quarta-feira, 8 de março de 2017

Se eu fosse uma casa


Se eu fosse uma casa minha sala era assim aberta e imensa feito um escândalo que retumbasse nas paredes dos vizinhos e onde caberiam as gentes e os amores todos, um relógio na parede rodando todos os tempos, que o passado girasse sempre perto e tão em volta de mim que o tempo fosse ele todo um imenso agora. Na confusão dos meus ponteiros e a música alta e a minha bebida acabaria que ninguém nunca ia embora.
Cada livro na estante seria um livro que eu não escrevi, e seriam tantos que durante a noite tombariam sobre a minha cabeça na forma de uma insônia. As lâmpadas só se acenderiam com a energia dos outros, seria preciso que o telefone tocasse e que os amigos me escrevessem e apreciassem minhas fotos, que os homens viessem e depois voltassem sempre, querendo ficar e viver comigo, ainda que não pudessem ficar todos ao mesmo tempo, por maior que fosse a sala, para cada lâmpada acesa seria necessário um elogio, uma risada que me dedicassem, mãos dadas na rua.
E cada colher seria um pequeno espelho deformado de mim, um espectro dos meus olhos que me envergam e me incham, as colheres cintilariam neuróticas pela mesa, pia, ganchos nas paredes, haveria colheres refletindo concavidades em todos os cômodos.
E cada ovo da cozinha era um amigo, o barulho da casca quebrando de leve na quina da pia no mesmo som de uma amizade que se rompe, o ruído delicado e breve de qualquer coisa que se transforma, ou às vezes explode sem querer no chão e fica ali brilhando amarelo e inútil – não se tornará nem um suspiro.
A cama seria a minha memória, lembranças de tantos anos ressoando nas molas, tilintando metálicas em espirais seculares de vai-véns noturnos, matinais, memórias cinéticas de tardes perdidas, homens catapultados até mesmo pela curva tão complacente dos meus ponteiros, queridas molas que não esquecem, guardam no seu sacolejo e me devolvem elásticas cada pulsar que eu dei, mesmo criança em saltos proibidos, os pezinhos descalços e as mãos para cima, as molas a impulsionarem para o alto, risadas, alguém dizia que eu ia quebrar a cama, que nunca quebrou, ou que eu cairia, eu que caí tantas e tantas vezes depois e talvez justamente por não pular mais das camas. As molas e seus saltos de um jeito ou de outro sempre um pouco proibidos, vibrantes.
A água da torneira seria a minha tristeza, e minha alegria, e o meu amor. A torneira jorraria primeiro pelos encanamentos e se não acolhesse derramaria pelos ralos, pias, molharia as visitas e subiria encharcada pelas meias, calças, e escoaria pela porta o que não me bastasse, tudo que eu-casa não contivesse, afogaria um a um todos os filhos que eu não tive e até mesmo os que talvez preferisse não ter tido, e eles gritariam por instantes mas logo engoliriam depressa em golfadas toda a minha dor e o meu amor assim sufocantes, inundaria a calçada, e talvez chegasse a incomodar os carros, e ainda assim essa água toda, essa torneira, ninguém repararia, continuaria escoando e afogando e espantando tantos anos sem ninguém estancar.
As janelas seriam gigantes, elas seriam as outras mulheres. Cada prédio, cada casa, cada grito na noite, cada braço mais fraco que o meu, cada canto mais forte, todas ali ao alcance dos olhos, as janelas assim numa invisível rede que não cobrisse nada, mas que amparasse, incansável, cada salto, cada queda.