tag:blogger.com,1999:blog-12143798977482319602024-03-19T00:51:28.166-03:00Delicada uma de nósMari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/15363136435720079729noreply@blogger.comBlogger113125tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-38012016312692996332019-02-12T09:42:00.004-02:002019-02-12T09:45:48.074-02:00Seres fantásticos<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEilpECdXRLlQM0ZkHJ9QM-y1GM56IchnJmjjYOiCa9-HuZlbpgP8pvWqIRdkogeIZf59HBdn-x11FmzmtPdNrpYYiTrGBtVpmzYAyhehGFaeA6BCWhOzw3RTWPSKnebByilSNe1ysXNgY4G/s1600/20190212_092642.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1070" data-original-width="1045" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEilpECdXRLlQM0ZkHJ9QM-y1GM56IchnJmjjYOiCa9-HuZlbpgP8pvWqIRdkogeIZf59HBdn-x11FmzmtPdNrpYYiTrGBtVpmzYAyhehGFaeA6BCWhOzw3RTWPSKnebByilSNe1ysXNgY4G/s320/20190212_092642.jpg" width="312" /></a></div>
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<!--
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<br />
<div align="justify" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; orphans: 2; text-indent: 1.1cm; widows: 2;">
<span style="color: #f3f3f3;"><br /></span></div>
<div align="justify" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; orphans: 2; text-indent: 1.1cm; widows: 2;">
<span style="color: #eeeeee;"><span style="font-variant: normal;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: small;"><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">Brumadinho
tinha um monte de cachorro, porque as pessoas tinham as suas vidas e
tinham os seus cachorros, e alguns deles foram salvos, então vamos
supor que você e eu adotamos um cachorro que foi resgatado ali, nós
estamos esperando que ele chegue de Minas Gerais, parte dos pelos por
enquanto ele não tem, a lama arrancou, a outra parte está nas
orelinhas tremelicando nos fundos do caminhão da Ong. Depois de
muito tempo vendo o mesmo chão e ouvindo a mesma lataria ele dorme,
porque é assim que funciona, mas o sono já não é o mesmo. </span></span></span></span></span>
</span></div>
<div align="justify" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; orphans: 2; text-indent: 1.1cm; widows: 2;">
<span style="font-variant: normal;"><span style="color: #222222;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: small;"><span style="font-style: normal;"><span style="color: #eeeeee; font-weight: normal;">Ele
sobe pelo elevador com você e eu abro a porta e o felicito
muitíssimo, testo todas as minhas vozes que indicam alegria, mas ele
entra degavar, sente o nosso chão gelado, que é tão firme. Procura
no cheiro do sofá as pessoas que você e eu não somos.</span></span></span></span></span></span></div>
<div align="justify" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; orphans: 2; text-indent: 1.1cm; widows: 2;">
<span style="color: #eeeeee;"><span style="font-variant: normal;"><span style="color: #222222;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: small;"><span style="font-style: normal;"><span style="font-weight: normal;">Como
será ter em casa agora um cão que entende de tragédias, nós tão
levianos, acabou o café, o detergente, digo alguma coisa sobre o
sinal da internet, você vai até a sala apertar botõezinhos, o
cachorro move as orelhas na direção das nossas vozes mas o que
dizemos não importa, ele sabe, nunca diremos nada que tenha um
pedaço da magnitude do que ele já viu. </span></span></span></span></span></span>
</span></div>
<div align="justify" class="western" style="font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; orphans: 2; text-indent: 1.1cm; widows: 2;">
<span style="color: #eeeeee;"><span style="color: #222222;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="font-size: small;">Parado
diante da varanda o nosso cão pode estar tomando um pouco de sol, ou
pode estar vigiando o horizonte, é do horizonte que chegam as piores
catástrofes, de agora em diante ele está atento, não vai acontecer
de novo, ele vai alertar muito antes de a morte quebrar estes vidros
e derrubar as paredes, vai tirar todos nós daqui, nunca mais uma
perna um braço um corpo inteiro destroncado, não tinham explicado
pra ele que donos podiam morrer assim, logo ele tão atento diante do
berço, não fosse aparecer um animal selvagem, um invasor, agora nós
dois temos um cão que entende mais do que pode caber dentro da
cabecinha quente sob o sol da varanda, ele aceita muito grato o meu
carinho que dói porque agora ele sabe que os carinhos acabam e então
todas as coisas têm o tamanho das ausências que carregam. </span></span></span>
</span></div>
<div align="justify" class="western" style="font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; orphans: 2; text-indent: 1.1cm; widows: 2;">
<span style="color: #eeeeee;"><span style="color: #222222;"><span style="font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><span style="color: #eeeeee; font-size: small;">Um
cão que talvez tenha sido erguido do barro quase sólido, as patas
de trás ainda presas, e quando enfim o olho viu o bombeiro o que ele
entendeu é que nós os seres humanos somos fantásticos, fazemos o
que ele não fez por ninguém, nós salvamos, e é assim que ele vive
em nosso apartamento, amando completamente o que é humano e tão
benevolente, atento à janela de onde pode vir a lama, a televisão
ligada falando dele, dos restos de tudo que era dele, um humano muito
gentil ao microfone lamenta profundamente, o cão na varanda sabendo
tão mais que você e eu – você que sobe agora com café,
detergente, a revista do mês e papel higiêncio –, ele festeja a
sua chegada porque de fato cada retorno é uma sobrevivência,
suspira satisfeito, a sorte que tem, o cão sabendo tanto e ainda
assim os olhinhos de amor, a língua afoita na direção do que é
humano, seres fantásticos. </span></span></span>
</span></div>
<div align="justify" class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; orphans: 2; text-indent: 1.1cm; widows: 2;">
<span style="color: #eeeeee;"><br /></span></div>
<br />Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/15363136435720079729noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-53174700193189407762018-12-18T20:23:00.002-02:002018-12-18T20:29:55.901-02:00Azulada e dura<style type="text/css">
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</style>
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjX1dtfpoycQZCGzQ2jMpficcGwYgw8miyJU0BxR4hN8tpBAlosu09iBlOiNCxp0ctrmEOqQXjUz1Q54SKYQcHsD2jDM-RiO-05-VBB3q32H3bHaKDSRuJnPtZyS0dO8shYfYH-snByQfs/s1600/bote10.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="465" data-original-width="620" height="240" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjX1dtfpoycQZCGzQ2jMpficcGwYgw8miyJU0BxR4hN8tpBAlosu09iBlOiNCxp0ctrmEOqQXjUz1Q54SKYQcHsD2jDM-RiO-05-VBB3q32H3bHaKDSRuJnPtZyS0dO8shYfYH-snByQfs/s320/bote10.jpg" width="320" /></a></div>
<br />
<div align="justify" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm;">
Quando
a temperatura está acima de todos os graus e você vai ao
Departamento Estadual de Trânsito com uma pasta de documentos, você
se preocupa em se encaixar dentro das sombras em todo o caminho desde
o metrô, e depois em se abanar de pé na fila com a pasta sem que os
documentos caiam, e você sai do Departamento Estadual de Trânsito
horas depois com as burocracias um pouco mais resolvidas, na cabeça
três ou quatro carimbos, a atendente que não sorria de jeito
nenhum, você se pergunta por que esperava tanto esse sorriso, os
carimbos, o sol, as sombras já se moveram e é difícil acertá-las,
você pensa em agendamentos, e está com uma estranha vontade de
resolver mais burocracias.</div>
<div align="justify" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm;">
Vasculha
nos arquivos dos fardos mentais insignificantes qualquer pendência
governamental ou similar que possa fazer sentido geográfico nessa
tarde quente, é subitamente muito importante que esta se torne a
tarde das soluções, você odeia pendurar deveres, a cabeça ainda
nos carimbos fotos três por quatro um cadastro, e de repente o rio
Tamanduateí cercado de gente, um cachorro que é resgatado pelo
corpo de bombeiros, algo de ferro mergulhado no rio, algo que sua
mente resolve chamar de grua, deve ser uma grua que desce do caminhão
dos bombeiros e os populares em volta estão filmando, não é um dia
para resgates, sua cabeça ainda se demora nos carimbos, é o dia das
burocracias.
</div>
<div align="justify" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm;">
Você
desvia apenas de leve o trajeto na direção do milagre, já decidida
que pode caber um milagre no meio desta tarde quente, muitos
celulares na direção do rio, um vídeo a que depois talvez você
assista na internet e possa dizer que viu tudo de verdade, que o
cachorro de fato entendeu o trabalho dos bombeiros e subiu com eles
aliviado e grato, então você estica discretamente os olhos por
cima dos celulares, só para poder dizer que viu mesmo o resgate. Na
cabeça um pouco de milagre mas ainda um monte de carimbo
requerimento pasta suor três por quatro biometria, ali embaixo no
rio Tamanduateí você vê por apenas um segundo o bote com o corpo
de bruços, a mulher azulada e dura, as pernas, a saia encharcada, o
corpo que ondula nos celulares, você viu por apenas um segundo, a
imagem que ficou desta tarde muito quente perto do Departamento
Estadual de Trânsito.</div>
<div align="justify" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm;">
E
então você continua tentando chegar ao metrô, carimbos, cadastros,
é possível que numa tarde como esta o corpo de uma mulher seja
filmado de bruços no bote dos bombeiros dentro do rio Tamanduateí,
complicando o trânsito, você não sabe se ela foi jogada ali
durante uma briga, se veio arrastada pelas águas na enchente, se ela
pulou, não aguentou o peso das crianças das sacolas do medo, de
toda forma assassinada, catraca, sua pasta de documentos
diligentemente contra o peito, assuntos resolvidos, o bote,
departamento, perícia, a imagem rápida, azulada e dura.
</div>
<div align="justify" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<br />Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/03411616759927506903noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-58927719987568349662018-10-16T09:49:00.001-03:002018-10-16T09:52:48.744-03:00Estarrecimento é quando<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhJD_mf8Vn1S1fgLVe9H20s8NhpttZuQT_Wr3APomZ9mw2ThOj0PsQD9Ifs5N_mLcLsy6d35P66cWeO3LkZqomSXt79FZKH0G6UhmnhrUHwzVQ3le-LJYsE1022weIQqdvfCeBldsiyLRw/s1600/20181016_094438.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1600" data-original-width="1040" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhJD_mf8Vn1S1fgLVe9H20s8NhpttZuQT_Wr3APomZ9mw2ThOj0PsQD9Ifs5N_mLcLsy6d35P66cWeO3LkZqomSXt79FZKH0G6UhmnhrUHwzVQ3le-LJYsE1022weIQqdvfCeBldsiyLRw/s320/20181016_094438.jpg" width="207" /></a><span style="background-color: #444444; color: #f3f3f3; font-family: "helvetica" , "arial" , sans-serif; font-size: 14px;">É preciso que o cachorro ainda pule quando eu abro a porta, será que ele pode parar com isso essa semana? Um dia abro a porta e ele me olha do fundo da sala, imóvel, ele entendeu tudo, o país, entendeu os meus olhos todas as noites quando abro a porta eu mesma ainda sem acreditar, meu cachorro de repente também com esses olhos imóveis de estarrecimento. </span><br />
<span style="background-color: #444444; color: #f3f3f3; font-family: "helvetica" , "arial" , sans-serif; font-size: 14px;">Estarrecimento é quando o cachorro não consegue sair da cama para comemorar a sua chegada, e é quando você não consegue sair de casa para comemorar a sua vida, é quando o vizinho não encontra a porta, não sabe onde foi parar o seu país. </span><br />
<span style="background-color: #444444; color: #f3f3f3; font-family: "helvetica" , "arial" , sans-serif; font-size: 14px;">Eles dizem que o Brasil tem mais de sete mil quilômetros de litoral, o mar batendo bonito na areia, mas já não parece assim, aonde foi o mar, não cabe o mar e tudo isso na mesma terra, estamos secos de incêndio. </span><br />
<span style="background-color: #444444; color: #f3f3f3; font-family: "helvetica" , "arial" , sans-serif; font-size: 14px;">A gente procura, eu e o cachorro, as janelas dos vizinhos sentindo a mesma coisa, é preciso que os vizinhos sintam a mesma coisa, não porque diminua a coisa, a coisa é imensa, mas só porque parece que poderemos um dia pular todos juntos da cama e comemorar o retorno do país, o barulho do elevador do país subindo de volta, o som das chaves na mão do país, nós e os vizinhos, é bom saber que eles moram nas mesmas dores, esperam os mesmos gritos. </span><br />
<span style="background-color: #444444; color: #f3f3f3; font-family: "helvetica" , "arial" , sans-serif; font-size: 14px;">É preciso que o cachorro ainda salte e abane o rabo quando a gente entra e os vizinhos ainda recebam desconhecidos sensuais para um pouco de vinho ou uma paixão ou um pedaço de pizza, será que os meus vizinhos vão continuar recebendo desconhecidos diante da minha janela morta, quando o país inteiro estiver apagado, vai ter alguma luz nas janelas? </span><br />
<span style="background-color: #444444; color: #f3f3f3; font-family: "helvetica" , "arial" , sans-serif; font-size: 14px;">A gente escuta que o ódio cresceu ainda mais, e pra onde pode ser, que espaço tem, se não é no ônibus silencioso que a gente pega pra casa, se não é na janela do vizinho, se não é no cachorro, é preciso que o cachorro tenha alguma felicidade, pelo menos ele, a energia de pular da cama até a porta, se nem ele vier, já não sei, se eu abrir a porta e ele não vier, não sei.</span>Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/03411616759927506903noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-22003463159421643482018-08-25T00:56:00.000-03:002018-08-25T01:44:00.022-03:00Vida minha vida<style type="text/css">
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<br />
<div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 0.9cm;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhS2VPQFhpcj5EsIoghqq2XdJY3mU0w4nsVQxzTjyFXrusy0jHqvsg5y_2PnIVI9LDewzQ8YeHt8s0mRY7HpIyF_VdI8yzdwtgTrYziA9Sy82tIOfq5okcDn80E7kcZTpOkukucR1ciz5M/s1600/20180824_220835.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><span style="background-color: #666666; color: white;"><img border="0" data-original-height="1200" data-original-width="1600" height="240" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhS2VPQFhpcj5EsIoghqq2XdJY3mU0w4nsVQxzTjyFXrusy0jHqvsg5y_2PnIVI9LDewzQ8YeHt8s0mRY7HpIyF_VdI8yzdwtgTrYziA9Sy82tIOfq5okcDn80E7kcZTpOkukucR1ciz5M/s320/20180824_220835.jpg" width="320" /></span></a></div>
<div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 0.9cm;">
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</div>
<div class="" data-block="true" data-editor="6givr" data-offset-key="f6bgg-0-0">
<div class="_1mf _1mj" data-offset-key="f6bgg-0-0" style="direction: ltr; position: relative;">
<div class="western" style="font-family: inherit; font-size: 14px; line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 0.9cm; white-space: pre-wrap;">
<span style="background-color: #666666; color: white;">
<span style="font-family: inherit; text-indent: 0.9cm;">Vida minha vida</span>
</span><br />
<span style="background-color: #666666; color: white;"><span style="font-family: inherit; text-indent: 0.9cm;">Entro no bar de outras épocas, é tão bom entrar num bar de outras</span>
</span><br />
<div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 0.9cm;">
<span style="background-color: #666666; color: white;">épocas, as mesas repletas de outras formas de mim. Mas a nostalgia
não é só minha, descubro que amanhã é a última noite desse bar
que tem tantas décadas, as capas enquadradas dos melhores discos
brasileiros, todas as capas do Chico Buarque, manchetes de época,
tudo tem papeizinhos brancos colados nas molduras com o nome de
alguém e o telefone, cada um que conseguiu garantir uma lembrança
do bar.
