Quero uma cabeleira grossa e longa pra pentear com força e sentir os fios eletrizados na nuca. Quero uma poltrona daquelas de couros e engrenagens e um livro digno de uma dessas poltronas, e quero que os olhos não ressequem durante o livro que o Marcos me deu, um livro que é digno apenas desta cadeira de palhas soltas. Quero que meu filho fique inteligente de repente.
Quero uma cozinha sem móveis azuis, azul-bebê, o Marquinhos dizia azul-calcinha.
Quero rosquinhas secas que eu vou molhar devagar no café com leite, silêncio. Quero pingar o adoçante a cinco palmos da xícara para ver se acerto as gotas, caem pesadas em ondas de café, quero os óculos para ver as ondas e as horas: há alguns dias estou esperando uma carta anônima.
Quero que o Marcos pare de rir aquele riso ridículo, e me telefone menos vezes na semana, e deixe o emprego indigno que ele transforma em piada à mesa do jantar. Quero muito que ele fique, de repente, inteligente. Quero sentar na minha sala e abrir a janela e deixar qualquer coisa de luz entrar, qualquer coisa de calor nos pés que estico na fresta de sol sobre o carpete, os acarozinhos dançando no ar. Quero encontrar na estante um livro erótico, e quem sabe o sol e qualquer coisa de quente nos pés e nas coxas azuladas de veiazinhas, um mapa da vida na pele escamosa que eu evito no espelho, quero ter coragem de olhar para mim. Quero alongar os dedos doídos e as costas até esticar e colocar no lugar a peça que está solta, consertar tudo num encaixe instantâneo, esquecer o corpo e sua consistência amolecida de travesseiro dormido, voar num balão pendurada pela cabeça até esticar o pescoço feito Alice na maravilha ortopédica de um alongamento mágico.
Quero um país numa toca de coelho. Quero alguém com quem jogar baralho, quero baralhos que falam.
Quero o Américo aqui, mordendo sem força a maçã que ele deixava na cabeceira. O Américo que saiu uma vez para comprar cigarros, e nunca mais parou. Quero o Américo com os dois pulmões aqui na cadeira de palha que ele revestia de almofadas para facilitar a tosse, o Américo com a risada rouca, a careca cheia de xampu e as unhas compridas que ele pintava de vermelho pra provocar o Marcos. O Américo num carinho trêmulo entre tosses e sonhos que ele narrava aos detalhes durante a maçã matinal.
Quero que a minha neta apareça, apenas a minha neta, não quero os meninos. Mas quero que ela chegue sem a cara humilhada de criança feia, quero que chegue oito quilos mais magra e com um vestido verde escuro, quero que me fale de um namorado, pergunte da minha formatura e mostre uma tatuagem no ombro. Quero que tire os sapatos e vá até a vitrola rodar um tropicalismo qualquer e saltitar me segurando pelas mãos.
Quero receber uma carta anônima que diga que vou morrer tragicamente, no fim de semana, um crime qualquer de noticiário. Quero virar literatura. Queria ter morrido antes, o Américo entrando com o jornal e o leite e o meu corpo quase bonito ao pé da escada.
Quero que o criminoso seja um rapaz sem jeito, finjo de morta e ele me carrega no colo escada acima feito noiva virgem. Quero que encha a banheira e ajeite meu corpo de leve na água, quero sentir os dedos dele passando devagar entre as minhas dobras, no contorno das rugas, no cálculo preciso das machadadas. Quero um esquartejamento silencioso e estético – quero virar literatura –, e depois quero que o moço limpe tudo antes do Marcos chegar com as crianças.
Quero que a minha neta apareça de capa vermelha com doces na cesta e encontre na cama um lobo jovem que acabe de vez com a infância tardia. Um lobo rapaz que já saiba tudo o que eu sei, que tenha me devorado aos pedaços na banheira, que abra a boca enorme e não deixe a minha menina escapar por mais nenhum dia.
