de ninguém.
Agora, sem nunca mais receber notícias daquele amor, eles descobriram que os móveis simplesmente não cabem em casa nenhuma. Por qualquer razão que dói mais que a luz indecente que ele deixou ardendo contra os olhos deles, é preciso mudar completamente tudo, cada centímetro da tão preciosa bagagem, porque não há um novo amor no mundo cujo lar contemple o que se era e o que se poderia ser.
E já nem o cachorro espera.

sábado, 21 de julho de 2012

Sobre as agulhas nessa longa tarde fria


 


O sol bate de um lado só da mesa, e
--Talvez seja melhor dessa vez você sentar pra cá, ta mais quentinho.
Como sempre, ele veio menos agasalhado do que seria razoável, e ela pensa que essa mania irritante seja medo da proteção – ou medo de mostrar que é preciso alguma proteção. Ou talvez seja apenas uma incredulidade sobre a sordidez climática: faz um frio impossível para uma tarde tão linda.
Eles estão aí pra mais um espetáculo gastronômico sempre muito tenso – pra ela, talvez – porque a qualquer momento ele pode mudar os humores, de repente uma azeitona que não se solte do caroço ou uma mensagem banal que acabe por chegar no celular dela. A rede frágil da alegria a se a se embeber em vinho.
 Completamente sentados na mesa do almoço, sentados nas mesas dos bares, jantares, nas cadeiras dos cinemas, no sofá. Completamente sentados porque se estivessem de pé ficaria muito claro que não há para onde ir. Não há caminho possível juntos, e no entanto
--A gente podia viajar no fim de semana que vem
e ela sonha com a praia como se lá fossem fazer sentido, como se cada novo local em que se sentassem pudesse trazer uma nova hipótese desse caminho que desde o início é tão visivelmente inexistente – se fosse possível ao inexistente tornar-se assim visível. Não há caminho para um lugar que não se sabe explicar onde é.
--Quem sabe o Chile, no feriado
E cada palavra tem um peso que não se alivia, cada garfada a dificultar na língua porque a todo tempo sentados, muito sentados, unicamente porque de pé não se abraçam, não se tocam, não se sustentam. Porque de pé uma hora é preciso ir a algum lugar e desde o começo era muito claro que não havia um lugar a que pudessem de fato caminhar juntos.
O peso contraditório daquilo que não pode ser eterno, e por não ser eterno rouba o tempo de tudo que talvez já devesse ter começado, porque apenas se pode de fato começar algo que se prolongue. Eles ali estão apenas sentados. Ainda que estejam sentados há mais de um ano, é muito claro que jamais começaram nada.
E ao garçom pedem as mesmas coisas de sempre em busca da alegria garantida, do contentamento inequívoco, porque alguma coisa ali precisa ser segura, alguma coisa precisa se repetir com a constância e certeza que teria o amor. Como se conhecer de antemão o que se vai comer fosse equivalente a acordar do lado de alguém tão conhecido e amado como o macarrão de sempre do restaurante favorito.
Ela abre a bolsa e a nécessaire pra procurar qualquer coisa sem importância, talvez um espelho, um comprimido, e acaba tirando sem querer uma agulha que talvez tenha se despregado de um pequeno carretel para rasgos repentinos – não que ela saiba costurar – e passa a segurar a agulha num desconcerto sem solução, desnorteada com a impossibilidade de apoia-la em qualquer lugar.
Tenta prendê-la na toalha da mesa, no guardanapo, tenta espetar num palito, qualquer coisa que pudesse proteger o mundo daquela ponta subitamente agressiva, e ela pensa em como fica vulnerável segurando a agulha sem poder desfazer-se dela, imaginando os riscos de todos os locais em que ameaça pousá-la.
Está ela ali a lutar contra a sua minúscula arma quando ele ergue da mesa a rolha do vinho, e sem qualquer hesitação afunda a agulha na cortiça, e ele sorri triunfante: a grande sagacidade do dia.
Ela não sorri, porque tudo neles é pesado, e finalmente percebe. Ela percebe que durante todo esse tempo não houve uma só agulha que brotasse dela que ele não tivesse tornado inócua.
Ele com suas agulhas a qualquer momento sob as unhas dela, nos seios, nos olhos. Suas agulhas envenenadas que ao menor toque a fazem belamente adormecer por tanto tempo – cem anos? Ela feito um vudu masoquista a murchar na espera de uma redenção que não vem. Ele a espetar-lhe o peito a todo o tempo, e depois beijando as feridas como o grande herói de uma guerra íntima.
--A gente pode pedir mais um vinho
E ela calmamente a refugar qualquer agulha que possa ela própria ostentar nas mãos, a inocular uma a uma nas infinitas rolhas dessa longa – mas não eterna – tarde inexplicavelmente gelada e linda.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Faxina