</span></div>
<span style="background-color: #666666;"><span style="color: white;">
</span></span>
<div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 0.9cm;">
<span style="background-color: #666666; color: white;">O bar de outras épocas. Eu vinha aqui com pessoas de outras épocas,
começa a me doer essa implosão do tempo em cima das próprias
ruínas. Os dois músicos não envelhecem, talvez porque cantam as
mesmas músicas, hoje há comoção em tudo (Vida minha vida olha o
que é que eu fiz), cruzo os olhos com um ex-namorado de uma amiga,
um homem que nos fez tão mal, ele canta com os braços pra cima,
abraça os músicos, está também comovido, sabemos os dois todas as
letras, que trágica é a afinidade.
</span></div>
<span style="background-color: #666666;"><span style="color: white;">
</span>
</span><br />
<div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 0.9cm;">
<span style="background-color: #666666; color: white;">Justo hoje, nesse bar, que acaba, justo hoje esse homem, eu e minha
amiga tão juntas, duas meninas, era preciso rasgar os vínculos,
enfraquecer (Verti minha vida nos cantos na pia na casa dos homens).
Quem sabe hoje ele mudou, já passaram catorze anos, não sei,
ninguém devolve aqueles anos que ele roubou de nós duas.
</span></div>
<span style="background-color: #666666; color: white;">
</span>
<div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 0.9cm;">
<span style="background-color: #666666; color: white;">Eu poderia ter aparecido neste bar daqui a uma semana, um mês, um
ano, a porta fechada, uma loja de roupas, seria diferente de ter
aparecido hoje, estou de repente cúmplice das coisas todas que
acabam. O ex-namorado da minha amiga não me reconheceu, eu acho,
penso no colágeno que perdi. Minha mãe está fazendo 60 anos, ela
gostaria deste bar, desta noite, um bar de colágenos imemoriais.
</span></div>
<span style="background-color: #666666; color: white; font-family: inherit; text-indent: 0.9cm;">Minha outra amiga envia no celular um estudo, um alerta, beber dá</span><span style="background-color: #666666;"><span style="color: white;">
</span></span><br />
<div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 0.9cm;">
<span style="background-color: #666666; color: white;">câncer, sorrio para o meu copo, eu hoje cúmplice das coisas todas
que acabam. Um perigo estar sozinha no bar de outras épocas, que
está acabando, onde eu vinha com pessoas que acabaram, de outras
épocas. Se não conhecesse o ex-namorado terrível da minha amiga eu
sorriria agora para ele, dançaríamos, erraríamos, começaríamos
os próximos cinco anos mais apavorantes da minha vida (mas vida ali
quem sabe eu fui feliz), um perigo a qualquer de nós estar sozinho
no bar de outras épocas que está acabando.
</span></div>
<span style="background-color: #666666;">
</span>
<div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 0.9cm;">
<span style="background-color: #666666; color: white;">Quando será que sabemos que um filho já pode ficar sozinho no
quarto brincando, não vai botar um brinquedo pequeno na boca, a
cabeça num saco plástico, o que foi que a minha mãe viu em mim e
soube que eu já podia ficar sozinha no quarto, o que eu fiz pra
conquistar isso, e depois quantas vezes mais, quantos anos, sozinha
no quarto.
</span></div>
<span style="background-color: #666666; color: white; font-family: inherit; text-indent: 0.9cm;">O quarto de outras épocas. Minha amiga avisa da bebida que mata mas</span><span style="background-color: #666666;"><span style="color: white;">
</span></span><br />
<div class="western" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0cm; text-align: justify; text-indent: 0.9cm;">
<span style="background-color: #666666; color: white;">é o bar que está aqui morrendo (Vida minha vida olha o que é que
eu fiz), que saudade difícil é esta, o bar de outras épocas, o
quarto com brinquedos que eu já não ponho na boca, então eu muito
sozinha com os brinquedos de várias épocas, o ex-namorado da minha
amiga, tão terrível, encantador, os mesmos braços abertos para o
céu, cantando as mesmas músicas, as pessoas de outras épocas,
pessoas que eram completamente para-sempre, cantando as mesmas
músicas no bar que a gente não sabia que um dia acabaria, porque a
gente não achava que nada acabasse (Arranca vida estufa veia e pulsa
pulsa pulsa pulsa pulsa mais). Quero mais.</span></div>
</div>
</div>
</div>
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<!--
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</style>
<br />
<br />Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/03411616759927506903noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-57237408264493123912017-12-08T17:48:00.000-02:002017-12-08T17:54:00.850-02:00Passado<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEin2Gnc1lphkoDs6VoqBp9G7JuZJvs5DwUvmXmH7fLs-xQdVd6eFeU8fDwe5TkdUtUtTtWuMbdZ-FByPBsieRjP_kQJmO3vYb32vuIdxnT2C9c9ryEdVnZPhD8SVf0yMn2DvKcMM_BoMDw/s1600/374967_278441532205110_1551681338_n.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="960" data-original-width="720" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEin2Gnc1lphkoDs6VoqBp9G7JuZJvs5DwUvmXmH7fLs-xQdVd6eFeU8fDwe5TkdUtUtTtWuMbdZ-FByPBsieRjP_kQJmO3vYb32vuIdxnT2C9c9ryEdVnZPhD8SVf0yMn2DvKcMM_BoMDw/s320/374967_278441532205110_1551681338_n.jpg" width="240" /></a></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<br />
<br />
<br />
<br /></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="background-color: #444444; color: #eeeeee;"><br /></span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="background-color: #444444;"><span style="background-color: white; color: #eeeeee;"><br /></span>
</span><br />
<div style="color: #222222; font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="background-color: #444444; color: #eeeeee;">que nem quando uma coisa nossa </span></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="background-color: #444444; color: #eeeeee;">um batom, um telefone, um frasco,</span></div>
<div style="color: #222222; font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="background-color: #444444; color: #eeeeee;">cai no chão:</span><br />
<span style="color: #eeeeee;"><br /></span>
<span style="color: #eeeeee;">é preciso abaixar e apanhar a coisa</span></div>
</div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;">e elevá-la devagar</span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;">apenas um ou dois palmos do chão</span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;"><br /></span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;">e então nos mantemos assim curvados</span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;">vergados sobre a coisa</span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;">a examinar eventuais rachaduras</span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;">como se um milagre viesse da nossa reverência</span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;"><br /></span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;">em volta todos passam</span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;">trombam nosso quadril dobrado </span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;">a lombar em deferência cerimonial</span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;">mas é preciso que a coisa permaneça ali </span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;">entre a queda e o salvamento</span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;">suspensa</span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;">até que se tenha certeza de que tudo ainda é como antes</span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;"><br /></span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;">como se a velocidade do resgate</span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;">fosse mais perigosa que a queda</span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;">ou, senão</span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;"><br /></span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;">como se, após breve exame do estrago, </span></div>
<div style="font-family: arial, sans-serif; font-size: small;">
<span style="color: #eeeeee;">fôssemos abandoná-la de volta ao chão. </span></div>
</div>
Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/03411616759927506903noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-25889694110535885812017-10-12T01:55:00.000-03:002017-10-12T01:56:46.953-03:00Sirene<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEizsyy166hZGNherGKVIENAH9V1fqypLc8AKipPjB0Mk1cuGYUf9fZb-dIXp3SaTvL2hGP1IpEIx-xjWhsJL-vYs2NEG1VTlHbsYNbhsCnIz2YfRsPKUkYA78ZakQaeYREvztbO3cnTJYc/s1600/imagem.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="960" data-original-width="720" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEizsyy166hZGNherGKVIENAH9V1fqypLc8AKipPjB0Mk1cuGYUf9fZb-dIXp3SaTvL2hGP1IpEIx-xjWhsJL-vYs2NEG1VTlHbsYNbhsCnIz2YfRsPKUkYA78ZakQaeYREvztbO3cnTJYc/s320/imagem.jpg" width="240" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">De tanta alegria, esse
era um amor que assombrava os meus dias com a possibilidade da tragédia, porque
só a tragédia encerraria aquilo que a gente vivia. E por isso esse amor era um
cão alerta dentro de mim, que me revirava as entranhas cada vez que eu ouvia
uma ambulância ou bombeiro rasgando a rua depressa na fúria que exigem as
tragédias. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Podia ser você, no fim
da avenida embaixo de um ônibus, de um poste de energia, uma facada, um enfarto,
e era importante calcular os seus horários, intuir sua geografia, e de fato
como um cão que precisa antever o perigo ainda que não possa fazer nada contra
ele, eu não podia relaxar enquanto aquelas sirenes não deixassem de ser
possíveis reverberações urbanas dos seus gritos. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">E eu pensava com muita
força em você recebendo os socorros, você até sorriria para os paramédicos
porque era importante que eu pensasse em você muito bem, como se a minha convicção
de que você estava em perigo, mas ainda a salvo, pudesse manter a tragédia
afastada. A tragédia é para os incautos, os que não estão prestando atenção em
todos os caminhos do perigo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Daí você me escrevia
sobre estar trazendo chocolate ou pepino da vendinha e depois chegava e ia
tirando a roupa e depois falava qualquer coisa embaixo do chuveiro e entrava no
nosso lençol e me abraçava como se você não tivesse quase morrido, como se você
não pudesse quase morrer todos os dias e acabar com tudo isso, como se você não
corresse imensos riscos gerando toda essa felicidade, a felicidade que sempre
chama tanto a atenção da tragédia. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Então só dessa vez as
sirenes passaram correndo na minha frente e não acionaram nenhum tipo de
mecanismo dentro de mim, talvez porque você supostamente não estivesse ali na região
da nossa casa, você certamente no meio das suas correrias e essas sirenes tão
completamente dissociadas de você, por isso eu continuei caminhando, descendo a
avenida talvez sem lembrar que você existia e menos ainda que você podia deixar
de existir. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">E quando eu cheguei
enfim na nossa rua as sirenes já não soavam e as luzes rodavam lentas, sem
pressa nenhuma, e eu supus que fosse um gato na árvore, bem na porta do nosso
prédio, e os vizinhos já quase carpideiros me olharam plastificados e ninguém
dizia nada, mas também não me deixavam exatamente passar, apenas tentavam me
paralisar numa tensão que não existia em mim, fosse o que fosse que eu não
tinha nada a ver com isso, eu trazia suco de laranja pro dia seguinte, você ia
ficar tão contente com o suco de laranja, eu tinha uma bolha no calcanhar por
causa do tênis novo e vinha sonhando com um banho, mas era isso, o corpo
embaixo da lona preta, você tinha pulado do vigésimo andar. O nosso vigésimo
andar. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">A única vez em que eu
não senti o perigo, única vez em que eu não espreitei por entre os meus
