segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Estrela



As duas máquinas de costura num tatatá dessincronizado, dois trens de carga a irritar os ouvidos o dia todo. A moça da máquina da esquerda pára a costura e tenta sintonizar o rádio de pilha, Vai começar, tenta avisar segurando entre os lábios dois alfinetes de cabeça azul. O homem do rádio começa uma história de terror, deve ser de terror porque a música de fundo lembra um castelo escuro com sombras suspeitas atrás das portas.
Margarida entre as duas máquinas tenta encolher a barriga, Ai, Janaína, assim você me espeta!, segura-se nos cabelos duros da moça que lhe prende alfinetes na cintura do vestido, Se apertar mais fica feio, Margarida. Pode apertar, aperta bem que esse pano fica uma beleza. O homem do rádio vai dizer o que está se movendo embaixo da cama mas a máquina de costura recomeça, um trem barulhento atropelando a história, estilhaços nos trilhos, O que foi que ele disse? Mas essa coisa não pára um segundo, não se pode ouvir o rádio?
Uma mulher aparece com duas sacolas, Queria que fizessem as barras. Mas só pra semana que vem, pode ser? Partiu sem responder, as sacolas abertas no chão, uma calça de listas laranjas se insinuando serpente pelo tapete, Ê gente sem educação. Anda, Janaína, vou atrasar, não posso atrasar por nada! Mas que raio de show é esse, Margarida? Mais um alfinete enrugando a cintura que ela afina em lufadas de ar, a cara ficando roxa, Aperta logo, anda! fui chamada, já disse, vão me pagar fortunas, a fama finalmente, mulherada, eu disse que o dia chegaria.
Uma senhora gorducha de chinelos se apóia no corrimão comendo uma mexerica, o cheiro cítrico atraindo os olhares, Dona Janete, dá um gominho pra mim? Dona Janete morde um gomo e puxa dos dentes para dar só a metade que Margarida engole com as sementes, Cuidado não manchar o vestido, menina! O homem do rádio grita apavorado, fala de morcegos, Não dá pra desligar a costura só um pouquitinho? Janaína tenta tirar o vestido de Margarida sem lhe arrancar os alfinetes, a moça nua escondendo os seios com uma mão e com a outra ajeitando a calcinha amarela que lhe penetrava as dobras, as meias grossas brancas acinzentando no chão sujo, Agora não vai parar nada que vai arrumar o meu vestido, atrasadíssima!
Dona Janete lhe enfia outro meio gomo na boca, Mas atrasada pra quê, mocinha? Já expliquei, um show todinho meu, canto e danço, uma hora e meia, ouviram? Uma hora e meia sem parar! Vão filmar e tudo, Seu Roberto disse que vão gravar CD, dá pra pregar mais firme esse botão de cima? Dona Janete senta na escada e abana o entrepernas com a saia florida, Mas então isso é coisa séria, é coisa de famoso? Famosíssimo! vocês que não me dão bola, fica essa barulheira da máquina mas hoje sou a estrela da noite, vou brilhar sozinha, vou ser mais um planeta no sistema solar, baby. E planeta agora brilha, Margarida?
Margarida examina as unhas com um esmalte perolado e depois examina os seios no espelho do canto, Você acha que cresceram muito? Demais, e quero ver essa barriga apertada no vestido! Ah Janaína, nem se nota, vai? Dona Janete levanta com dificuldade e estala as chinelas na direção da menina pelada, acaricia-lhe o ventre com a mão gelada de mexerica, Isso aqui tem o quê, quatro meses? Nem quatro, não, senhora, menos até. E o nome, já escolheu? Violeta, vai chamar violeta. Ai, mais que coisa mais cheia de flor que vai ser essa sua casa. E olhe que minha mãe chama Rosa. E seu pai, Seu Miosótis? As meninas da frente dão risada mas as de trás ficam olhando sérias, talvez porque não conheçam miosótis, ou porque o barulho da máquina e os morcegos macabros do rádio não lhes permitem participar das conversas, ou talvez porque Miosótis o nome do próprio pai.
Se for menino, Margarida, como é que vai fazer? Jacinto, jacinto é uma flor bonita, azulada. Não gosto de azul. Ah Margarida, azul é quase violeta! Janaína termina a cintura do vestido e lambe a ponta do dedo pra tirar da barra uma manchinha branca, vamos ver se vai fechar, com essa barriguinha! Já tenho até um bercinho roxo pra Violeta, sabia? o Miguel que arranjou lá na marcenaria, disse que ficou a tarde inteira pintando, fez umas florinhas pequenas no cantinho, precisa de ver que graça que ficou. E o Miguel sabe desse show? Não só sabe como vem me buscar aqui pra gente ir direto, disse que não me quer mais em pé dentro de ônibus sacolejando a menina na barriga, diz que essas coisas deixam o nenê meio biruta. Pois olha só, eu que não reclamava de um cuidado desses! Abaixa um pouco rádio, Luciana, não se escuta a conversa! Mas sabia que ele não queria que eu fosse? imagina só, não perco uma chance dessas por nada no mundo, meu nome e minha foto no cartaz, vocês não viram nos postes? Eu bem que vi um ali perto da padaria, mas pensei que fosse alguém parecido! Euzinha. essa ninguém me tira.
Janaína sobe o zíper do vestido aos trancos e depois sorri por cima do ombro de Margarida, mirando-lhe os olhos enormes no espelho, Você está a coisa mais linda que eu já vi. Margarida se olha ajeitando devagar o cabelo, um sorriso estático, Fiquei bonitona mesmo... Fecha os olhos numa tontura que disfarça apoiando no pau de uma vassoura, Janaína lhe segura o braço já principiando um escândalo mas Margarida lhe sussurra, os olhos molhados de um suor frio que lhe escorria da testa: quieta, pelo amor de deus.
Janaína olha para trás e vê as moças com suas máquinas, rádios e mexericas, uma delas lixa as unhas e discorda indignada do que diz o horóscopo do jornal. Sobe a mão por dentro do vestido de Margarida e um choro instantâneo lhe escorre pesado dos olhinhos amarelos de tabaco e fome, Muito sangue, Margarida, a Violeta indo embora! Margarida se apóia na parede do canto e pede de novo silêncio, os olhos dilatados ficando mais gigantes de pânico, É o Miguel buzinando, você não diga nada. Você vai sangrar a noite inteira! Aperta a própria barriga escondendo a cólica num sorriso doído. Enxuga o sangue num retalho caído no chão e sai tonteando num rebolado exagerado, as meninas em coro: Tchau, Margarida! muito sucesso pra você! Ainda acena de volta, o sorriso imóvel. No final do olhar se demora em Janaína, um brilho antigo se apagando nos olhos. Um brilho de estrela.

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