quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Adequa



A gente ouve que duas pessoas se casam pra viver juntas num apartamentozinho e todo o mundo foge aos pares para os seus cantos. Eles dizem que é assim o amor, e a gente se adequa. Eles dizem que o certo é trabalhar oito horas por dia e passar mais três no trânsito, eles dizem que é normal escoar quase metade da vida em papéis insossos que a gente ensaia na juventude e perpetua até os ossos doerem de exaustão; eles dizem, e a gente se adequa. A gente acorda um dia e se percebe numa cavalaria desgovernada de motores e latas, respirando fumaça e correndo perigo, mas a gente se adequa − fica até clichê reclamar disso. Então eles dizem que adequar é verbo defectivo, não pode conjugar em quase pessoa nenhuma, e ainda assim a gente dá um jeito e com muito custo continua se adequando.
Eles dizem que não é certo perder a cabeça, virar a mesa, rodar a baiana, descer do salto. Não deixam passar duas semanas no quarto suando entre livros e pipocas de microondas, porque não é assim, e vão adequando a gente em doses diárias de neurolépticos psicotrópicos e de repente no diagnóstico vem escrito neurastênico e não adianta dizer que a gente não se adequa, não adianta dizer que está errado.
Eles contratam dez incompetentes e enfiam em ternos quentes de muito fino trato e gravatas academissíssimas e um microfone disfônico pra ensinar como é que são as leis, e invariavelmente a gente se adequa. O português se revolta, a gramática se contorce tentando avisar que há vida demais lá fora, que dá pra correr de ponta-cabeça, dá pra trepar sem a dança do acasalamento, existe música além das mesmas músicas, deve existir alguma coisa embaixo desse tapete pesado e poeirento que enfiaram sob os nossos pés, sob os nossos passos.
Mas nós, nós nos adequamos.

9 comentários:

lucas fábio disse...

Fale por si mesma. Jamais adequar-me-ei!

lucas fábio disse...

Esse post e sua desceção de lenha no INDAC me deixaram baixo-astral! Não quero mais essas crises. Tava feliz com a idéia de ter coisinhas satisfatórias ocupando todo o meu tempo.

Mari Carrara disse...

frase inadequada -- o advérbio atrai o pronome... cadê todo o mundo hein?

Anônimo disse...

ai que moça mais carente do mundo !!!
Estou sempre aqui sim.... mas nao tenho inteligencia pra comentar ahaha... (ou saco, como preferir)... beijao

Carol M. disse...

Ei, Mari, muito bom esse texto! Aliás, geralmente gosto muito dos seus textos.

Beijos!

lucas fábio disse...

Meu amor! Meu blog já tem duas postagens posteriores ao seu.

Tá... são bem menores que os seus, mas o esforço e o tempo são equivalentes..

Você deixou a tecnologia queimar o seu passado, agora tem que repor! Eu gosto tanto da Mari escritora...

Brisa disse...

Defectiva ou não, essa "necessidade" de ter que se adequar me dá calafrios... e cada dia mais eu penso que, bem, talvez eu não sirva mesmo pra isso, pra esse "da cama pro banho, do banho pra sala"... e a Sanfran tem uma capacidade imensa de reunir pessoas assim!
Adequar, verbinho engraçado...

Vitória disse...

Mari!
Conheci seu blog hoje, via blog da Marina. Bom saber que tenho onde ler o que você está escrevendo agora (e não tenho que esperar o próximo lançamento...).
Sobre o adequar-se, acho que não é tão simples assim. Acho que para a nossa geração nem isso é fácil, viu? Antigamente era possível fazer o mínimo, sobreviver e ter tempo para outros pequenos prazeres. Agora parece que é tudo 8 ou 80 e... como tenho certeza que os 80 da adequação eu não topo, seguimos tentando nos 8. Aposto que dá! Tenho certeza que a sua aposta também é gauche, mas vai dar certo (no fim, teremos mais histórias para contar e... acho que é isso que importa, não?). Responda rápido: você prefere um destino humano ou uma grande obra? Ambos requerem dedicação quase-exclusiva. Taí uma decisão difícil de tomar (muito mais do que adequar-se ou não, porque essa, Mari, já escolhemos). Adoro você! Beijo grande (espero que um dia você ache esse meu comentário!).
Ester

Anônimo disse...

Aprendi muito