delírios os caminhos da tragédia, essa tragédia que tinha aprendido a seguir
também a tristeza, a mais discreta das tristezas, eu fiquei pra sempre dentro
daqueles quatro ou cinco quarteirões que eu desci depois que as sirenes
esvoaçaram o meu casaco descendo a avenida numa pressa que eu não tinha, fiquei
ali nos minutos em que você morria e eu nem desconfiava, não tentava te salvar
com a minha previdência nem com a minha felicidade. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Você ficou soando
dentro da minha cabeça na única sirene que me atravessou e eu não ouvi, eu relaxei
uma tarde e você morreu.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/03411616759927506903noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-77791002626635601002017-03-08T10:24:00.000-03:002017-03-08T10:24:22.202-03:00Se eu fosse uma casa<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhWwD_tQbPuc21S-auMEyVPooMqKNEVNRHqHsnVu08kxcFJqoOXjBfKqyKjdx0EamFnveuIlPRkO0kHeLloMo9suihPEs2rb8VWuB-5u7tUTAAdfEVGbN_MtNNeIRdbgOkz2415fCy6FA4/s1600/12439555_915623001820290_8590098707472636780_n+%25281%2529.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhWwD_tQbPuc21S-auMEyVPooMqKNEVNRHqHsnVu08kxcFJqoOXjBfKqyKjdx0EamFnveuIlPRkO0kHeLloMo9suihPEs2rb8VWuB-5u7tUTAAdfEVGbN_MtNNeIRdbgOkz2415fCy6FA4/s320/12439555_915623001820290_8590098707472636780_n+%25281%2529.jpg" width="176" /></a></div>
<div align="justify" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0.2cm; margin-top: 0.2cm;">
<br /></div>
<div align="justify" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0.2cm; margin-top: 0.2cm;">
<span style="font-family: Bitstream Charter, serif;">Se eu fosse uma casa minha sala
era assim aberta e imensa feito um escândalo que retumbasse nas
paredes dos vizinhos e onde caberiam as gentes e os amores todos, um
relógio na parede rodando todos os tempos, que o passado girasse
sempre perto e tão em volta de mim que o tempo fosse ele todo um
imenso agora. Na confusão dos meus ponteiros e a música alta e a
minha bebida acabaria que ninguém nunca ia embora. </span>
</div>
<div align="justify" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0.2cm; margin-top: 0.2cm;">
<span style="font-family: Bitstream Charter, serif;">Cada livro na estante seria um
livro que eu não escrevi, e seriam tantos que durante a noite
tombariam sobre a minha cabeça na forma de uma insônia. As lâmpadas
só se acenderiam com a energia dos outros, seria preciso que o
telefone tocasse e que os amigos me escrevessem e apreciassem minhas
fotos, que os homens viessem e depois voltassem sempre, querendo
ficar e viver comigo, ainda que não pudessem ficar todos ao mesmo
tempo, por maior que fosse a sala, para cada lâmpada acesa seria
necessário um elogio, uma risada que me dedicassem, mãos dadas na
rua.</span></div>
<div align="justify" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0.2cm; margin-top: 0.2cm;">
<span style="font-family: Bitstream Charter, serif;">E cada colher seria um pequeno
espelho deformado de mim, um espectro dos meus olhos que me envergam
e me incham, as colheres cintilariam neuróticas pela mesa, pia,
ganchos nas paredes, haveria colheres refletindo concavidades em
todos os cômodos. </span>
</div>
<div align="justify" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0.2cm; margin-top: 0.2cm;">
<span style="font-family: Bitstream Charter, serif;">E cada ovo da cozinha era um
amigo, o barulho da casca quebrando de leve na quina da pia no mesmo
som de uma amizade que se rompe, o ruído delicado e breve de
qualquer coisa que se transforma, ou às vezes explode sem querer no
chão e fica ali brilhando amarelo e inútil – não se tornará nem
um suspiro.</span></div>
<div align="justify" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0.2cm; margin-top: 0.2cm;">
<span style="font-family: Bitstream Charter, serif;">A cama seria a minha memória,
lembranças de tantos anos ressoando nas molas, tilintando metálicas
em espirais seculares de vai-véns noturnos, matinais, memórias
cinéticas de tardes perdidas, homens catapultados até mesmo pela
curva tão complacente dos meus ponteiros, queridas molas que não
esquecem, guardam no seu sacolejo e me devolvem elásticas cada
pulsar que eu dei, mesmo criança em saltos proibidos, os pezinhos
descalços e as mãos para cima, as molas a impulsionarem para o
alto, risadas, alguém dizia que eu ia quebrar a cama, que nunca
quebrou, ou que eu cairia, eu que caí tantas e tantas vezes depois e
talvez justamente por não pular mais das camas. As molas e seus
saltos de um jeito ou de outro sempre um pouco proibidos, vibrantes. </span>
</div>
<div align="justify" style="font-weight: normal; line-height: 150%; margin-bottom: 0.2cm; margin-top: 0.2cm;">
<span style="font-family: Bitstream Charter, serif;">A água da torneira seria a
minha tristeza, e minha alegria, e o meu amor. A torneira jorraria
primeiro pelos encanamentos e se não acolhesse derramaria pelos
ralos, pias, molharia as visitas e subiria encharcada pelas meias,
calças, e escoaria pela porta o que não me bastasse, tudo que
eu-casa não contivesse, afogaria um a um todos os filhos que eu não
tive e até mesmo os que talvez preferisse não ter tido, e eles
gritariam por instantes mas logo engoliriam depressa em golfadas toda
a minha dor e o meu amor assim sufocantes, inundaria a calçada, e
talvez chegasse a incomodar os carros, e ainda assim essa água toda,
essa torneira, ninguém repararia, continuaria escoando e afogando e
espantando tantos anos sem ninguém estancar. </span>
</div>
<div align="justify" style="font-weight: normal; line-height: 150%; margin-bottom: 0.2cm; margin-top: 0.2cm;">
<span style="font-family: Bitstream Charter, serif;">As janelas seriam gigantes,
elas seriam as outras mulheres. Cada prédio, cada casa, cada grito
na noite, cada braço mais fraco que o meu, cada canto mais forte,
todas ali ao alcance dos olhos, as janelas assim numa invisível rede
que não cobrisse nada, mas que amparasse, incansável, cada salto,
cada queda. </span>
</div>
<div align="justify" style="font-weight: normal; line-height: 150%; margin-bottom: 0.2cm; margin-top: 0.2cm;">
<br /><br />
</div>
<br />
<div align="justify" style="line-height: 150%; margin-bottom: 0.2cm; margin-top: 0.2cm;">
<br /><br />
</div>
Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/03411616759927506903noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-46176546439171439792016-07-07T11:40:00.005-03:002016-07-07T11:41:32.900-03:00<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEitvhFKWVIZlIWwndsBF74v2u__fAr2pckRLpfJ6K54EkDaUBy3_b-FRZKpV34gSoa1RUIMumsHmdfKo-wl7XvyMUbinZZDQEMIV0f2emuNs1HYOkm0GnHRPTx_MragsDwYd5vR05ZVqAU/s1600/barbed-wire-765484_1280.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="212" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEitvhFKWVIZlIWwndsBF74v2u__fAr2pckRLpfJ6K54EkDaUBy3_b-FRZKpV34gSoa1RUIMumsHmdfKo-wl7XvyMUbinZZDQEMIV0f2emuNs1HYOkm0GnHRPTx_MragsDwYd5vR05ZVqAU/s320/barbed-wire-765484_1280.jpg" width="320" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="background-color: white; color: #222222;"><span style="background-color: #444444; font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><br /></span></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="background-color: #444444; color: #f3f3f3; font-family: "times" , "times new roman" , serif;">O crime tem duas pontas. Uma cativa, a outra aponta.Todas as mães podem perder os filhos para o crime. Blindam os carros no Rio de Janeiro, como se o carro fosse o próprio corpo. Prendem os filhos no Rio de Janeiro, como se o crime abandonasse um corpo preso. Abandonam os corpos no Rio de Janeiro. Os nomes das mães tatuados, as mães nos braços dos presos. As mães olham os ponteiros. Nas duas pontas do crime, tombam os filhos. Cortam uma ponta do crime e ele se espalha em torno de tudo, marginal. Todas as mães podem estar sozinhas.</span></div>
Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/03411616759927506903noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-44445142311705801262016-01-25T19:27:00.000-02:002016-01-25T20:31:51.552-02:00O tempo do farol <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjiv0W-F4kYg0Y9LYBVFC2ENka6SnvP3UxVZXkMFhy0amz40yETw6jeD6KjfZY-EOJFEw4HYNGgO6GujsZdQfnU40V4gd519Z4zp_UqPgym7sM5CgMz88X5T0ntaDJGpE7fWhvSkntU-hg/s1600/sao+miguel.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="141" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjiv0W-F4kYg0Y9LYBVFC2ENka6SnvP3UxVZXkMFhy0amz40yETw6jeD6KjfZY-EOJFEw4HYNGgO6GujsZdQfnU40V4gd519Z4zp_UqPgym7sM5CgMz88X5T0ntaDJGpE7fWhvSkntU-hg/s320/sao+miguel.png" width="320" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<div class="MsoNormal">
<div class="MsoNormal">
<div class="MsoNormal">
<div class="MsoNormal">
<div class="MsoNormal">
Os meninos do farol da entrada de
São Miguel Paulista têm de saber o tempo preciso de cada conversa, o clímax no
encaixe perfeito entre sinais vermelhos, senão no meio da história os amigos em
disparada entre os carros, e o orador a administrar solitário a evasão da
plateia sob o sol de um milhão de graus, depois a disfarçar a pequena
humilhação crônica no resgate de um assunto que morreu pisoteado no asfalto com
as balinhas de framboesa. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
É preciso voltar para casa com no
máximo cinco saquinhos não vendidos e dois gestos suspensos em histórias mal
calculadas, os braços no ar bem no meio do melhor relato, todos correndo como
se a conversa não tivesse a menor importância, justo agora que tem também uma
menina, uma moça, que talvez ainda sustente um pouco mais o olhar no
interrompido da vez, e vá correndo quase de costas com as balinhas, só até o
colega dispensar a gentileza e correr também, nenhuma história merece tanto
prestígio.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Esses meninos do farol da entrada
de São Miguel Paulista talvez tenham raiva porque até apurarem esse tino narrativo
são calados tantas vezes nas suas teatralidades, uma vida de hiatos. É capaz
que tenham raiva porque já não são meninos, tão rapazes, e ainda meninos,
sempre meninos. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Ou talvez tenham raiva porque
aquele não é um farol da entrada de São Miguel Paulista, é a entrada pra quem
vem do centro da cidade, pra quem vem de mais perto daquilo que é o perto, mas para
eles é a saída, a borda, a beira de uma ilha cercada de córregos e avenidas
muralhadas terrenos campinhos de futebol, uma ilha de santos paulistas cheia de
assuntos mas também cheia de farol e é preciso calcular o tempo, calcular as
vendas, e a menina é nova aqui e também não é mais menina, nem arrisca
conversa, ainda testando os ciclos do farol da borda de São Miguel Paulista, agora
sob uma chuva fina, o marulho dos carros na água do asfalto, à beira de casa, o
farol de um mar que engole em ondas programadas as conversas dos seus
banhistas.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Os meninos do farol da orla de
São Miguel Paulista também têm uma lista de coisas rápidas a dizer antes da próxima
onda, e ainda assim às vezes um vidro abaixa e uma pergunta fora do roteiro e
uma resposta animada que quer continuar mas o farol muda e a água leva o carro
numa curta buzina carinhosamente paulistana e os meninos sorriem, porque não
tem importância, há outras histórias, outros ouvintes, a menina já ensaia uma
palestra aos meninos, quarenta segundos de atenção, o tempo perfeito, em uma
semana ela já sabe o que cabe e o que não cabe no tempo do farol, o tempo entre
as ondas de São Miguel Paulista. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
</div>
</div>
</div>
</div>
</div>
Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/03411616759927506903noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-89964818174291385532015-10-08T20:06:00.005-03:002015-10-08T20:11:40.295-03:00Vamos falar de coisa boa, vamos falar de Cássia Eller<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEja_kRdLHk1zoJkwY9SulEqQAKwSbVa5Si0_WyZNSIgpIlBVVhlitbh0WocJa-TQA7e3wgYfBy7heNBAeNZaXR4Srzo3NwnaY3WM_K8bvls8n1oXe2iYLd2NWbznAenf8l7iYHq-sJoIXHt/s1600/cassia+eller.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEja_kRdLHk1zoJkwY9SulEqQAKwSbVa5Si0_WyZNSIgpIlBVVhlitbh0WocJa-TQA7e3wgYfBy7heNBAeNZaXR4Srzo3NwnaY3WM_K8bvls8n1oXe2iYLd2NWbznAenf8l7iYHq-sJoIXHt/s320/cassia+eller.jpg" width="320" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
[pausa para o Dia das Crianças]<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Eu morava num condomínio e tinha 12 pra 13 anos, mas
como eu tinha mais de 1,70m e muito peito, fiquei parcial e perversamente
inserida no grupo dos moleques nos seus 18 anos. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
E um dia apareceu na televisão da casa de um deles a
Cássia Eller cantando. Era uma mulher, espetacular, e eu fiquei olhando intrigada para a tela. Um deles gritou lá de trás: <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
-- ESSA MULHER É NOJENTA. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Os outros riram. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
-- Gostou dela, Mongol? – Mongol era como ele me
chamava.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Fiquei ali assustada tentando entender o que fazia
dela uma mulher-nojenta e o que eu teria de fazer pra que nunca um homem
gritasse isso sobre mim. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
O recado não é e jamais será pra ele, que em tantos
anos deve ter tido seus aprendizados. É para as meninas, que a essa altura não
são tolas como eu era aos 12 anos, mas não custa deixar o apoio:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
D E S C O N F I E M de qualquer coisa que um menino
disser sobre qualquer mulher. Desconfiem até do que uma menina disser se for
negativo, perguntem para outra menina, talvez mais velha, em quem confiem. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
Hoje eu me culpo muito por ter, ainda que por meio ano, acreditado que uma mulher tão incrível era nojenta, e que era preciso não ser como nenhuma dessas mulheres incríveis nojentas. E essa é uma culpa que a gente não merece. <o:p></o:p></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm; text-align: justify;">
<i>O que eu queria mesmo ser é a Cássia Eller</i>.<o:p></o:p></div>
Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/15363136435720079729noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-54265574063660752882015-03-14T10:52:00.002-03:002015-03-14T10:52:48.645-03:00Segredos Coletivos<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEizm7c2MKCRc8HG-taOpelxT73Em3U_zwE-BLG9WJHKWer6JcIu0qGthGuGIf-M-l24ZAjIamVSeFiHIOivhh6TkvrVdTs_RirG4_SBN6NqHnhavnt9nyp6HAnLkxgkOcBgkPJaDgZgR1YN/s1600/DSC_0272.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEizm7c2MKCRc8HG-taOpelxT73Em3U_zwE-BLG9WJHKWer6JcIu0qGthGuGIf-M-l24ZAjIamVSeFiHIOivhh6TkvrVdTs_RirG4_SBN6NqHnhavnt9nyp6HAnLkxgkOcBgkPJaDgZgR1YN/s1600/DSC_0272.JPG" height="212" width="320" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Você prosaicamente procura o
outro pé do sapato na pressa do elevador que você já deve ter chamado, termina
o copo de leite, enxuga a mão na roupa, e é provável que não pense em nada, só
em correr, e chegar singelamente ao trabalho, e eu fico pensando que nunca
houve sintonia, que a gente começou a ouvir uma música juntos, mas nunca encontrou
propriamente a estação, e a música ficou lá, num discreto chiado, sem que a
gente movesse o botão desse rádio nem pra frente nem pra trás, ficamos assim em
desajuste na ilusão de que o importante é estar ouvindo de alguma forma esse
som que a gente não consegue saber de onde vem, nem desligar, nem aumentar, nem
arrumar. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
A vertigem que ataca o início de
um sono vespertino. Quase dormir mas despertar a tempo de concluir que se vai
de fato dormir e que a sensação é de queda, como se o sono da tarde fosse um
buraco, um salto do colchão para dentro da cama, uma escorregada na espiral
infinita do universo das molas, é essa a cumplicidade que eu preciso ter com as
pessoas, é preciso que elas também reconheçam nelas essa vertigem logo antes de
pular para o sono, a cumplicidade nesses pequenos fenômenos íntimos, e você
parece que escapa de todos, nós numa total dissintonia.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Cumplicidade também nos fenômenos
de infância, esses que vão nos compondo aos poucos, você contornou todos eles,
você parece que não tem os seus segredos coletivos. Esses segredos que eu chamo
de segredos porque ninguém fica falando deles, e de coletivos porque muita gente sabe, todos sentem, a vertigem antes do sono da tarde, o perigo de uma mão
surgir do fosso do elevador tateando o buraco da ventilação, ou de aparecer
mais uma pessoa na imagem do espelho, ou de um semiconhecido sentar do seu lado
no ônibus sem quase nenhum assunto, de morrer de repente com a roupa íntima não
muito limpa a ponto de as pessoas da autopsia, do hospital, ou seus parentes
concluírem que uma pessoa com esse cheiro nem merecia de fato viver. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Talvez este da morte sem banho
não seja tão coletivo assim, mas de toda forma você não tem, nem esse, nem
qualquer outro segredo fenomenológico que nos coloque em sintonia ou
cumplicidade, você sai e volta sem que nenhum detalhe da existência tenha
trazido você pra mim durante o dia.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
No banho o condicionador escapa
em excesso na minha mão. Aperto o tubo instintivamente criando um prenúncio de
vácuo e encosto a boca do frasco na minha mão recolhendo de volta o que não vou
usar. O frasco suga o condicionador da minha mão feito um animal aos soluços,
espasmos de afogamento, e fico pensando se você possui esse segredo coletivo,
se você sabe recolher de volta o condicionador que saiu a mais, essa sabedoria
que ninguém transmite, que vem da física simples que foi se construindo em nós
conforme apertamos frascos, experimentamos diferenças de pressão, e concluo que
não, você vive assim livre de empirismos, foge às sabedorias íntimas que não
vêm nas notícias nem nos livros, e fico pensando se o mundo não se divide
justamente entre pessoas que sabem colocar o condicionador de volta, assim nessa
violência sofrida do frasco sufocando na palma da mão, a tomar fôlego com a
boca emborcada no que ele próprio cuspiu, e pessoas que simplesmente jogam o
excesso no chão por não visualizar qualquer outra possibilidade. E nem sequer
pensam que há pessoas que pensam nisso. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
E então você provavelmente está
desse outro lado do mundo, o mundo das pessoas que não têm segredos coletivos,
e que jogam o excesso do condicionador no chão ou mesmo ensebam os cabelos, e
que não pensam que há pessoas que pensam nisso, não pensam que há pessoas que
pensam na vertigem do sono da tarde, e na aflição de olhar muito tempo um
quadro de Jesus temendo que ele possa piscar, e na angústia de não saber se
aquela senhora que entrou no metrô já percebeu que é idosa há tempo suficiente pra
não se ofender se você ceder o assento, e depois na angústia de imaginar o dia
em que alguém lhe ceder o assento pela primeira vez, e ficar pensando se você
já terá se acostumado com sua própria idade antes que alguém lhe surpreenda com
isso, e no meio desse pensamento não ceder o assento, apenas levantar e sair,
na esperança de que ninguém o ocupe, apenas aquela senhora que talvez ainda não
seja tão senhora assim. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Você está aí, desse outro lado,
no mundo das pessoas sem segredos coletivos e talvez esteja aí nossa
dissintonia, esteja aí a razão de eu sentir tanta cumplicidade em todo o resto
do mundo que não é você. Daí eu chego do trabalho e você já está aí sorrindo
com toda a sua leveza, e pelo menos eu posso imaginar que quando você fica aí
olhando a janela não está pensando em todas as pessoas que vivem nesses tantos
apartamentos e se perguntando se alguma delas não poderia te fazer mais feliz, você não
deve estar fazendo isso porque é isso que muitas pessoas fazem, em segredo
coletivo, procuram outras janelas onde mora uma felicidade ideal, e daí você
vem na minha direção com um copo de alguma bebida e eu fico ouvindo esse
zumbido que é a nossa musiquinha fora de sintonia, a música que a gente acaba
gostando tanto de ouvir, e que se um dia desaparecer vai ficar um silêncio
muito doído, mas que eu também vou me acostumar, porque a gente vai se
acostumando com os silêncios que as pessoas deixam quando vão embora, difícil é
se acostumar com a música fora de sintonia que na verdade talvez sejam nossas
duas músicas tocando ao mesmo tempo e a gente nunca tenha reparado nisso, que
estamos ouvindo coisas diferentes, juntos, e você me dá um gole do que está
bebendo, e tudo pra você parece estar perfeitamente bem. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
E você entra no banho, e eu passo
o tempo do seu banho pensando em perguntar o que você faz quando o
condicionador sai em excesso, e fico pensando que você pode responder que isso
nunca aconteceu, o que seria um completo absurdo, um sinal chocante de que você
se adapta imediatamente às novas situações da sua vida, em qualquer
quantidade, ou mesmo você pode me responder que não faz nada, que só lamenta, e
quando você sai do banho eu concluo que não é seguro fazer essa pergunta,
porque talvez eu queira continuar ouvindo nossa música sem sintonia, e que
talvez você depois do banho dê alguma risada silenciosa olhando a tela do seu celular e
isso seja algum segredo coletivo só seu, dessa sua parte do mundo em que eu não
vivo, e quem sabe a gente possa viver assim, sempre assim, pra sempre. <o:p></o:p></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/15363136435720079729noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-65782467269357678172015-01-22T13:32:00.002-02:002015-01-22T13:32:44.274-02:00Nesta semana houve o lançamento do livro Delicada uma de nós, com grande parte dos meus textos, que estiveram e não estiveram neste blog. Dentre eles, 4 contos premiados (Off Flip 2012, e Josué Guimarães 2013).<br />
Para aquisição, enviar email para delicadaumadenos@gmail.com<br />
<br />
Muito obrigada pelo apoio!<br />
:-)<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhC-DrxFVJFFXpHaq23-52Vcv5gxnezjJj4jqvkUv9tqWn1CawtUuzzdFRTp4YQSxdFYm6-CGvYfUV3AzBGKXFiZo2QBp9BVsK1eQs15kJw0elK6z81s0BYWklwPy4JCG9jogRnWw1JF2Q/s1600/delicada.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhC-DrxFVJFFXpHaq23-52Vcv5gxnezjJj4jqvkUv9tqWn1CawtUuzzdFRTp4YQSxdFYm6-CGvYfUV3AzBGKXFiZo2QBp9BVsK1eQs15kJw0elK6z81s0BYWklwPy4JCG9jogRnWw1JF2Q/s1600/delicada.png" height="135" width="320" /></a></div>
<br />Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/03411616759927506903noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-30336534831661417742014-12-11T23:00:00.001-02:002014-12-11T23:06:35.467-02:00Catálise<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjDOHiEafxHOGTk5CCL13H_UeimJvKkre8pPDu-fZmK4PEYiHmi5sSBDasgMCZkeS-SbRw1i-vrh5TFoCdXh9E54Ht7p5qFSMSPnOLS7SSUu8felX8RRdqeWaCZ6l0YwnciuZdqBjhCxbba/s1600/sad_day_in_gym.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjDOHiEafxHOGTk5CCL13H_UeimJvKkre8pPDu-fZmK4PEYiHmi5sSBDasgMCZkeS-SbRw1i-vrh5TFoCdXh9E54Ht7p5qFSMSPnOLS7SSUu8felX8RRdqeWaCZ6l0YwnciuZdqBjhCxbba/s1600/sad_day_in_gym.jpg" height="320" width="213" /></a></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
É de noite e por isso o vidro que
dá pra rua vira quase um espelho, menos quando passa o farol de um carro lá
fora. Um carro que está provavelmente indo fazer alguma coisa mais interessante
que ficar caminhando numa esteira. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Meus dentes batendo, a barriga
molhando indigna por trás do elástico da bermuda, não consigo parar de pensar na ideia odiosa de estar tantas noites numa academia, mais uma hora que
eu perco fazendo mais uma coisa que não significa nada, uma hora gastando a mim
mesmo. Dissipando o que meu dia indevidamente economiza – nas tantas horas
que também não me dizem nada.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Como se ao longo do dia eu
existisse menos do que fui feito pra existir, e então engordo. Possivelmente na
