Vida minha vida
Entro no bar de outras épocas, é tão bom entrar num bar de outras
Entro no bar de outras épocas, é tão bom entrar num bar de outras
épocas, as mesas repletas de outras formas de mim. Mas a nostalgia
não é só minha, descubro que amanhã é a última noite desse bar
que tem tantas décadas, as capas enquadradas dos melhores discos
brasileiros, todas as capas do Chico Buarque, manchetes de época,
tudo tem papeizinhos brancos colados nas molduras com o nome de
alguém e o telefone, cada um que conseguiu garantir uma lembrança
do bar.
O bar de outras épocas. Eu vinha aqui com pessoas de outras épocas,
começa a me doer essa implosão do tempo em cima das próprias
ruínas. Os dois músicos não envelhecem, talvez porque cantam as
mesmas músicas, hoje há comoção em tudo (Vida minha vida olha o
que é que eu fiz), cruzo os olhos com um ex-namorado de uma amiga,
um homem que nos fez tão mal, ele canta com os braços pra cima,
abraça os músicos, está também comovido, sabemos os dois todas as
letras, que trágica é a afinidade.
Justo hoje, nesse bar, que acaba, justo hoje esse homem, eu e minha
amiga tão juntas, duas meninas, era preciso rasgar os vínculos,
enfraquecer (Verti minha vida nos cantos na pia na casa dos homens).
Quem sabe hoje ele mudou, já passaram catorze anos, não sei,
ninguém devolve aqueles anos que ele roubou de nós duas.
Eu poderia ter aparecido neste bar daqui a uma semana, um mês, um
ano, a porta fechada, uma loja de roupas, seria diferente de ter
aparecido hoje, estou de repente cúmplice das coisas todas que
acabam. O ex-namorado da minha amiga não me reconheceu, eu acho,
penso no colágeno que perdi. Minha mãe está fazendo 60 anos, ela
gostaria deste bar, desta noite, um bar de colágenos imemoriais.
Minha outra amiga envia no celular um estudo, um alerta, beber dá
câncer, sorrio para o meu copo, eu hoje cúmplice das coisas todas
que acabam. Um perigo estar sozinha no bar de outras épocas, que
está acabando, onde eu vinha com pessoas que acabaram, de outras
épocas. Se não conhecesse o ex-namorado terrível da minha amiga eu
sorriria agora para ele, dançaríamos, erraríamos, começaríamos
os próximos cinco anos mais apavorantes da minha vida (mas vida ali
quem sabe eu fui feliz), um perigo a qualquer de nós estar sozinho
no bar de outras épocas que está acabando.
Quando será que sabemos que um filho já pode ficar sozinho no
quarto brincando, não vai botar um brinquedo pequeno na boca, a
cabeça num saco plástico, o que foi que a minha mãe viu em mim e
soube que eu já podia ficar sozinha no quarto, o que eu fiz pra
conquistar isso, e depois quantas vezes mais, quantos anos, sozinha
no quarto.
O quarto de outras épocas. Minha amiga avisa da bebida que mata mas
é o bar que está aqui morrendo (Vida minha vida olha o que é que
eu fiz), que saudade difícil é esta, o bar de outras épocas, o
quarto com brinquedos que eu já não ponho na boca, então eu muito
sozinha com os brinquedos de várias épocas, o ex-namorado da minha
amiga, tão terrível, encantador, os mesmos braços abertos para o
céu, cantando as mesmas músicas, as pessoas de outras épocas,
pessoas que eram completamente para-sempre, cantando as mesmas
músicas no bar que a gente não sabia que um dia acabaria, porque a
gente não achava que nada acabasse (Arranca vida estufa veia e pulsa
pulsa pulsa pulsa pulsa mais). Quero mais.
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