quinta-feira, 7 de julho de 2016


O crime tem duas pontas. Uma cativa, a outra aponta.Todas as mães podem perder os filhos para o crime. Blindam os carros no Rio de Janeiro, como se o carro fosse o próprio corpo. Prendem os filhos no Rio de Janeiro, como se o crime abandonasse um corpo preso. Abandonam os corpos no Rio de Janeiro. Os nomes das mães tatuados, as mães nos braços dos presos. As mães olham os ponteiros. Nas duas pontas do crime, tombam os filhos. Cortam uma ponta do crime e ele se espalha em torno de tudo, marginal. Todas as mães podem estar sozinhas.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

O tempo do farol


Os meninos do farol da entrada de São Miguel Paulista têm de saber o tempo preciso de cada conversa, o clímax no encaixe perfeito entre sinais vermelhos, senão no meio da história os amigos em disparada entre os carros, e o orador a administrar solitário a evasão da plateia sob o sol de um milhão de graus, depois a disfarçar a pequena humilhação crônica no resgate de um assunto que morreu pisoteado no asfalto com as balinhas de framboesa.
É preciso voltar para casa com no máximo cinco saquinhos não vendidos e dois gestos suspensos em histórias mal calculadas, os braços no ar bem no meio do melhor relato, todos correndo como se a conversa não tivesse a menor importância, justo agora que tem também uma menina, uma moça, que talvez ainda sustente um pouco mais o olhar no interrompido da vez, e vá correndo quase de costas com as balinhas, só até o colega dispensar a gentileza e correr também, nenhuma história merece tanto prestígio.
Esses meninos do farol da entrada de São Miguel Paulista talvez tenham raiva porque até apurarem esse tino narrativo são calados tantas vezes nas suas teatralidades, uma vida de hiatos. É capaz que tenham raiva porque já não são meninos, tão rapazes, e ainda meninos, sempre meninos.
Ou talvez tenham raiva porque aquele não é um farol da entrada de São Miguel Paulista, é a entrada pra quem vem do centro da cidade, pra quem vem de mais perto daquilo que é o perto, mas para eles é a saída, a borda, a beira de uma ilha cercada de córregos e avenidas muralhadas terrenos campinhos de futebol, uma ilha de santos paulistas cheia de assuntos mas também cheia de farol e é preciso calcular o tempo, calcular as vendas, e a menina é nova aqui e também não é mais menina, nem arrisca conversa, ainda testando os ciclos do farol da borda de São Miguel Paulista, agora sob uma chuva fina, o marulho dos carros na água do asfalto, à beira de casa, o farol de um mar que engole em ondas programadas as conversas dos seus banhistas.
Os meninos do farol da orla de São Miguel Paulista também têm uma lista de coisas rápidas a dizer antes da próxima onda, e ainda assim às vezes um vidro abaixa e uma pergunta fora do roteiro e uma resposta animada que quer continuar mas o farol muda e a água leva o carro numa curta buzina carinhosamente paulistana e os meninos sorriem, porque não tem importância, há outras histórias, outros ouvintes, a menina já ensaia uma palestra aos meninos, quarenta segundos de atenção, o tempo perfeito, em uma semana ela já sabe o que cabe e o que não cabe no tempo do farol, o tempo entre as ondas de São Miguel Paulista.