esperança fisiológica de existir mais tarde, um dia, tudo o que fui sobrando. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Perder minhas noites aqui porque
me falta em juventude o que me vem em ganas de engolir, beber, toda aquela fartura
das bandejas por quilo, latas, garrafas, esses tantos consolos, e é preciso vir
aqui me gastar para poder me economizar, durar mais anos com muitas horas e
poder passar mais tempo fazendo essas coisas que não me dizem nada. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
As pessoas se cruzam no caminho dos seus
exercícios e sorriem, e se falam. Quem há de compreender por que se falam. Feias,
suadas, não se conhecem, não têm nada em comum a não ser o fato de estarem se
gastando no mesmo lugar na mesma porcaria de hora nobre, com a novela muda e
legendada em metade dos televisores. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Hoje a música está excelente,
quero elogiar o professor que escolhe os CDs, mas nem para isso quero falar,
essa é a hora em que estou completamente ausente de mim, não há absolutamente
nada nos meus movimentos que diga quem eu sou, autômato, passos mecânicos
tentando vencer a hora mais lenta do dia.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Não, é inacreditável que alguém
nessa situação se sinta com identidade suficiente para interagir. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Minha não-pessoa lamentando a
incapacidade de elogiar a trilha sonora e uma outra não-pessoa comentando com
outra que hoje a música está de-cortar-os-pulsos. O mundo se divide em gente
que.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Parar com a mania de dividir o
mundo. Mas realmente o mundo se divide, não adianta, o mundo terminantemente se
divide toda hora, e se divide agora em pessoas que veem a beleza das coisas
soturnas e aquelas que querem enfiar alegria no ouvido da gente o tempo todo,
uma alegria nervosa, histriônica, até mesmo na camiseta amarelo neon subindo e
descendo na barra de alongamento.<br />
Justo o alongamento que é uma coisa lenta,
fibrosa e profunda, a única profundidade nessa caixa espelhada quente de
glicogênios e catálises. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Ainda falta meia hora. O vidro da
rua me reflete porque já é bem noite e já quase não passa farol de carro porque
quase todos já chegaram em casa. Pior, todos chegaram nas suas academias. Todos
os humanos urbanos diante dos seus espelhos gastando a si mesmos, porque éramos
pra ser muito mais do que somos durante o dia e então vamos sobrando, e quando
chega a noite é preciso se gastar muito, pra não sobrar, e vai-se gastando o
tempo, tanto tempo, que quando eu me der conta nem sobrei nem faltei, só quase
não existi. <o:p></o:p></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/15363136435720079729noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-550254450663315082014-08-10T23:59:00.001-03:002014-08-10T23:59:54.962-03:00<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://www.santosnaweb.com/santosnaweb/wp-content/uploads/2011/05/Imagem-051.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://www.santosnaweb.com/santosnaweb/wp-content/uploads/2011/05/Imagem-051.jpg" height="240" width="320" /></a></div>
<br />Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/03411616759927506903noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-70239188632176319122014-07-29T20:26:00.003-03:002014-07-29T20:38:19.886-03:00Sobre as nossas delicadezas II<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEicuOngq0Uv6urRR4dgC1PKpACqEMVLMDdar82hlUZAjD_J9_HuXDZX_oVfmVxqcPpOpeaoSZrwo5QMBCvJBml8TTssEBttnhdv9qvLcwcbLlNT6TU5AY-Q9GIJDzoDfRiPVLNiMduGxGbI/s1600/celular+quebrao.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEicuOngq0Uv6urRR4dgC1PKpACqEMVLMDdar82hlUZAjD_J9_HuXDZX_oVfmVxqcPpOpeaoSZrwo5QMBCvJBml8TTssEBttnhdv9qvLcwcbLlNT6TU5AY-Q9GIJDzoDfRiPVLNiMduGxGbI/s1600/celular+quebrao.jpg" /></a></div>
<br />
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm; text-align: justify;">
Existe um telefone celular e ele é doentiamente um
companheiro, na mão, no bolso, bolsa, roupa, metrô, ele é um companheiro quase maníaco guardando suas fotos, músicas, confissões, estabelecendo os mais ansiosos e desesperados
contatos, e esse aparelho de tempos em tempos, de tão solicitado, cai
desastradamente no chão, mas sempre fica tudo bem. <o:p></o:p></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm; text-align: justify;">
Ele cai, às vezes solta a tampa de trás, a bateria escapa para
lugares insondáveis e você fica tateando o asfalto como quem procura a vida de
um grande amigo temporariamente inconsciente depois de uma queda. Você encontra,
e então ele está de volta, pronto para a próxima queda, já ativo no desespero
da próxima comunicação – atrasos, saudades, trânsito, dúvidas, súbitas
incompatibilidades de gênios. <o:p></o:p></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm; text-align: justify;">
Só que daí um dia, na centésima queda da altura da sua mão –
nem é a pior das quedas, é na verdade uma quedinha de nada, perto das tantas
outras, um esbarrão à toa, um deslize, nem mesmo cuspiu a bateria --, e quando
ele se ergue do chão vem o espanto diante de uma tela multifragmentada e áspera
que enfim não deve mais responder aos seus insistentes toques. E você olha a
tela desproporcionalmente estraçalhada e pensa que ela foi ingrata, mimada,
porque isso não precisava ocorrer justo hoje, com essa queda, se ela resistiu a
coisas tão piores, e de repente a ruptura parece um capricho, uma vaidade, justo num dia como esse. <o:p></o:p><br />
<span style="line-height: 150%;">Mas daí olhando pro seu telefone bem no fundo dos mil vidrinhos doloridos, você
percebe que na verdade ele resistiu mais do que devia. E que muita coisa e
muita gente resiste mais do que devia, tanta queda, chute, golpe, atropelo, e a
tela intacta e leal mantendo os anseios das suas comunicações, até que um dia não
tinha mais forças, e era bom que esse dia chegasse, porque não está certo ser
derrubado displicentemente assim tantas vezes, e chega uma hora que se não quebra
fica a dúvida de como serão as próximas quedas, o que é um jeito terrível de se
viver.</span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm; text-align: justify;">
<o:p></o:p></div>
<span style="line-height: 150%; text-align: justify;">E você fica aí parado, no meio da calçada, olhando para o
telefone celular com a tela gratuitamente espatifada esperando que com isso ele
te ensine alguma coisa, nem que seja a quebrar de vez em quando, e bem antes da
centésima queda, pra que alguém fique te olhando assim do jeitinho que você está
fazendo, quase se arrependendo e já louco de saudade, porque não é saudável
ficar durando assim quando te jogam tanto, chega a parecer que você pode cair, e cuspir a vida na
sarjeta, ou embaixo das mesas, que depois fica tudo bem, e você volta, servil e
diligente, e não, não é saudável que se disfarcem tanto as nossas delicadezas – senão é
até capaz que, na queda fatal, você ainda seja culpado pela desproporção. </span><br />
<span style="line-height: 150%; text-align: justify;">Mas daí você está lá parado pensando tudo isso e fazendo planos sobre como
tratar bem o seu futuro telefone, e passa a mão na tela, e assim, mesmo
inacreditavelmente em pedaços, ela funciona, ela sorri. </span><br />
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm; text-align: justify;">
<o:p></o:p></div>
Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/15363136435720079729noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-47384911607811777432014-06-02T10:59:00.001-03:002016-05-08T12:24:54.755-03:00<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 3.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 3.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<a href="https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=1214379897748231960" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"></a><b><span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A Guerra<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 3.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 3.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<div class="" style="clear: both; text-align: center;">
<span style="font-family: "times new roman" , serif; font-size: 12pt; line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">Eu
nunca mais voltei naquele lugar e por isso a minha lembrança é de que era o
maior lugar do mundo. Minha mãe me puxava por uma ladeira enorme, fazia muito
sol e as pessoas na fila tinham todas muita pressa ou muito desânimo. As que
tinham desânimo parece que iam ali sempre, como que todo dia.</span></div>
</div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 3.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 3.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Já
fazia muito tempo que em casa ninguém me dizia nada, deixavam a televisão
ligada e se calavam, e eu já não perguntava dele e já eu mesma quase não
falava, e nem olhava mais a porta no horário da novela porque eu já tinha
entendido que ele não ia aparecer de repente. E nesse dia eu ainda não sabia se
queria ou não queria ir, mas não tinha ninguém pra ficar comigo tantas horas e
– Pega um brinquedo e vem, menina – eu puxei da cama um boneco qualquer que
tinha sido dele, e corri pro trem. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 3.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 3.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A
mãe continuava não dizendo nada e eu não perguntava porque pra todo o mundo
parecia mais fácil se eu simplesmente não estivesse percebendo. Como se eu não
tivesse reparado que meu irmão nunca mais voltou pra casa, nunca mais me trouxe
nada, nem me jogou pedaços de tomate durante o jantar, nem me escondeu no
armário na hora do banho, nem fez promessas, projetos grandiosos que ele me
contava depois de me sentar em cima da mesa da cozinha onde ele dizia que as
coisas eram levadas a sério. E naquele dia no lugar imenso minha mãe não tinha
nenhum alívio no rosto, mas por alguma razão eu tinha passado a noite
conversando com a lua e me dei toda a certeza de que ele ia voltar pra casa. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 3.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 3.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Eu
já sabia que ele tinha começado a vender droga, e que tudo tinha dado errado.
Mas eu sabia também que isso um monte de moleque fazia ali no bairro e eu
sentia que naquela tarde ele ia pedir desculpas a quem quer que fosse que ele
tinha desobedecido, e ia ficar tudo bem.
<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 3.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 3.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Quando
a gente entrou, eu me lembro do frio, um frio sem sentido que era como se o sol
nunca chegasse ali. Fiz que o boneco voava pelos corredores, mas fiz só pra
minha mãe achar que eu estava feliz com o passeio, mas era difícil fingir
porque minha cabeça ficava bem na altura das algemas dos homens que toda hora
passavam puxados por guardas gigantes, os rostos baixos, a roupa igual, e eu a
todo tempo num susto achando que qualquer deles podia ser o meu irmão – e era; qualquer
um. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 3.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 3.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">E
os homens nas algemas estavam todos de chinelo e eu lembro que achei aquilo
muito estranho porque chinelo é uma coisa tão livre. Ficava olhando passarem
tantos pés soltos em <i>havaianas</i> puídas
e aqueles pés me lembravam de praça, churrasco, pipa, rua, demarcação de gol de
futebol. Depois pensei que a gente usava tanto chinelo porque sapato é muito
mais caro, mas aí logo em seguida pensei que ainda assim – e talvez por isso
mesmo – chinelo fosse uma coisa tão livre. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 3.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 3.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A
gente sentou finalmente e esperou por um tempo que me pareceu muitos dias.
