segunda-feira, 31 de março de 2014

Matriarcal


A janela aberta e dois ventiladores bamboleantes, a ferrugem arranhando num ventinho quase sem movimento, Pode vento que não se mexe, mãe? Alena bate no chão um boneco verde, entre o losango das perninhas molhadas de suor e carpete. Bem baixinho, faz a voz do bicho que conversa tristonho com uma tampa de caneta.
Mãe, pode uma dinossaura ter um filho canetinha? Estela suspira um monossílabo, virando a poltrona de leve na direção de um dos ventos estáticos, Não é possível que não se faça uma porcaria de um vento! Pende a cabeça para trás e estica os braços numa cruz úmida, pontinhos de pó misturando na testa. Passa o dorso da mão displicente na cabeça da menina. Queria saber, mãezinha, pode um bicho desses ter pra filhote uma canetinha...
Lá fora o silêncio do calor já abafou todas as vozes, até a feira vende silenciosa as suas frutas derretidas, Nesse calor ninguém faz filhote, não, Alena, nem dinossauro nem caneta. A menina aperta o plástico do boneco e olha os olhos estrábicos de ternura, a lingüeta do bicho pendendo para o lado num charme perene, Deve poder sim, mãe, é só o pai ser bem caneta, pode nascer uma caneta... verde, talvez...
Estela alcança as chinelas com as pontas dos pés sem se mover da cruz, Vamos virar bolinhas de sagu nessa fervura. Alena faz o boneco escalar devagar a poltrona até chegar à cabeça pendente da mãe, os olhos envesgam de ponta-cabeça diante da linguinha marota do dinossauro, Por que você não leva esse bicho pra comprar umas laranjas aí na frente, ahn?
Alena senta de repente no chão, encosta nas costas da poltrona, a cabecinha encaixada embaixo da cabeça da mãe, Meu pai é como, mãe? eu pareço mais com ele ou com você? Estela desfaz a cruz desenrolando o dorso, a cabeça doída da peripécia. Afasta os cabelos da nuca, abana, sopra por dentro do vestido, Por que você pareceria o pai, Alena? criança não tem nada que ver com pai, não. pai é coisa que inventaram, você não tem mais idade pra acreditar nessas coisas.
Alena levanta e rasteja no tapete quente até a janela. Contempla quieta a lentidão do sol sobre as gentes passantes, Mas ninguém faz filhote sozinho, né... Estela respira num enfado, ajeitando a coluna na poltrona, E você não está vendo que você inteirinha foi eu que fiz sozinha, menina? ...vem aqui. Alena olha a mãe e afasta a cabeleira dos olhinhos sérios. Corre de repente num salto, cai num abraço suarento que ela aperta esmagando o dinossauro entre as barrigas. Você vai aprender na escola, Leninha. Estela ajeita a menina no colo em posição de estudos, as perninhas imóveis de atenção. Antes ia tudo bem, mas um dia eles inventaram que os filhos eram deles, amarraram a gente em casa pra não acontecer filho de outro, e ficaram aí, mandando em vocês, enchendo a vida dessas regras deles. tudo mentiras, Aleninha, tudo umas mentiras.
Alena ilumina o sorriso confuso, acomoda a cabeça no colo quente. Estela vai acumulando devagar os cabelos da menina num chumaço molhado, procura alguma coisa pra amarrar o penteado, Fui eu que fiz você, completinha.
Alena balança as perninhas, abraça o dinossauro num consolo sincero, Então não tem jeito de nascer uma canetinha.

Nenhum comentário: