Joana: Pois bem, você escuta as contas que eu vou lhe fazer: te conheci moleque, frouxo, perna bamba, barba rala, calça larga, bolso sem fundo Não sabia nada de mulher nem de samba e tinha um puto dum medo de olhar o mundo As marcas do homem, uma a uma, Jasão, tu tirou todas de mim. O primeiro prato, o primeiro aplauso, a primeira inspiração, a primeira gravata, o primeiro sapato de duas cores, lembra? O primeiro cigarro, a primeira bebedeira, o primeiro filho, o primeiro violão, o primeiro sarro, o primeiro refrão e o primeiro estribilho. Te dei cada sinal do teu temperamento. Te dei matéria prima para o teu tutano. E mesmo essa ambição que, neste momento se volta contra mim, eu te dei, por engano. Fui eu, Jasão. Você não se encontrou na rua. Você andava tonto quando eu te encontrei. Fabriquei energia que não era tua para iluminar uma estrada que eu te apontei. E foi assim, enfim, que eu vi nascer do nada uma alma ansiosa, faminta, buliçosa, uma alma de homem. Enquanto eu, enciumada dessa explosão, ao mesmo tempo, eu, vaidosa, orgulhosa de ti, Jasão, era feliz, eu era feliz, Jasão, feliz e iludida, porque o que eu não imaginava, quando fiz dos meus dez anos a mais uma sobrevida pra completar a vida que você não tinha é que estava desperdiçando o meu alento, estava vestindo um boneco de farinha. Assim que bateu o primeiro pé-de-vento, assim que despontou um segundo horizonte, lá se foi meu homem-orgulho, minha obra completa, lá se foi (...)” (CHICO BUARQUE, Gota d`água, 1997)
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