Minha mãe não falava comigo a não ser pra me dar um suco ou uma bolacha seca,
mas de vez em quando falava com outra mãe, qualquer coisa sobre Deus, ou sobre injustiça
– só que por alguma razão minha mãe não parecia achar nada daquilo injusto, e acho
que isso é o que mais doía nela. E de repente ouvi uma senhora comentar algo
que jamais tinha passado pela minha cabeça – O meu filho já é a terceira vez! –
e nessa hora eu pensei que então dali pra frente seria sempre assim. Eu percebi
que os rapazes uma hora crescem, e vão presos, e depois vão presos de novo, e
pela terceira vez, e que era essa a sina dos nossos homens, como num país que
entrega todos os seus meninos à guerra. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 3.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 3.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Durante
toda a tarde minha mãe seguia com os olhos uma mulher apressada, de salto alto,
que quase nunca parava em nós, e não olhava pra minha mãe porque sabia que ela
estava esperando alguma notícia, e aí eu fui percebendo que de fato era sempre
assim pra todo o mundo, tanto que a mulher vinha e dava a notícia para as
outras mães, que já sabiam como as coisas eram, e saíam, como quem recebe uma
hóstia e volta pra casa pra lavar roupa. E depois da notícia a mulher entrava numa
sala em que as pessoas corriam, ou às vezes riam de quaisquer coisas, e quanto
mais elas riam mais eu me convencia de que aquela era a ordem natural, de que
os irmãos crescem pra serem presos uma, duas, três, intermináveis vezes. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 3.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 3.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Eu
girava o boneco como se ele fosse um trapezista porque eu sabia que estava
chegando a hora e era cada vez mais importante que eu não estivesse entendendo
nada, e eu pensei bem forte que se eu rodasse o boneco exatamente 18 vezes – a idade
do meu irmão – antes de a mulher começar a falar com a minha mãe, a notícia
seria boa. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 3.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 3.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">E
eu comecei a rodar primeiro devagar porque pensei que ela ia demorar, mas ela
foi chegando com a mesma cara que ela fez toda vez que tinha uma notícia, e eu
rodei o boneco mais rápido, e mais rápido, mas ela já começou a falar com a
minha mãe sem nem olhar pra mim e não deu tempo de eu rodar o boneco 18 vezes –
e é capaz que até hoje eu me culpe por isso –, mas eu continuei rodando o
boneco porque era importante que eu não estivesse entendendo nada – Nós fizemos
tudo o que foi possível --, era fundamental pra minha mãe que eu não entendesse
– Mas não significa que ele vai ficar preso os próximos cinco anos
inteiros –, na verdade era absolutamente
necessário pra mim que eu não estivesse entendendo nada e como eu rodava o
boneco como se não estivesse prestando a menor atenção de vez em quando a
mulher de salto olhava pra mim e eu sei que eu tentei segurar o choro mas ele
veio assim, silencioso, implacável --A senhora precisa voltar daqui a dois anos
pra pedir... – e então ela me olhou de novo e acho que parou um pouco de falar,
e eu percebi que até mesmo pra ela era preciso que eu não estivesse entendendo
nada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 3.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 3.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Minha
mãe, que até aquele momento apenas assentia com a cabeça, também olhou pra mim,
e eu senti que ela e a mulher de salto olhavam meu choro, e eu rodei mais
rápido o boneco só que agora não adiantava mais rodar boneco nenhum. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 3.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 3.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Eu
cresci uns vinte anos naquela tarde, e cresci sem meu irmão, que morreu nove
anos depois, recém-saído da terceira cadeia. Eu disse que nunca mais voltei
naquele lugar, mas na verdade eu nunca mais saí de lá. Ficamos pra sempre presos
– eu, e também minha mãe, e a mulher de salto, que não deveriam nunca ter me
visto chorar. <o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-bottom: 3.0pt; margin-left: 0cm; margin-right: 0cm; margin-top: 3.0pt; text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<br /></div>
Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/15363136435720079729noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-29223553157291478492014-03-31T17:31:00.002-03:002014-04-10T01:07:25.688-03:00Núpcias (obs: por dificuldades na configuração, os próximos 13 textos são antigos)<div align="justify">
A gorda com o hálito de gengibre tenta encaixar o fecho do colar de pérolas, baforadas no meu pescoço reclamando dos óculos, precisa dos óculos. Um homem com farelos de pão na barbicha passa uma base em espalmadas violentas no meu rosto, os primeiros golpes do casamento, talvez. A luminária na minha frente está me dando calor, películas de suor, ele diz películas de suor me enxugando com algodões e virando a cabeça da luminária de modo que o foco da luz no teto e não na minha cara. A luminária parecendo agora uma bailarina num gesto final, uma mãe em preces aos céus, um homem agonizando de joelhos com o pescoço tombado para trás, a luminária uma luminária apenas e eu apenas eu nesse vestido que não mereço.<br />
Uma moça pequena me sorri e pede licença para prender a coroa nos meus cabelos, seis horas fazendo esses cachos e depois sei lá desses cachos, eternizados numas fotos e também o que são seis horas perto da eternidade das fotos. No quarto da minha avó uma foto em tons de cinza e naquela época sem cachos, o cabelo uma massa só sem a obscenidade dos fios. Agora eu num sorriso de promessas, a mão suavemente apoiada no corrimão de modo a destacar a luva, nos lábios um quê de trêmulos e os olhos se não brilharem de paixão eles podem depois arrumar no computador, fica bonito. Posso pedir pra deixarem mais verdes, eternamente verdes.<br />
Seis horas com essas revistas baratas, posso mexer nas revistas porque não preciso fazer as unhas, no inverno ficam chiques as luvas, brancas acetinadas até um dedinho acima do cotovelo. Uma mão no corrimão e a outra quem sabe no ombro do noivo, ele com o sorriso mais firme, nada de um quê de trêmulos os lábios nem brilho nos olhos, a sobriedade da decisão sem deslumbramentos. O fraque cinza ainda sem a mancha de vinho que os colegas deveriam derramar sem querer no meio da baderna, às gargalhadas. O fraque ainda impecável e o fotógrafo talvez flagrasse um olhar espontâneo e uma risada minha, uma piada dele, quem sabe sobre uma tia digníssima que está bêbada. Talvez um flash no meio da minha careta de birra quando ele diz que vai dormir no avião o caminho todo, e me aperta o nariz na ponta dos dedos, Bobinha, e de repente a luz do flash e rimos de novo, outra foto. Mas o fotógrafo apenas A mão no corrimão, por favor, e a outra mão na taça, não, não, a outra mão no ombro dele. Sorriso!<br />
Uma noiva abandonada no altar, a gorda diz uma expressão em francês quando consegue colocar as pérolas, terminam minha maquiagem e a mocinha pequena me traz até o salão vazio e eu já sei que abandonada no altar. A dona da loja me ajeita o vestido na cintura e confere as informações, perigoso o endereço sair errado. Quer no canto direito, pode colocar o preço do aluguel também, é sempre bom o preço para as pessoas não se iludirem, coisa mais triste as noivas iludidas. Chegam na loja com a revista nas mãos e talvez o meu sorriso trêmulo e os meus olhos magnificamente verdes e é isso que elas querem mas de repente o preço alto demais. Melhor um preço discreto ao lado dos meus sapatos, outro preço ao lado do vestido. Minha foto não num álbum de veludo vermelho, minha foto num catálogo, as madrinhas não no altar mas nas últimas folhas com modelos que disfarçam os quadris, um cupom de desconto válido às segundas-feiras. Às vezes chegam na loja com a revista amassada, pequenas correções à caneta no meu vestido, tem como diminuir o decote? Olho meu noivo de hoje e ele reclama do calor e pergunta meu nome. Mão no corrimão, por favor. Sorriso.</div>
Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/03411616759927506903noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-888019715093283212014-03-31T17:31:00.001-03:002014-03-31T17:31:20.098-03:00Passarela<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiNNmI-k-DIpU20orQLJJlZoJM4Zo0RaXmPo1bnnPTut_kCTePZn1jn5ivmSPGGWnaa37GMTBKbZ6trbizhuomLawmY7D7W8mWBwhzpbtOM1PP6wvGZWCJCIpApv_y91del1_y4f0UcMvg/s1600-h/modelo.jpg"><img alt="" border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiNNmI-k-DIpU20orQLJJlZoJM4Zo0RaXmPo1bnnPTut_kCTePZn1jn5ivmSPGGWnaa37GMTBKbZ6trbizhuomLawmY7D7W8mWBwhzpbtOM1PP6wvGZWCJCIpApv_y91del1_y4f0UcMvg/s320/modelo.jpg" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5200233762363104146" style="cursor: hand;" /></a><br />
<div align="justify">
<span style="font-family: georgia;"></span><br /></div>
<br />
<div align="justify">
<span style="font-family: georgia;">Mastiga um pedaço de porco com a pele estalando nos dentes que ela palita discretamente com a ponta da língua, discreta mas eu sei que é isso que faz com a boca se torcendo e os olhos virados para o lado na concentração da busca. O decote mostrando demais de um peito que já não serve pra mostrar, as veias azuladas saltando no branco translúcido da ausência de sol que o médico recomendou e ela obedeceu para sempre, sol nunca mais, nem um mormacinho, ela diz às vizinhas num tom apocalíptico, balançando a cabecinha de cabelo oleoso e o beicinho rugoso contraindo de desgosto, nem um mormacinho!<br />Quero me esconder atrás do cardápio e evitar o olhar que já sei que vai lançar sobre a minha torta de chocolate, a pupila dilatando naquilo que ela julga um diálogo mímico, talvez abaixe o olhar para insinuar o caminho da sobremesa direto aos meus quadris, meio quilo a mais e eu estou fora de tudo, ela sempre disse que isso não era pra mim e eu insistindo, não é assim?<br />Passa o guardanapo na boca e depois fica observando a marca do batom no papel e detesto cada uma das manias, no fundo odeio e não é porque é mãe que a gente tem de viver do lado assim, podia ser qualquer pessoa e calhou de ser essa que eu odeio, se fosse uma colega do trabalho eu já tinha mudado de mesa, de restaurante, de cidade. Pega minha mão e o cinismo de metade de um século se abrindo num sorriso esverdeado de temperos, Ela está evitando esses modelos mais ousados depois do acidente, não é, minha filha?<br />O acidente que a família cala num baixar barulhento de olhos à comida e eu me levanto rumo ao banheiro e ouço todos os olhos levantando barulhentos às minhas costas, acompanham meus passos adivinhando um tombo como se agora eu mais frágil, vulnerável, eu enorme e minhas pernas dois canudos a bambear nas sandálias. O corredor até o banheiro feito a longa passarela sob flashes e filmes, lembro bem, meus pés na corrida sincronizada do desfile ensaiado, minha mãe na primeira fileira com os óculos vidrados nos meus joelhos, talvez averiguando a proporção ideal entre coxas e canelas e eu numa torção repentina e a queda rápida. O tombo talvez no intervalo preciso de um movimento de pálpebras, minha mãe piscando e eu no chão com a ousadia do seio esquerdo à mostra agora humilhado pelo tornozelo que se recusa a se erguer, alguém me recolhe da passarela pelas axilas. Queda rápida demais sem a elegância das árvores que vão se anunciando lentas, rítmicas, até acalcarem o solo na imponência arrebatadora de um poema incrível. Eu no chão de repente com o seio maquiado de fora e minha mãe no balançar da cabeça como se dissesse às vizinhas Nem um mormacinho mas dizendo qualquer coisa que eu nunca quis saber, ela sumindo na platéia.<br />Chego à pia sem novos tombos e o espelho mostra qualquer coisa dela no queixo e talvez nos lábios, o espelho um retrato dela e eu sei que as fotos não me importavam, as revistas, os colegas, o namorado, o fracasso, nada de importante enquanto me puxavam pelas axilas. Somente ela e a cabecinha balançando, ela sumindo na platéia.</span> </div>
Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/03411616759927506903noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-84327013219626291182014-03-31T17:31:00.000-03:002014-03-31T17:31:13.432-03:00Cinéfilos<div>
ahahaha Mila, aqui vai sua encomenda. Pena que sou tão hábil em poesia quanto em pintura! beijos</div>
<br />
<div>
</div>
<br />
<div>
CINÉFILOS</div>
<br />
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</div>
<br />
<div>
Um homem enorme sentado no chão<br />
chorando os amores que não voltarão<br />
E lá atrás está Jurema<br />
unhas fundas no estofado<br />
e o olhinho mareado<br />
no silêncio do cinema<br />
Vai voltar pra Diadema<br />
e contar pro namorado.<br />
Mas sábado a bilheteria<br />
tem o filme que ela queria<br />
Só que ele muito ansioso<br />
quer ver o tal do homem choroso<br />
unhas fundas no estofado<br />
e o olhinho mareado<br />
no silêncio do cinema<br />
e na sala ao lado Jurema<br />
em gargalhadas convulsivas <br />
porque um anão de camisola<br />
tomou pílulas laxativas<br />
No busão pra Diadema<br />
conta tudo ao namorado<br />
e ele então se descontrola<br />
quer ver logo o anão cagado<br />
E sábado a bilheteria<br />
tem o filme que ela queria<br />
mas ele diz que nem rola<br />
quer ver o anão de camisola!<br />
E na sala ao lado Jurema<br />
unhas fundas no estofado<br />
vê um filme fabuloso!<br />
mas lembra então com saudade<br />