Arrumar o quarto atual da vida e deixar nele só o que é lindo. Só o que é limpo. O que é esteticamente harmônico, bonito, agradável. Arrumar esse cantinho microcosmo que é o nosso contemporâneo espaço de viver, de dormir – dormir demais.
Ajeitar as cores dos quadros, das paredes, dos livros, num súbito feng shui da alma. Eliminar o que não orna, o que sobra, o que cansa a vista. O que dói o corpo, encobre as janelas, consome o ar, a comida, e acima de tudo o que consome o tempo. Deixar só o que é incrível e indubitavelmente belo, seguro, saudável, e acima de tudo doméstica e pragmaticamente funcional.
É preciso eliminar os excessos decorativos, tudo o que é supérfluo, fútil, desnecessariamente estimulante, alienante, viciante. Jogar fora as drogas, restos de comida, fardos de roupa suja. É preciso higienizar os objetos cortantes – talvez seja o caso de não haver objetos cortantes.
E então girar no centro desse quarto quase vazio, rodar muito rápido, várias vezes, até que pelo menos na ilusão de um labirinto interno haja algum movimento, uma queda, um medo, qualquer coisa que cure, que alivie, que ajude a habitar essa insuportável assepsia que é de repente a Felicidade.  

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Bandeira Branca


Eu tenho o poder do amparo, dos seios, da alavanca acolchoada do antecotovelo – para cabeças exaustas.
Tenho o poder da dança, da cintura, do anverso dedicado da língua lenta: eu tenho o poder da mentira e – mais perigoso –, tenho o poder de toda a verdade, da minha verdade pura, minha verdade burra, descompromissada, instintiva. Essa minha verdade encharcada, pesada, explícita.
Eu tenho o poder do choro, do ventre, do sangue ritmado das regras: eu tenho o poder das regras. Tenho o poder do descaso, do abandono, e acima de tudo tenho o poder insuportável e inesquecível e imperdoável e insustentável do mais absoluto zelo.
Tenho o poder da entrega, da boca, do leque receptivo das pernas no colchão: eu tenho o poder do giro, do grito, das unhas, do sono. Tenho o poder da espiral vertiginosa da garganta, da vagina, dos olhos. Eu tenho o poder do descontrole domesticado, efêmero e frágil das serpentinas.
Eu tenho o poder da febre, dos dentes, tenho o poder de me doer inteira e de doer todas as dores.
Eu tenho o poder de ser tantas e ser todas, ser a louca, ser o tambor, e também a certa, a óbvia, a mãe. 
E tenho o poder de machucar, rasgar e – definitivamente o mais perigoso -- tenho o poder de não machucar, de não machucar, de não machucar, de não machucar, até que já não haja dentes, unhas, mentiras, descasos: até estender de vez a bandeira branca irresistível dos meus lençóis cansados.

