Se eu fosse uma casa minha sala
era assim aberta e imensa feito um escândalo que retumbasse nas
paredes dos vizinhos e onde caberiam as gentes e os amores todos, um
relógio na parede rodando todos os tempos, que o passado girasse
sempre perto e tão em volta de mim que o tempo fosse ele todo um
imenso agora. Na confusão dos meus ponteiros e a música alta e a
minha bebida acabaria que ninguém nunca ia embora.
Cada livro na estante seria um
livro que eu não escrevi, e seriam tantos que durante a noite
tombariam sobre a minha cabeça na forma de uma insônia. As lâmpadas
só se acenderiam com a energia dos outros, seria preciso que o
telefone tocasse e que os amigos me escrevessem e apreciassem minhas
fotos, que os homens viessem e depois voltassem sempre, querendo
ficar e viver comigo, ainda que não pudessem ficar todos ao mesmo
tempo, por maior que fosse a sala, para cada lâmpada acesa seria
necessário um elogio, uma risada que me dedicassem, mãos dadas na
rua.
E cada colher seria um pequeno
espelho deformado de mim, um espectro dos meus olhos que me envergam
e me incham, as colheres cintilariam neuróticas pela mesa, pia,
ganchos nas paredes, haveria colheres refletindo concavidades em
todos os cômodos.
E cada ovo da cozinha era um
amigo, o barulho da casca quebrando de leve na quina da pia no mesmo
som de uma amizade que se rompe, o ruído delicado e breve de
qualquer coisa que se transforma, ou às vezes explode sem querer no
chão e fica ali brilhando amarelo e inútil – não se tornará nem
um suspiro.
A cama seria a minha memória,
lembranças de tantos anos ressoando nas molas, tilintando metálicas
em espirais seculares de vai-véns noturnos, matinais, memórias
cinéticas de tardes perdidas, homens catapultados até mesmo pela
curva tão complacente dos meus ponteiros, queridas molas que não
esquecem, guardam no seu sacolejo e me devolvem elásticas cada
pulsar que eu dei, mesmo criança em saltos proibidos, os pezinhos
descalços e as mãos para cima, as molas a impulsionarem para o
alto, risadas, alguém dizia que eu ia quebrar a cama, que nunca
quebrou, ou que eu cairia, eu que caí tantas e tantas vezes depois e
talvez justamente por não pular mais das camas. As molas e seus
saltos de um jeito ou de outro sempre um pouco proibidos, vibrantes.
A água da torneira seria a
minha tristeza, e minha alegria, e o meu amor. A torneira jorraria
primeiro pelos encanamentos e se não acolhesse derramaria pelos
ralos, pias, molharia as visitas e subiria encharcada pelas meias,
calças, e escoaria pela porta o que não me bastasse, tudo que
eu-casa não contivesse, afogaria um a um todos os filhos que eu não
tive e até mesmo os que talvez preferisse não ter tido, e eles
gritariam por instantes mas logo engoliriam depressa em golfadas toda
a minha dor e o meu amor assim sufocantes, inundaria a calçada, e
talvez chegasse a incomodar os carros, e ainda assim essa água toda,
essa torneira, ninguém repararia, continuaria escoando e afogando e
espantando tantos anos sem ninguém estancar.
As janelas seriam gigantes,
elas seriam as outras mulheres. Cada prédio, cada casa, cada grito
na noite, cada braço mais fraco que o meu, cada canto mais forte,
todas ali ao alcance dos olhos, as janelas assim numa invisível rede
que não cobrisse nada, mas que amparasse, incansável, cada salto,
cada queda.
Um comentário:
magnífico
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