do abraço do namorado<br />
mão com mão no estofado<br />
no silêncio do Cinema<br />
e não diz mais a verdade:<br />
Meu bem, que infelicidade!<br />
que filme mais odioso!<br />
E sábado a bilheteria<br />
Tem o filme que ela queria<br />
mãos coladas no estofado<br />
quatro olhinhos mareados<br />
no silêncio do cinema.</div>
Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/03411616759927506903noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-9135777616356928352014-03-31T17:30:00.002-03:002014-03-31T17:30:53.909-03:00<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjQDbAw9XQfIy3xI6_c6aTNj5m2V_8WepCRQeFsqA2cLwQGC7hvgJ-02mclq_FqQ93s_uEn-ukGpDw3pz-WPlFhCA-1Oo8F4wPdy_DEuRgpQcYuuRHR9le9ML-b3k0wGGugacBfTx7jefDK/s1600-h/zÃper.jpg"><img alt="" border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjQDbAw9XQfIy3xI6_c6aTNj5m2V_8WepCRQeFsqA2cLwQGC7hvgJ-02mclq_FqQ93s_uEn-ukGpDw3pz-WPlFhCA-1Oo8F4wPdy_DEuRgpQcYuuRHR9le9ML-b3k0wGGugacBfTx7jefDK/s400/z%C3%ADper.jpg" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5264223896037218114" style="cursor: hand; display: block; height: 400px; margin: 0px auto 10px; text-align: center; width: 316px;" /></a><br />
<div align="justify">
</div>
<br />
<div align="justify">
Zíper<br />
Desde pequena ela puxa o zíper com essa força, quero continuar dormindo, não abro os olhos mas o zíper da primeira bota sobe de repente num rasgar agudo no meio da noite. Se eu abrir o olho vou ver a janela e as luzes intermitentes da rua que por algum motivo atingem um padrão, de quarenta em quarenta segundos o farol de um carro passa um feixe de luz pelo teto do quarto como um laser rastreando o ambiente, se eu me movimento quem sabe um alarme e o laser louco pelo quarto em redemoinhos de luzes e sirenes. Mas não abro o olho, a Amanda diz que tudo isso é parte da minha doença. Chama de doença, com um risinho charmoso no canto do lábio, e depois me abraça como se nada tivesse a menor importância.<br />
Agora deve estar descalça de um pé, procurando o outro embaixo da cama, ou buscando uma meia para o pé descalço. Pelo silêncio, deve estar passando o batom, porque parou a respiração. Ou o rímel, no rímel também pára de respirar. Se eu abrisse o olho veria o rastro da luz da rua passar pelos cabelos enormes da Amanda e veria por um instante a poeira sobre ela, sobre os móveis. Não abro o olho e ouço as escovadas brutais que ela dá sem medo de arrancar os fios, eu sei que tira tudo da escova numa maçaroca preta e joga no lixo ao lado do vaso. Fica um montículo cabeludo sobre os papéis higiênicos parecendo uma vagina abandonada há séculos no banheiro.<br />
Quando cresceram os pêlos ela andava pelo quarto nua como se procurasse uma calcinha mas era pra mim que ela andava, eu fingia que lia a revista mas de repente ela perguntava se o sutiã estava bom. Só o sutiã, nenhuma calcinha, e a agressividade da Amanda entre as luzes dos carros na rua ritmicamente passando o radar para detectar o menor movimento, a agressividade daqueles pêlos no meio da minha infância tão lenta.<br />
Termina as escovadas bruscas e a outra bota de repente zíper na fúria dos zíperes de Amanda, por que tanto zíper e tanta força, no meio da noite o rasgo metálico, daqui a pouco é a minissaia que também zíper e a jaqueta zíper e a bolsa zíper e depois vai me olhar. Vai me olhar e se eu abrir os olhos vai fazer um sinal de silêncio que é um "zíper na boca", dizia isso toda a vez que me contava um segredo, sempre um segredo horrível que eu guardava com medo do zíper que eu talvez tivesse nos lábios.<br />
Eu com medo das sombras dos abajures e a Amanda contando histórias de terror com a cara enorme no foco da lanterna, eu apertava os olhos na fronha molhada e fedida de baba choro e leite, eu gritava Pára, Amanda e ela ria com a luz da lanterna alaranjando as cavidades da boca e saindo em raios por entre os dentes. Agora não conta histórias mas ficam esses zíperes me impedindo o sono, a luz vacilante do abajur verde na penteadeira fazendo sombras, mil sombras nas paredes, no teto.<br />
Deve estar contando o dinheiro na carteira e se eu abrir o olho vai me perguntar se está bonita. Eu vou dizer que parece uma prostituta, e ela vai rir e responder que então está muito bonita. Depois vai sentar na minha cama com todo o barulho dos couros e o perfume alcoólico que espirra inclusive nos cabelos. Vai sentar e vai me beijar a bochecha e me chamar de picurrucha mesmo eu já sendo tão grande, já sou grande, Amanda, não sou? E eu vou sentir o batom grudar devagarinho no meu rosto e depois no meu sono manchar o travesseiro e de manhã ainda a marca rosa do beijo aparecendo no espelho. Depois talvez pergunte se amanhã quero ir ao parque, vai fazer mil planos bem baixinho no meu ouvido, vai falar do parque e do shopping mas eu sei que só vai voltar na segunda-feira com olheiras e zíperes arrebentados. Vai me fazer um carinho no cabelo suado e balançar a cabeça com pena, morre de pena de mim. Depois vai sair bem silenciosa como se de repente, depois de tantos zíperes rasgando o meu sono, não pudesse fazer nenhum ruído. Então me faria um aceno e fecharia a porta lentamente, até sentir o clique discreto da maçaneta.<br />
Mas eu não vou abrir o olho, nunca abro o olho. Termina de contar o dinheiro e eu ouço o barulho dos couros, das chaves, e o clique discreto da maçaneta. </div>
Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/15363136435720079729noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-46503812398757488732014-03-31T17:30:00.001-03:002014-03-31T17:30:35.026-03:00Exercício 1<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgzClM2m45N5lyVyPGqIIFwgzTlMCT6PEhOWsHqjOhoKQWS_1-Yy-wRd94mCQizXAAJlqfJyCSff5Pm1uKUWEeIPTNJX2p5W_-KkXXRqauOvqEo721-J52SRf1jjaYJsv9qpoqHc37h_8Sb/s1600-h/homem-pretobranco.jpg"><img alt="" border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgzClM2m45N5lyVyPGqIIFwgzTlMCT6PEhOWsHqjOhoKQWS_1-Yy-wRd94mCQizXAAJlqfJyCSff5Pm1uKUWEeIPTNJX2p5W_-KkXXRqauOvqEo721-J52SRf1jjaYJsv9qpoqHc37h_8Sb/s400/homem-pretobranco.jpg" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5303945386931592146" style="cursor: hand; display: block; height: 400px; margin: 0px auto 10px; text-align: center; width: 310px;" /></a><br />
<div align="justify">
</div>
<br />
<div align="justify">
Quando o rádio-relógio despertar de novo, daqui a dez minutos, quero que esse peso nos olhos tenha sumido, quem sabe a voz do rádio na notícia exata -- gosto da mocinha do trânsito com a entonação musical e a ênfase no rodízio, repete três vezes as placas que não podem circular. Quero ficar deitado dois minutos enquanto a mocinha dirá que as avenidas estão fluindo surpreendentemente livres daqui até o meu trabalho, os carros todos a oitenta e cinco por hora e ela cada vez mais contente anunciando Livres! livres!<br />
Depois quero levantar e sentir que o tubo da pasta de dente continua cheio, apertar gostoso bem no meio até transbordar pela escova. Quero lembrar que fui ao mercado no domingo e por isso tenho pão, queijo, mortadela, e quero que a Lúcia já tenha feito o café e dessa vez com muito pó, engasgando de tão forte – sempre faz tão fraco e eu nunca a coragem para um Lúcia, o café, talvez, um pouco mais forte, quem sabe?<br />
Depois queria que o jornal estivesse aberto na mesa ao lado do café, queria que o jornal viesse num caderno espiralado fácil de virar página por página sem o cinza carvão desbotando na ponta do dedo engordurado de manteiga. Queria então que esse incômodo perene dentro da barriga fosse embora numa sonora flatulência de dois minutos ininterruptos até a Lúcia aumentar a música na cozinha com um sorriso duro e o olho arregalado.<br />
Queria descobrir que aquele problema no computador se resolveu sozinho, junto com o cano entupido e o microondas que há duas semanas a Lúcia diz que faz um uivo vampiresco – queria que a Lúcia escolhesse palavras como vampiresco. Queria que um botão daqueles auto-clean de liquidificador me deixasse de repente de banho tomado e cueca nova, queria que as gravatas virassem estilinho cômico nos baús dos brechós de São Paulo.<br />
Quero chegar no trabalho em apenas três minutos e descobrir que a Silvana faltou, vai faltar a semana inteira, infecção, e o Rubens também, mas o Rubens pode ser só intoxicação alimentar. Assim sem o Rubens não tem comentário sobre o futebol com a risada grotesca tremelicando o bigode, os dedos finos fazendo uns gestos da malandragem que eu retruco dizendo qualquer coisa sobre o jogo de ontem, algum comentário que ouvi dos manobristas ou de alguém no elevador.<br />
Quero sentir a cadeira vermelha que é a única coisa que eu gosto naquele lugar, rodar, rodar enroscando os fios dos computadores. Quero fechar os olhos na cadeira vermelha e abrir de repente às oito horas da noite no café Boreal, a Daiane vai me trazer o mate com limão e o açucareiro, vai se olhar no reflexo da bandeja e depois vai perguntar se eu já assisti a um Almodóvar qualquer que ela alugou e não sabe se é bom, a Daiane deve gostar de filme; aquele jeito de cruzar os braços apoiada no balcão e ficar olhando a rua, a Daiane é puro cinema.<br />
Quando eu pedir a conta ela vai fazer um muxoxo balançando o rabo de cavalo e limpando a mão de farinha no avental verdinho. Quero que esse grumo de papel higiênico molhado que está atolado na minha garganta desde os treze anos se dissolva de repente e eu diga sem engasgos que gostaria muito de ver aquele Almodóvar de novo. Não quero que ela abra um sorriso, nem diga um doutor-carlos-doutor-carlos –- quero que ela pare de me chamar de doutor. Quero que ela apenas me entregue a conta e com toda a naturalidade do mundo diga um então-vamos-indo, olhando o relógio.<br />
Quero que ela tire a roupa sem rebolado ou mistério, como uma amiga fez pra me mostrar a tatuagem. Quero que ela tenha os seios humanos, com alguma marca de nascença e estrias discretas dos lados, quero que me deixe tirar uma foto com a câmera do celular. Quero que ela mesma tire a camisinha e fique brincando distraída, uma menina descalça no quintal com um balãozinho de água.<br />
Quero que o DVD não funcione porque não estou com tempo para o Almodóvar que eu já vi, quero dar um beijo longo e ela vai apertar as unhas no meu ombro e me emprestar um livro que ela leu essa semana e achou a minha cara, quero que a Daiane também goste de ler.<br />
Quero que a casa da Daiane seja do lado da minha e vou atravessar a rua e ver que a Lúcia deixou tudo arrumado e com cheiro de lustra-móveis – adoro cheiro de lustra-móveis – sem tirar do lugar nenhum dos meus papéis e ainda fez um macarrão molhado e um bife farinhento passado no ovo. Quero cerveja.<br />
Quero o tubo de pasta bem cheio, um copo de água com gás no criado-mudo. Quero deitar na minha cama com três travesseiros embaixo da cabeça e dois atrás dos joelhos. Quero sentir as costas relaxando de orgasmo e lençol gelado e acender o abajur e estalar os dedos dos pés. Quero abrir o livro que a Daiane emprestou e achar esquisito, depois achar bonito, sentir o peso voltando para os olhos devagar. </div>
<div align="justify">
Quero ler o livro que a Daiane emprestou e não entender nada, quero tomar um chá com ela amanhã e dizer que o livro é difícil demais pra mim.</div>
Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/15363136435720079729noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-73594238615877612412014-03-31T17:30:00.000-03:002014-03-31T17:30:09.679-03:00Exercício 2<div align="justify">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhZKwRLFV9-MpRzcVTYdqvpolzjo-mir52CW_QTsUU4TEMKrCtvnt3ugZxR3CRtiY-um8iro_JbW4yG6Q4rlmQwP-qhNnQ9MlJ_fPAXBpnj9sliz9O1HcDnaG22KSqfO5ezs9yELXfriQNW/s1600-h/Velhice.jpg"><img alt="" border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhZKwRLFV9-MpRzcVTYdqvpolzjo-mir52CW_QTsUU4TEMKrCtvnt3ugZxR3CRtiY-um8iro_JbW4yG6Q4rlmQwP-qhNnQ9MlJ_fPAXBpnj9sliz9O1HcDnaG22KSqfO5ezs9yELXfriQNW/s400/Velhice.jpg" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5311164342145500754" style="cursor: hand; display: block; height: 320px; margin: 0px auto 10px; text-align: center; width: 240px;" /></a></div>
<div align="justify">