domingo, 29 de abril de 2012

Crepom, celofane e cartolinas






Madalena de cócoras na concentração da tesoura, mil papelotes vermelho-cintilantes acumulando no chão entre os pés descalços, as unhas também vermelhas no piso gelado, Ainda na toalha, Leninha!, põe logo a roupa, vai. Água nas coxas pingando hora ou outra no papel picado, Um segundo, Estela, vai me penteando o cabelo.
Na cama Teodoro já fantasiado mexia distraído nas plumas da varinha de Estela, talvez desinteressado da pressa, dos recortes, do cabelo, da toalha, ou talvez fingindo desinteresse de todas as coisas que quem sabe amasse demais. Madalena sem tirar os olhos do papel e da tesoura, e os cachos molhados resistindo à escova que parecia violenta e de repente sucumbia no carinho infinito de Estela, Pra quê tanto papelzinho, Lena, ufa...!
E depois Madalena em trajes de guerreira quem sabe um pouco engraçados de fragilidade e timidez, e Teodoro lançando comentários distraídos, ou mais uma vez fingindo distração de tudo aquilo que realmente importa, Mais parece uma escoteira, Lena. Ele com apenas um lençol caído no corpo, pendente num ombro, para ser qualquer coisa que se possa ser com um lençol assim, normalmente um grego, Põe pelo menos isso na cabeça, Teozito.
As pessoas do ônibus com qualquer coisa diferente nos lábios e sobrancelha, essa qualquer coisa que surge nos ônibus quando entram fadas, guerreiras e deuses gregos com suas gargalhadas, e as pessoas já não sabem se ficaram de mau humor ou se querem sorrir, e por isso talvez só desviem o olhar pra onde não haja a visão insuportável dessa invasão de alegria. Madalena segurando um saco com seus papeizinhos e com a outra mão tentando tirar uma foto dos três e sempre na foto um olhar furtivo de um passageiro de trás num susto com o flash.
A noite sem nada demais, um vento entre chuvas, e já nem é carnaval, e a pista de dança quase vazia que eles adoram e ocupam como se os três fossem tantos, como se os três ali fossem muitos, como se eles fossem todos. E as rodas em cirandas súbitas, o samba, as marchas, o saudosismo de épocas que eles não viveram mas poderiam ter vivido, poderiam estar ali fazendo as mesmas coisas em todas as épocas, em todos os mundos.
Madalena girando e caindo nos dois em vários beijos, os três em tortos abraços, ou as duas num salto sobre Teo que mais uma vez se distraía com o rótulo de alguma garrafa – ou na verdade de novo só finge não ver o que talvez ame demais –, que então aperta as duas contra o lençol do seu corpo já cheirando a cerveja, desodorante e reminiscências de lança-perfume.
E num abraço desses Madalena rasga a sacola e atira para o alto seus papéis picados, que descem todos num giro lento, mil corações vermelho-cintilantes flutuando devagar enquanto todo o resto passa rápido em volta deles, enquanto todos correm, pulam, sambam, os corações a descer em voltas vacilantes sobre os três, os olhos encantados, embaçados de esperar a queda, de desacreditar no pouso de tantos celofanes rodopiando laminados, como se fosse impossível haver mais amor que ali onde choviam os coraçõezinhos recortados na pressa do horário do último ônibus.
Na volta os olhos doídos do sol da manhã, e os passageiros que já não estranham a invasão exausta de fadas sem varinha, guerreiras puídas e gregos cambaleantes de cicuta. E os três deitam as cabeças uns nos outros e acordam na mesma cama apertada, ainda rindo, e vão encontrando entre os lençóis tantos corações cintilantes, amassados, molhados. Mesmo no banho depois vão tirando tantos corações nos recônditos mais inusitados, entre os cachos, nos seios, pêlos, umbigos, tantos corações atravancando o ralo e estancando a água em redemoinhos avermelhados de crepom, celofane e cartolinas.
E embora os corações tivessem caído lentos sobre eles foi tudo em volta passando tão rápido, em escovadas violentas do tempo, na distração de quem de fato se desatenta do que mais importa. Estela se cansa de acordar sozinha, doída das noites já sem varinha, sem deuses, sem guerreiras.
O tempo rasgou tudo mal cortado na pressa talvez do último ônibus, mas Estela acorda –sozinha e doída –, e toda manhã acha entre os lençóis pequenos corações laminados de crepom, celofane e cartolinas, grudados na fronha, no pescoço, no ventre, escorrendo pelo ralo do chuveiro, caindo de dentro das roupas do armário, das calcinhas, dos vestidos.
Não adianta lançá-los ao alto, que já não há olhos embaçados que os recebam num giro sincero de amor. Não há mais onde caírem tantos corações que talvez já nem saibam encantar.

