sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Passado








que nem quando uma coisa nossa 
um batom, um telefone, um frasco,
cai no chão:

é preciso abaixar e apanhar a coisa
e elevá-la devagar
apenas um ou dois palmos do chão

e então nos mantemos assim curvados
vergados sobre a coisa
a examinar eventuais rachaduras
como se um milagre viesse da nossa reverência

em volta todos passam
trombam nosso quadril dobrado 
a lombar em deferência cerimonial
mas é preciso que a coisa permaneça ali 
entre a queda e o salvamento
suspensa
até que se tenha certeza de que tudo ainda é como antes

como se a velocidade do resgate
fosse mais perigosa que a queda
ou, senão

como se, após breve exame do estrago, 
fôssemos abandoná-la de volta ao chão. 

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Sirene


De tanta alegria, esse era um amor que assombrava os meus dias com a possibilidade da tragédia, porque só a tragédia encerraria aquilo que a gente vivia. E por isso esse amor era um cão alerta dentro de mim, que me revirava as entranhas cada vez que eu ouvia uma ambulância ou bombeiro rasgando a rua depressa na fúria que exigem as tragédias.
Podia ser você, no fim da avenida embaixo de um ônibus, de um poste de energia, uma facada, um enfarto, e era importante calcular os seus horários, intuir sua geografia, e de fato como um cão que precisa antever o perigo ainda que não possa fazer nada contra ele, eu não podia relaxar enquanto aquelas sirenes não deixassem de ser possíveis reverberações urbanas dos seus gritos.
E eu pensava com muita força em você recebendo os socorros, você até sorriria para os paramédicos porque era importante que eu pensasse em você muito bem, como se a minha convicção de que você estava em perigo, mas ainda a salvo, pudesse manter a tragédia afastada. A tragédia é para os incautos, os que não estão prestando atenção em todos os caminhos do perigo.
Daí você me escrevia sobre estar trazendo chocolate ou pepino da vendinha e depois chegava e ia tirando a roupa e depois falava qualquer coisa embaixo do chuveiro e entrava no nosso lençol e me abraçava como se você não tivesse quase morrido, como se você não pudesse quase morrer todos os dias e acabar com tudo isso, como se você não corresse imensos riscos gerando toda essa felicidade, a felicidade que sempre chama tanto a atenção da tragédia.
Então só dessa vez as sirenes passaram correndo na minha frente e não acionaram nenhum tipo de mecanismo dentro de mim, talvez porque você supostamente não estivesse ali na região da nossa casa, você certamente no meio das suas correrias e essas sirenes tão completamente dissociadas de você, por isso eu continuei caminhando, descendo a avenida talvez sem lembrar que você existia e menos ainda que você podia deixar de existir.
E quando eu cheguei enfim na nossa rua as sirenes já não soavam e as luzes rodavam lentas, sem pressa nenhuma, e eu supus que fosse um gato na árvore, bem na porta do nosso prédio, e os vizinhos já quase carpideiros me olharam plastificados e ninguém dizia nada, mas também não me deixavam exatamente passar, apenas tentavam me paralisar numa tensão que não existia em mim, fosse o que fosse que eu não tinha nada a ver com isso, eu trazia suco de laranja pro dia seguinte, você ia ficar tão contente com o suco de laranja, eu tinha uma bolha no calcanhar por causa do tênis novo e vinha sonhando com um banho, mas era isso, o corpo embaixo da lona preta, você tinha pulado do vigésimo andar. O nosso vigésimo andar.
A única vez em que eu não senti o perigo, única vez em que eu não espreitei por entre os meus delírios os caminhos da tragédia, essa tragédia que tinha aprendido a seguir também a tristeza, a mais discreta das tristezas, eu fiquei pra sempre dentro daqueles quatro ou cinco quarteirões que eu desci depois que as sirenes esvoaçaram o meu casaco descendo a avenida numa pressa que eu não tinha, fiquei ali nos minutos em que você morria e eu nem desconfiava, não tentava te salvar com a minha previdência nem com a minha felicidade.
Você ficou soando dentro da minha cabeça na única sirene que me atravessou e eu não ouvi, eu relaxei uma tarde e você morreu.


quarta-feira, 8 de março de 2017

Se eu fosse uma casa


Se eu fosse uma casa minha sala era assim aberta e imensa feito um escândalo que retumbasse nas paredes dos vizinhos e onde caberiam as gentes e os amores todos, um relógio na parede rodando todos os tempos, que o passado girasse sempre perto e tão em volta de mim que o tempo fosse ele todo um imenso agora. Na confusão dos meus ponteiros e a música alta e a minha bebida acabaria que ninguém nunca ia embora.
Cada livro na estante seria um livro que eu não escrevi, e seriam tantos que durante a noite tombariam sobre a minha cabeça na forma de uma insônia. As lâmpadas só se acenderiam com a energia dos outros, seria preciso que o telefone tocasse e que os amigos me escrevessem e apreciassem minhas fotos, que os homens viessem e depois voltassem sempre, querendo ficar e viver comigo, ainda que não pudessem ficar todos ao mesmo tempo, por maior que fosse a sala, para cada lâmpada acesa seria necessário um elogio, uma risada que me dedicassem, mãos dadas na rua.
E cada colher seria um pequeno espelho deformado de mim, um espectro dos meus olhos que me envergam e me incham, as colheres cintilariam neuróticas pela mesa, pia, ganchos nas paredes, haveria colheres refletindo concavidades em todos os cômodos.
E cada ovo da cozinha era um amigo, o barulho da casca quebrando de leve na quina da pia no mesmo som de uma amizade que se rompe, o ruído delicado e breve de qualquer coisa que se transforma, ou às vezes explode sem querer no chão e fica ali brilhando amarelo e inútil – não se tornará nem um suspiro.
A cama seria a minha memória, lembranças de tantos anos ressoando nas molas, tilintando metálicas em espirais seculares de vai-véns noturnos, matinais, memórias cinéticas de tardes perdidas, homens catapultados até mesmo pela curva tão complacente dos meus ponteiros, queridas molas que não esquecem, guardam no seu sacolejo e me devolvem elásticas cada pulsar que eu dei, mesmo criança em saltos proibidos, os pezinhos descalços e as mãos para cima, as molas a impulsionarem para o alto, risadas, alguém dizia que eu ia quebrar a cama, que nunca quebrou, ou que eu cairia, eu que caí tantas e tantas vezes depois e talvez justamente por não pular mais das camas. As molas e seus saltos de um jeito ou de outro sempre um pouco proibidos, vibrantes.
A água da torneira seria a minha tristeza, e minha alegria, e o meu amor. A torneira jorraria primeiro pelos encanamentos e se não acolhesse derramaria pelos ralos, pias, molharia as visitas e subiria encharcada pelas meias, calças, e escoaria pela porta o que não me bastasse, tudo que eu-casa não contivesse, afogaria um a um todos os filhos que eu não tive e até mesmo os que talvez preferisse não ter tido, e eles gritariam por instantes mas logo engoliriam depressa em golfadas toda a minha dor e o meu amor assim sufocantes, inundaria a calçada, e talvez chegasse a incomodar os carros, e ainda assim essa água toda, essa torneira, ninguém repararia, continuaria escoando e afogando e espantando tantos anos sem ninguém estancar.
As janelas seriam gigantes, elas seriam as outras mulheres. Cada prédio, cada casa, cada grito na noite, cada braço mais fraco que o meu, cada canto mais forte, todas ali ao alcance dos olhos, as janelas assim numa invisível rede que não cobrisse nada, mas que amparasse, incansável, cada salto, cada queda.