A janela aberta e o calor da noite parece que está em todo lugar, ela enxuga a testa na manga da camisola, Virgem santíssima, essa noite de pecado e eu aqui no cubo, minha casa é um cubinho, já cansei de dizer isso. Enche o cabelo de grampos até afastar da nuca os fiozitos molhados, a mão em leque num abano mais charmoso que eficaz, cotovelos no parapeito.
A escuridão quieta de apitos distantes dos vigias pelos becos, O sábado é mudo só nessa rua, nesse cubo. Apoia a sobrancelha na grade da janela, Seria pior se além de cubo fosse cadeia, virgem santíssima, não gosto nem de pensar.
A taça de vinho branco desgelando sobre a pilha de livros, e a revista aberta no modelo roxo, laço na cintura. Volta à mesa, a máquina abarrotada de retalhos, Talvez se eu reforçasse um pouco mais no decote. O pé descalço no pedal e o barulho da agulha rápida no traçado preciso, alfinetes na boca e o olhos tensos no desenho, qualquer deslize e haja remendos. A mão alternando entre o cigarro, o vinho e o tecido entortando sob as engrenagens.
O quarto um cubo avermelhado de abajures, procura nas gavetas o óleo para o cabeçote, Desse jeito não termino nunca. Dedilha as bordas do decote e folheia depressa a revista, Ponto em trança... talvez uma flor preta com esses restos aqui, vai ficar uma delícia. O cubo cada vez mais quente, goladas de vinho e o melado escorrendo no queixo, limpa com o dorso da mão. Cigarro, janela, abano, vinho, pedal. O silêncio e a intermitência das correias, polias, motores, a agulha na obstinação frenética sobre o pano roxo.
Esse lugarzinho é um cubo desses japoneses, é japonês, não é? O quarto vazio mas ela interrompe a costura para falar, o repentino sossego de todo um bairro morto, Aqueles cubos coloridos que tem de retorcer e trocar os lados até ficar da mesma cor, meus retalhos coloridos pelo chão, essas paredes que de repente recuam, apertam, uma sufocação, virgem santíssima. Deixa o silêncio um segundo e limpa o sono dos olhos num aperto doído de indicadores. A máquina cortando a noite em mini-britadeiras prateadas, o ziguezague brilhante embaçando a vista, Daqui a pouco algum velho sonolento me enfia o nariz pelas grades, o silêncio, o silêncio! um cubo deve ter vizinhos em cada um dos seis lados, virgem!
Puxa com cuidado o vestido e vai colhendo os restos de linha, escova as pregas e faz o teste do zíper num cuidado improvável, Duvido que você resista a uma abordagem das violentas... imagina o vexame você travando justo numa hora dessas. Tira a camisola sem conferir a janela e entra na roupa que lhe sobra na cintura, nos seios, pende sobre os ombros em ares de arlequim. Aperta os seios no espelho e faz um beicinho olhando fundo nos próprios olhos, a barra da saia quase nas canelas, Essa flor a gente prende aqui, vai ficar deslumbrante.
Desce do vestido e pendura na maçaneta do armário, uma sombra feminina a espreitar-lhe o sono, Se ventasse era capaz até de você dançar nesse cabide. Deita num salto, os últimos goles do vinho, as paredes trocando as cores, retorcendo o cubo no encaixe impossível, Vai ficar bom nela, você vai ver, com aquele peitão você vai ser o mais bonito de toda a festa, talvez ela me agradeça com um beijo rápido. Levanta de súbito para ajustar a flor no alfinete, Pode ser que peça ajuda pra vestir, e você não vai me deixar passar vergonha com esse zíper vagabundo, certo? muito bem. depois ela vai dizer que era exatamente o que ela estava pensando e vai procurar na carteira o resto do dinheiro e eu vou dizer que não, que você é um presente, você é especial, e vou terminar de subir o zíper, e ajeitar a flor, e você vai me olhar com essa carinha de cumplicidade e, se eu tiver sorte, com vento ou sem vento nós vamos dançar feito loucos, eu e você, cada vez mais cheios do perfume doce, e rodar e rodar e até eu tombar sobre você, o decote, a flor entrando na minha boca.
Faz um carinho lento em volta da flor, e volta para a cama, séria. Fixa de novo os olhos no vestido, Agora dorme.
Nenhum comentário:
Postar um comentário