quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Gata no cio



Já todas as luzes no escuro e as portas fechadas e o barulho hesitante do teclado do meu computador na única sala acesa dentre tantos corredores. O vazio, as sombras, as reminiscências das tantas gentes que passaram durante o dia, os choros, abraços, o tilintar das algemas, chinelos, crianças: tudo no silêncio jurídico da meia noite dentro do fórum criminal.

E é nesse lugar, nessa noite lenta, que ela sai das suas trevas no jardim central – esse impossível antro de vida selvagem na estufa de ar condicionado e sol fosforescente em mil lustres de licitação – para uivar o lamento agudo de mais um cio solitário. É aqui que ela chora o seu cio bandido, clandestino, seu cio de ferro.
A gata sozinha entre moitas quase sintéticas e passarelas negras por onde já não vê doutores, senhores, louvores, nem mesmo já não vê desgraças, só a sua fúria uterina a lhe contorcer os ovários, a pulsar no ventre esse fruto que não vinga, esse despontar de fertilidade desaproveitada. A gata malhada a gritar, a espalhar pelo eco a sua força, a sua dor de ausência, a embaralhar entre as letras do meu computador o chamado doído do seu desejo. Uma pausa minha a cada frase, o meu grito calado em respeito a esse miado louco desatendido porque não há animal que alcance a fêmea nessa impenetrável clausura.

Nesse lugar cheio de prisão vem ela escancarar sua escravidão maior, sua ânsia insaciável dentro desse grande bloco de concreto. A gata no seu lamento cada vez mais alto, insuportável desespero que nenhum afago abranda, nenhum copo de leite.

A cada berro fica em mim a certeza de uma energia linda, fulgurosa, única, que ela dissipa em
tremores de um cio desencantado de cárcere e solidão. Apago a última luz e deixo a gata sozinha com o eco insistente de todo o seu amor.
Lá fora uma súbita lua dourada num calor de inferno, que me segue até o carro, até a casa, até a cama.

2 comentários:

Marcos disse...

maravilhoso!

Anônimo disse...

Chega a doer, de tão lindo e honesto. Beijo. Mari.