Quero uma cabeleira grossa e longa pra pentear com força e sentir os fios eletrizados na nuca. Quero uma poltrona daquelas de couros e engrenagens e um livro digno de uma dessas poltronas, e quero que os olhos não ressequem durante o livro que o Marcos me deu, um livro que é digno apenas desta cadeira de palhas soltas. Quero que meu filho fique inteligente de repente.<br />Quero uma cozinha sem móveis azuis, azul-bebê, o Marquinhos dizia azul-calcinha.<br />Quero rosquinhas secas que eu vou molhar devagar no café com leite, silêncio. Quero pingar o adoçante a cinco palmos da xícara para ver se acerto as gotas, caem pesadas em ondas de café, quero os óculos para ver as ondas e as horas: há alguns dias estou esperando uma carta anônima.<br />Quero que o Marcos pare de rir aquele riso ridículo, e me telefone menos vezes na semana, e deixe o emprego indigno que ele transforma em piada à mesa do jantar. Quero muito que ele fique, de repente, inteligente. Quero sentar na minha sala e abrir a janela e deixar qualquer coisa de luz entrar, qualquer coisa de calor nos pés que estico na fresta de sol sobre o carpete, os acarozinhos dançando no ar. Quero encontrar na estante um livro erótico, e quem sabe o sol e qualquer coisa de quente nos pés e nas coxas azuladas de veiazinhas, um mapa da vida na pele escamosa que eu evito no espelho, quero ter coragem de olhar para mim. Quero alongar os dedos doídos e as costas até esticar e colocar no lugar a peça que está solta, consertar tudo num encaixe instantâneo, esquecer o corpo e sua consistência amolecida de travesseiro dormido, voar num balão pendurada pela cabeça até esticar o pescoço feito Alice na maravilha ortopédica de um alongamento mágico.<br />Quero um país numa toca de coelho. Quero alguém com quem jogar baralho, quero baralhos que falam.<br />Quero o Américo aqui, mordendo sem força a maçã que ele deixava na cabeceira. O Américo que saiu uma vez para comprar cigarros, e nunca mais parou. Quero o Américo com os dois pulmões aqui na cadeira de palha que ele revestia de almofadas para facilitar a tosse, o Américo com a risada rouca, a careca cheia de xampu e as unhas compridas que ele pintava de vermelho pra provocar o Marcos. O Américo num carinho trêmulo entre tosses e sonhos que ele narrava aos detalhes durante a maçã matinal.<br />Quero que a minha neta apareça, apenas a minha neta, não quero os meninos. Mas quero que ela chegue sem a cara humilhada de criança feia, quero que chegue oito quilos mais magra e com um vestido verde escuro, quero que me fale de um namorado, pergunte da minha formatura e mostre uma tatuagem no ombro. Quero que tire os sapatos e vá até a vitrola rodar um tropicalismo qualquer e saltitar me segurando pelas mãos.<br />Quero receber uma carta anônima que diga que vou morrer tragicamente, no fim de semana, um crime qualquer de noticiário. Quero virar literatura. Queria ter morrido antes, o Américo entrando com o jornal e o leite e o meu corpo quase bonito ao pé da escada.<br />Quero que o criminoso seja um rapaz sem jeito, finjo de morta e ele me carrega no colo escada acima feito noiva virgem. Quero que encha a banheira e ajeite meu corpo de leve na água, quero sentir os dedos dele passando devagar entre as minhas dobras, no contorno das rugas, no cálculo preciso das machadadas. Quero um esquartejamento silencioso e estético – quero virar literatura –, e depois quero que o moço limpe tudo antes do Marcos chegar com as crianças.<br />Quero que a minha neta apareça de capa vermelha com doces na cesta e encontre na cama um lobo jovem que acabe de vez com a infância tardia. Um lobo rapaz que já saiba tudo o que eu sei, que tenha me devorado aos pedaços na banheira, que abra a boca enorme e não deixe a minha menina escapar por mais nenhum dia.</div>
Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/15363136435720079729noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-69148054703248455982014-03-31T17:29:00.002-03:002014-03-31T17:29:47.238-03:00Exercício 3<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiiO8RjlaszJMSBR80p4CIDBppkOTVsPBGtAHomP7p8UMSVhGmrG-i8VEIMF1ZFy6QiWY3o8Fq2HeDKLoNbIPbFDnxd5uu550bFwhEVmuvToLAsE3y8URYYXzEveHc2KMsGBdO70e2tLKuL/s1600-h/triste.jpg"><img alt="" border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiiO8RjlaszJMSBR80p4CIDBppkOTVsPBGtAHomP7p8UMSVhGmrG-i8VEIMF1ZFy6QiWY3o8Fq2HeDKLoNbIPbFDnxd5uu550bFwhEVmuvToLAsE3y8URYYXzEveHc2KMsGBdO70e2tLKuL/s400/triste.jpg" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5335812249922473138" style="cursor: hand; height: 288px; width: 333px;" /></a><br />
<br />
<div align="justify">
</div>
<div align="justify">
Quero que ela pouse devagar no meu joelho, joelho deve ser bom de receber ferrão, depois a abelhinha se morrendo num vôo tonto – será que elas sabem que vão morrer? Quero que ela pique e morra bem assustada do meu lado, incrédula, pensando que devia ter ficado em casa fazendo mel como toda abelha devia fazer – deve ser isso que pensam as mulheres quando percebem que estão morrendo no parto e não têm nenhum zangão pra chorar por elas. Deviam ter ficado em casa, a vida toda em casa fazendo mel.<br />
Quero uma porta de madeira branca, um urso de isopor com purpurina com meu nome pendurado. Quero que alguém abra essa porta e me lave e me tire dali dizendo que posso começar tudo, tenho sete anos pra aprender a ler, mais oito pra aprender a falar as coisas certas e outros três ou quatro pra aprender a resistir, ferroadas nos joelhos. Quero que alguém me tire pela porta branca e me dê um beijo na testa pequena e me troque a fralda cantando uma canção que não seja de terror, quero dormir sonhando com o arco-íris que meu irmão prometia, um pote gigante de gomas vermelhas na outra ponta, sempre na outra ponta.<br />
Quero um mapa gigante dos meus últimos anos, quero alguém que aponte, alguém que crave uma lança no ponto exato onde eu me perdi de mim. Alguém que explique quando foi que a Alice saiu do meu corpo e sumiu pra sempre numa toca escura com o coelho neurótico, e me esqueceu sem cor e sem graça lendo livros enfadonhos sobre gente que não me interessa. Quero saber, quero saber por onde é que eu ando há tantos anos que me aperto e não sinto, quero os ferrões, as abelhas, o meu pote de jujubas de cereja do outro lado do arco-íris, quero a minha mãe fazendo mel na cozinha de casa ao invés de morrendo pra fazer uma filha que talvez nem saiba amá-la, faz tempo que eu não sei amar. Não acho mais graça na páscoa e nos seus chocolates, quero de volta os meus líquidos – minha saliva, meu choro, meu tesão, meu suor nas noites de festa.<br />
Quero saber quem foi que eu piquei, em que joelho maldito eu deixei a minha força, o meu brilho, a vontade de levantar da cama e correr até o pote de balas – ou quem sabe se já não piquei o útero e cheguei azeda no mundo, moribunda, frouxa, vendo as pessoas na velocidade delas e sentindo preguiça de sorrir, às vezes ódio dos solícitos que seguram portas e eu tenho de olhar e agradecer.<br />
Quero fechar os olhos e entender, de repente perceber o que é que está errado, um jogo dos sete erros: desvendo e faço o último círculo e levanto e saio de casa de camisola e chinelos cumprimentando vizinhos e começando tudo de novo atrás das jujubas vermelhas no arco-íris. Quero sentir uma dor aguda de um ferrão nos joelhos e perceber seja o que for que eu não percebo há anos, ver a abelhinha tontear e silenciar o zumbido ameaçador até cair bêbada, inofensiva.<br />
Mas ela foi embora, voando, e eu não sinto nada. </div>
Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/15363136435720079729noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-19524538642783406902014-03-31T17:29:00.001-03:002014-03-31T17:29:36.463-03:00Exercício 4<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjER8oFcfZbpMLsNpgkW719oL804ukhFWgqt7BPqHWkgFcOxSM2lWYHh4_f2voDpipUOMYTIvY2H56XgjevraQrD1kQ3EV6nmcvqX2NNiULcpbublZO_aJ6xWQvgb_COx8DrAZXqYQIBTYF/s1600-h/love.bmp"><img alt="" border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjER8oFcfZbpMLsNpgkW719oL804ukhFWgqt7BPqHWkgFcOxSM2lWYHh4_f2voDpipUOMYTIvY2H56XgjevraQrD1kQ3EV6nmcvqX2NNiULcpbublZO_aJ6xWQvgb_COx8DrAZXqYQIBTYF/s400/love.bmp" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5339410228193751266" style="cursor: hand; height: 137px; width: 400px;" /></a><br />
<div align="justify">
</div>
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<div align="justify">
Quero chegar de novo atrasada, o Emílio esperando ansioso a troca de turno, quero ver que mais uma vogal do letreiro queimou, a outra piscando na intermitência rouge das ambulâncias, das polícias, das espeluncas. Quero esse lugar apagando aos poucos, o nome óbvio sumindo, só a sombra das letras grudentas da fumaça oleosa dos escapamentos.<br />
Quero minha televisão minúscula azulando o programa do Jô no volume baixinho que não incomoda. Quero que o primeiro casal chegue discutindo qualquer coisa sobre uma festa, bêbados, ela mais do que ele, brigando porque ele guardou salgadinhos no bolso da jaqueta. Quero que entrem sem boa-noite e sem perguntas, passo a chave pelo vidro e recebo o RG rasgado e rio sozinha da vesguice da foto. Conferem o valor na plaquinha torta atrás da samabaia, dividem.<br />
Quero encostar na cadeira giratória e esquentar o pé gelado na mantinha que o Emílio deixa pra mim. Na verdade quero que os homens hoje fiquem todos nos seus cantos, caídos, quero que sumam em tragadas, garrafadas, tacos de sinuca, quero que durmam gordos atrás dos óculos, dos livros e de repente um coro agudo por essas escadas, quero duas mocinhas pedindo uma suíte com banheira, vou sorrir – estamos lotados – e elas esperam na saleta.<br />
Quero que encostem os narizes, os cílios, misturem os cabelos, os cachos, os brincos. Quero risos e elogios que não consigo ouvir. Quero escutar só as risadas até silenciarem os gritos asmáticos daqueles sebentos, palavrões pelos corredores.<br />
Quero anunciar o quarto limpo, espalhar pétalas de rosas pela cama. Quero que peguem a chave da minha mão num sorriso de pura gratidão e corram saltitantes pela escada, câmera lenta nos sapatinhos barulhentos. Quero que interfonem pedindo um suco de morangos que vou picar eu mesma, o liquidificador em vez da tevê na tomada da recepção. Depois quero que peçam mousse, chantili, leite condensado.<br />
Quero que peçam coisas impossíveis, pilhas, livros, vestidos, quero que peçam festas, filhos, amigos, filmes, quero que peçam e eu vou dizendo pois-não e vou levando até que me puxem pela mão devagar e me convidem, quero que me mostrem o quarto, a vida, a paixão e me encostem os narizes, os cílios, misturem os cabelos nos meus cachos crespos, os brincos. Quero as risadas todas comigo, vão me rodar contentes, contar histórias de bebedeiras, maluquices, quero sentar tímida na cama e cantar baixinho.<br />
Quero que elas queimem uma por uma as luzes do letreiro e fechem as portas dos quartos desertos e tragam aos poucos um a um cada prato da cozinha, quero enfiar o dedo em todos os bolos baratos, lamber os pudins. Quero rir com elas das azeitonas e cuspir os caroços com força pela janela, quero roubar as cerejas solitárias de todas as taças mal lavadas. Quero que elas apaguem de vez todas as luzes e aluguem para sempre todos os pernoites, todas as diárias. Quero que não saiam nunca mais daqui.<br />
<br />
Mari Carrara e Lucas Fabio</div>
Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/15363136435720079729noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1214379897748231960.post-91634790279281055502014-03-31T17:29:00.000-03:002014-03-31T17:29:24.120-03:00Partindo<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgtREXovJf_pXYU_5Xhea1jDcfgHUVn06pTzCL1ciGvWdhyHCQ350inqh0NV31-O6m-e0EWIAUX4Pmrt30lbfmWSklfNpUjyMIM4qbxdeoRTRtemuadVn8KFDUfnETlVjBUHF5OR_0tzdPm/s1600-h/sitio.bmp"><img alt="" border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgtREXovJf_pXYU_5Xhea1jDcfgHUVn06pTzCL1ciGvWdhyHCQ350inqh0NV31-O6m-e0EWIAUX4Pmrt30lbfmWSklfNpUjyMIM4qbxdeoRTRtemuadVn8KFDUfnETlVjBUHF5OR_0tzdPm/s400/sitio.bmp" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5390239366072300978" style="cursor: hand; height: 266px; width: 400px;" /></a><br />
<div>
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjgow90XtcqhCiSOjn4LPwZ1FlIWUe9Ms0GvQ2wCe7qns60Y_U1nIfhBlXl4tig1Sjiqr-R345wtC2TJJgzZw7MjPgWQkAVNaXXflH8lVYa66JU-BhiBkuqK6V8zuGmRcd0hyJbYRnM9X_6/s1600-h/DSC_0076.jpg"></a><br />
<div align="justify">
</div>
<div align="justify">
Ela disse que estava partindo, não disse assim chique mas disse qualquer coisa que, se fosse escrita, a palavra seria partir. Continuei com os pés enlaçados atrás das pernas da cadeira, girando de leve para um lado e para o outro. Ela ia partir, era isso, e partir significa uma porção de coisa mais importante do que simplesmente ir embora.<br />
Ela falava, num tom condescendente, que tinha tentado me dizer antes, acho que se esforçava para chorar porque na verdade parecia entusiasmada. Naquela hora, quando ela disse que eu certamente seria muito feliz – quem sabe alguém que combinasse mais comigo –, naquela hora eu pensei que ela estava partindo o mundo no meio, partindo de um lado o mundo que tinha existido até aquele dia, e do outro a parte do mundo em que eu teria de viver quando ela tirasse a mão piedosa do meu joelho.<br />
Deixei o pé travado atrás da cadeira pensando que é por isso que chamam esse momento de partir, ela me partia no meio com um golpe na nuca, fiquei ali tonto, ruído, uma bolha ácida inflando no estômago – descobri que o ciúme mora no estômago, quem sabe uma água-viva gelatinosa e urticante. Ela partiu naquele dia e depois, por telefonemas, partiu o apartamento em dois, o dinheiro em dois, até o carro ela partiu em dois carrinhos e o menino ela partiu salomonicamente em finais de semana monótonos, ele traz o vídeo-game e conversamos sobre refeições, em monossílabos. Ela abriu a porta do carro e tirou o cinto do menino, debruçou sobre o banco pra alcançar a mochila e quando eu reclamei que o meu filho estava engordando ela sorriu – condescendente (não com o menino, que talvez nem esteja gordo, mas comigo) – colocando a mão no meu joelho.<br />
Ela partiu antes mesmo que eu tirasse os pés de trás dos pés da cadeira giratória, eu estava esperando ela desabar num choro de insegurança abrupta mas ela chegou a comentar que não era possível que eu não tivesse percebido como as coisas estavam, usou a expressão “há anos”. Eu ia perguntar se a sexta-feira não tinha significado nada pra ela mas apertei mais o pé no enlace da cadeira. Fiquei pensando se ela ia apoiar a maleta no chão e passar um batom antes de sair, no espelho da sala, quem sabe explicar onde anotou os contatos da empregada na pausa entre um lábio e outro.<br />
Naquele dia parece que ela partiu alguma ligação química dentro do meu corpo, qualquer coisa que tornava automático o pé-depois-do-outro, os passos simples na direção do que é certo e fácil. Ficou um robô enrijecido que calcula feito criança a tabuada esquecida de cada gesto. </div>
</div>
Mari Carrarahttp://www.blogger.com/profile/15363136435720079729noreply@blogger.com0