Quero uma cozinha sem móveis azuis, azul-bebê, o Marquinhos dizia azul-calcinha.
Quero rosquinhas secas que eu vou molhar devagar no café com leite, silêncio. Quero pingar o adoçante a cinco palmos da xícara para ver se acerto as gotas, caem pesadas em ondas de café, quero os óculos para ver as ondas e as horas: há alguns dias estou esperando uma carta anônima.
Quero que o Marcos pare de rir aquele riso ridículo, e me telefone menos vezes na semana, e deixe o emprego indigno que ele transforma em piada à mesa do jantar. Quero muito que ele fique, de repente, inteligente. Quero sentar na minha sala e abrir a janela e deixar qualquer coisa de luz entrar, qualquer coisa de calor nos pés que estico na fresta de sol sobre o carpete, os acarozinhos dançando no ar. Quero encontrar na estante um livro erótico, e quem sabe o sol e qualquer coisa de quente nos pés e nas coxas azuladas de veiazinhas, um mapa da vida na pele escamosa que eu evito no espelho, quero ter coragem de olhar para mim. Quero alongar os dedos doídos e as costas até esticar e colocar no lugar a peça que está solta, consertar tudo num encaixe instantâneo, esquecer o corpo e sua consistência amolecida de travesseiro dormido, voar num balão pendurada pela cabeça até esticar o pescoço feito Alice na maravilha ortopédica de um alongamento mágico.
Quero um país numa toca de coelho. Quero alguém com quem jogar baralho, quero baralhos que falam.
Quero o Américo aqui, mordendo sem força a maçã que ele deixava na cabeceira. O Américo que saiu uma vez para comprar cigarros, e nunca mais parou. Quero o Américo com os dois pulmões aqui na cadeira de palha que ele revestia de almofadas para facilitar a tosse, o Américo com a risada rouca, a careca cheia de xampu e as unhas compridas que ele pintava de vermelho pra provocar o Marcos. O Américo num carinho trêmulo entre tosses e sonhos que ele narrava aos detalhes durante a maçã matinal.
Quero que a minha neta apareça, apenas a minha neta, não quero os meninos. Mas quero que ela chegue sem a cara humilhada de criança feia, quero que chegue oito quilos mais magra e com um vestido verde escuro, quero que me fale de um namorado, pergunte da minha formatura e mostre uma tatuagem no ombro. Quero que tire os sapatos e vá até a vitrola rodar um tropicalismo qualquer e saltitar me segurando pelas mãos.
Quero receber uma carta anônima que diga que vou morrer tragicamente, no fim de semana, um crime qualquer de noticiário. Quero virar literatura. Queria ter morrido antes, o Américo entrando com o jornal e o leite e o meu corpo quase bonito ao pé da escada.
Quero que o criminoso seja um rapaz sem jeito, finjo de morta e ele me carrega no colo escada acima feito noiva virgem. Quero que encha a banheira e ajeite meu corpo de leve na água, quero sentir os dedos dele passando devagar entre as minhas dobras, no contorno das rugas, no cálculo preciso das machadadas. Quero um esquartejamento silencioso e estético – quero virar literatura –, e depois quero que o moço limpe tudo antes do Marcos chegar com as crianças.
Quero que a minha neta apareça de capa vermelha com doces na cesta e encontre na cama um lobo jovem que acabe de vez com a infância tardia. Um lobo rapaz que já saiba tudo o que eu sei, que tenha me devorado aos pedaços na banheira, que abra a boca enorme e não deixe a minha menina escapar por mais nenhum dia.
2 comentários:
resolvi escrever sobre influência hoje, procurei no google e achei teu blog, li um texto velho, sobre lucas, lulu. belo texto! aliás, muito bons teus textos que eu consegui ler, parabéns!!
Esse (vi na SanFran) é ótimo. Parece que vai cansar, mas não cansa.
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