segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Casa do Amor II




Você, que aguarda em algum lugar aí fora dessa minha casa que não tem campainha: só mais um minuto e eu abro. Pode sentar na sarjeta, na árvore, pode voltar depois da noite, da dança, pode esperar suado, ou dormindo, ou chorando. Esperar só mais um pouco que já abro.
Recolher do chão os cacos, os pedaços de vasos, as flores, estilhaços de espelho que acumularam: parece que fechei os olhos e pela casa passou um furacão quente e impossivelmente lento, é melhor você esperar só mais um pouco que ainda tem restos de comida na cozinha. Jogar fora o que sobrou do suco, da fruta, da sopa, marcas de chocolate pelas pias, dedos melados tingindo de açúcar os armários, azulejos – quantas vezes será que essas mãos espalmadas com fúria dulcíssima nessas tantas paredes, parece que nunca vou terminar de limpar.
Apagar das paredes também os recados, desenhos, quadros, recolher as fotografias e guardar quem sabe num fantástico sótão de sublimação e poeira. Ainda tem convidados na sala, que amigos são esses que foram ficando e nem são os meus, será que são pessoas esses vultos caídos nos sofás, será que são anjos delinquentes despencados de um paraíso que é preciso lavar completamente daqui.
Lavar – aguarde mais um pouco que ainda é preciso lavar – as roupas, costurar os rasgos, puxões, afagos, é preciso remendar o vestido que foi dilacerado, tirar as marcas, o cheiro. É preciso que já não haja perfume, nem suor, nem lembrança.
É preciso que eu me deite no chão e recolha debaixo da cama o que restou dos tantos monstros – que monstros são esses que deixaram aqui que não são os meus --, apanhar o que sobrou dos sonhos. Que sonhos eram esses que despencavam da cama em rochas de erosão e dor. É preciso que eu afaste janela afora os fantasmas que entraram com o vento, não é de bom tom uma casa assim assombrada.
É preciso acalmar os cachorros que latem no portão talvez sentindo a sua presença aí fora, ou quem sabe alguma ausência aqui dentro. É preciso estender nos varais sob o sol ardente a minha camisola, até que ela ferva, endureça, recomece, até que ela esqueça.
Mas é preciso acima de tudo que você traga lençóis novos, porque é impossível aguentar o peso dos meus, não se pode lavar mancha assim viciada. Arrancar da cama e dobrar carinhosamente pelas pontas, trocar as fronhas, e enterrar tudo no jardim feito um pano morto, sagrado, transcendental, enterrar como se enterra o que já não pode viver mas não pode apodrecer a olhos vistos, sem dignidade, decoro, adoração.
E quando enfim eu me erguer dessa incriticável faxina, quando tirar meus joelhos da terra velando esses lençóis doídos, vou abrir a porta e, quem sabe, até sorrir. Pode entrar, Meu Novo Amor.

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