quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Remédio para o silêncio




É que tantos anos depois ainda é fundamental saber sempe, o tempo todo, onde é que estão seus pais. Esses pais que embora não o alimentem com as mãos, ainda cuidam dos seus dias porque a falta que fizeram no momento em que ele não entendia nada fez com que não entendesse nem suportasse mais uma porção de coisas. Por mais que ele saiba ir e saiba voltar é impossível sair, décadas e décadas evitando as ruas com seus olhares, ruídos, uniformes, é preciso até hoje que ele feche as janelas, que não seja visto, é preciso que ninguém se incomode com o seu choro.

Porque entraram derrubando a porta como entram derrubando ainda as portas de tantas casas e ele chorou de susto e depois de fome e talvez esse choro tenha despertado o primeiro golpe, o primeiro arremesso da criança no chão, a cabeça no baque seco, o lábio aberto, e ainda mais choro porque era impossível compreender por quê. E naquele dia a criança subversivamente intolerável, perigosa, gritou, fritou, doeu inteira na rede elétrica, nos impulsos, volts, amperes – risadas? --, e no meio de tudo o barulho do trem na Estação da Luz que passava e voltava tantas vezes sem levá-lo dali, sem trazer ninguém, o barulho de um trem que parecia dentro dele, nas veias, no sangue, nos dedinhos chamuscados de choque.

E depois a criança ainda sem entender, a perguntar à mãe que trem é esse passando tantas vezes dentro da cabeça, que vagões são esses tão perto, que não cansam nem chegam ao destino, que trilhos podem estar assim tão fundo dentro dos ouvidos. E depois a criança cada vez entendendo mais e encontrando o diário dos pais, aprendendo os desenhos, palavras da sua história, prisão, tortura, choro, medo, a criança lendo e sentindo mais claras as dores, os ruídos, os pavores. Porque até hoje o coração de repente disparando em correntes elétricas inexistentes, baques, sustos, o coração sempre pronto para o pânico.  

Porque até hoje ele não teve vida que não fosse um choque, não teve prazer que não fosse pra ele mesmo clandestino, até hoje não teve sequer um silêncio que não fosse um calabouço de ecos nos labirintos do ouvido, por tudo isso ele precisa de muitos remédios. Mais remédios do que pode o próprio corpo suportar, remédios para memória, para o silêncio.

Remédios para esquecer finalmente tudo o que a sua pátria se nega a lembrar. Remédios para talvez tirar do silêncio – este silêncio que ele nunca conheceu – os nomes que seu país insiste em calar.

Descanse, enfim, Carlos Alexandre Azevedo, que por você não descansaremos.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Pra quando o carnaval





Pronto, agora pode me levar pra rua. Pode me puxar pela mão na multidão, pode me encher da sua cerveja infinita, seus saltos, gritos, goles, gargalhadas, pode me colorir das suas mil cores, pode me vestir na sua pouca roupa, e me girar, pode me confundir na sua falta de senso, logo você que não sabe a hora de vir e muito menos a hora de ir embora, pode me vendar a vista e me levar pelas suas terras distantes que agora eu já tive a minha dose fundamental de melancolia.
Já vivi sozinha a minha sexta-feira paulistana com o que pode haver de mais úmido nesse início de carnaval, que é um violoncelo, e nos batuques já perdi meus olhos -- dos gardenias para ti --, agora pode me levar que estou pronta. Já me protegi de você com toda a nostalgia de uma sexta assim, já me protegi de você com toda a minha dor, toda a minha saudade de qualquer coisa que não sei quê, pode vir com toda a sua fúria carnavalesca que eu já posso ser inteira sua.
Pelo amor de deus que já quero acordar num beijo seu, no seu abraço longo, suado, quero acordar com a sua voz sempre tão inacreditavelmente alta – que saudade da sua voz!  –, eu quero que você me rasgue a roupa e me pinte, que você me encha dos seus brilhos, que você me confunda e me iluda, pode gritar, apitar, pode rufar seus tambores, que eu não me assusto, tenho em mim gravadas, costuradas, as dores que me salvam da sua vertigem. Eu tenho tatuagens que você não apaga, tenho em mim as marcas fortes do meu endereço, pode me levar que eu sei voltar.
Vai, me leva, vem e me tira desses lençóis doídos, que eu já passei tempo demais nas camas erradas, e tempo demais na minha cama, vem e me leva pelos seus corredores, e me canta me dança me mente me assalta e me arrasta pelas suas avenidas, e me grava na sua bandeira, Alegria, que agora sou toda sua. Vem e me roda nos seus sambas, apertos, segura a minha mão, Alegria, e me flutua, que eu já pesei demais.
Pode me levar nas suas cócegas, pode me hastear nos seus ventos, Alegria, que eu estou completamente pronta pra você, pode me bailar que eu não tenho mais medo. Pode me enlouquecer, alucinar, entorpecer, e pode também me esquecer, Alegria, que eu já sei como as coisas são, que eu já estou pronta pra te ver, pra te sorrir, pra te amar, e pra te deixar partir.