quarta-feira, 7 de março de 2012

A queda

    
    Vinte e duas pessoas, ela contou, vinte e duas pessoas, talvez vinte e três porque no meio da contagem ficou com dúvida e optou pelo número menor. Vinte e duas pessoas passaram pela entrada do prédio nas últimas exatas três horas, talvez algumas tenham se repetido, mas isso ela não tinha como saber, seria necessário método, anotação.
    A varanda no décimo primeiro andar deixava ver a portaria e se ela sentasse e colocasse as pernas entre as grades, e esticasse os pés pra fora no ângulo exato – não precisava nem tapar um dos olhos – o portão de entrada podia ficar totalmente encoberto. Então era possível mantê-lo assim até que o barulho distante do portão se abrindo – tudo o mais era o silêncio – anunciasse a entrada de alguém, e no instante exato ela abria os pés e deixava a pessoa passar, como se fosse essa a dinâmica inevitável dos fatos, como se, sem a sua guarda atenta, ninguém entrasse nem saísse do prédio.
    Assim, pendentes para fora da varanda, seus pés finalmente deixavam de encostar o chão. Em todas as cadeiras – na escola, na perua, nos restaurantes –, sempre que se sentava, os pés tocavam implacavelmente o chão, na estabilidade injusta de um tamanho que nenhum dos colegas tinha, todos tão devidamente pequenos, os pezinhos balançando livres, inspirando a proteção e a ternura dos adultos. Os pés de todos os outros no balanço de uma infância do tamanho certo.
    E ela pensava que talvez saltar da varanda com um guarda chuva pudesse potencializar ao máximo os pés flutuantes: mesmo ela, tão grande, ocupando sempre um espaço impertinente – desproporcional à idade, à vontade de correr, de não saber das coisas – mesmo ela tão larga e tão comprida teria muitos segundos pra ocupar todo o espaço entre a varanda e a portaria, sem qualquer chão sob os pés. Seria só segurar bem firme o guarda-chuva – talvez fosse melhor prendê-lo à roupa – e saltar, descer lentamente do céu com os pés numa invisível bicicleta de vento.
    Se alguma coisa desse errado o máximo que ia acontecer é que uma infinidade de crianças que nunca falaram direito com ela viriam ao enterro, assustadas, ou mesmo entretidas, e os jornalistas talvez comentassem que não tinha sido uma atitude muito esperta, mas depois explicariam que, apesar do tamanho, ela ainda era uma menina, era uma criança tão pequena.
    Às vezes, também, quando faltava muito tempo para chegar o dia do seu aniversário, a espera pelo grande evento, pela consagração de todas as atenções era tão lenta e devastadora que ela pensava em pular sem o guarda-chuva. Eram meses longos de mais prostrada naquela varanda, acumulando vertigem nos olhos, no estômago, nos pés que de sempre tão pesados no chão só queriam o descontrole da queda.
    Mas a varanda tinha uma fina tela de proteção envelhecida e úmida, em que ela apoiava a testa e depois erguia o rosto quadriculado da rede. Ela chegou a cortar alguns quadrados da lateral, e não teve coragem de cortar mais. A mãe perguntou o que era aquele rombo e ela respondeu que devia de ter rasgado com o tempo e nunca ninguém falou nisso porque se fosse o caso de se falar de fato nisso seriam coisas incrivelmente difíceis de serem ditas, e, apesar do tamanho, ela era uma criança.
   Hoje já não há tempo para contar pessoas na portaria e os aniversários chegam mais rápido que o esperado, e já nem trazem tantas atenções. A vertigem engolida dia-a-dia no décimo primeiro andar de um prédio insuportavelmente branco e silencioso ainda insiste em arremessá-la por todos os buracos da vida, sem tela de proteção envelhecida ou guarda-chuva.
    E agora, justo agora que todo o mundo alcança e apoia bem firmes os pés no chão, não há meios de curar-lhe a infinita queda.