segunda-feira, 31 de março de 2014

Núpcias (obs: por dificuldades na configuração, os próximos 13 textos são antigos)

A gorda com o hálito de gengibre tenta encaixar o fecho do colar de pérolas, baforadas no meu pescoço reclamando dos óculos, precisa dos óculos. Um homem com farelos de pão na barbicha passa uma base em espalmadas violentas no meu rosto, os primeiros golpes do casamento, talvez. A luminária na minha frente está me dando calor, películas de suor, ele diz películas de suor me enxugando com algodões e virando a cabeça da luminária de modo que o foco da luz no teto e não na minha cara. A luminária parecendo agora uma bailarina num gesto final, uma mãe em preces aos céus, um homem agonizando de joelhos com o pescoço tombado para trás, a luminária uma luminária apenas e eu apenas eu nesse vestido que não mereço.
Uma moça pequena me sorri e pede licença para prender a coroa nos meus cabelos, seis horas fazendo esses cachos e depois sei lá desses cachos, eternizados numas fotos e também o que são seis horas perto da eternidade das fotos. No quarto da minha avó uma foto em tons de cinza e naquela época sem cachos, o cabelo uma massa só sem a obscenidade dos fios. Agora eu num sorriso de promessas, a mão suavemente apoiada no corrimão de modo a destacar a luva, nos lábios um quê de trêmulos e os olhos se não brilharem de paixão eles podem depois arrumar no computador, fica bonito. Posso pedir pra deixarem mais verdes, eternamente verdes.
Seis horas com essas revistas baratas, posso mexer nas revistas porque não preciso fazer as unhas, no inverno ficam chiques as luvas, brancas acetinadas até um dedinho acima do cotovelo. Uma mão no corrimão e a outra quem sabe no ombro do noivo, ele com o sorriso mais firme, nada de um quê de trêmulos os lábios nem brilho nos olhos, a sobriedade da decisão sem deslumbramentos. O fraque cinza ainda sem a mancha de vinho que os colegas deveriam derramar sem querer no meio da baderna, às gargalhadas. O fraque ainda impecável e o fotógrafo talvez flagrasse um olhar espontâneo e uma risada minha, uma piada dele, quem sabe sobre uma tia digníssima que está bêbada. Talvez um flash no meio da minha careta de birra quando ele diz que vai dormir no avião o caminho todo, e me aperta o nariz na ponta dos dedos, Bobinha, e de repente a luz do flash e rimos de novo, outra foto. Mas o fotógrafo apenas A mão no corrimão, por favor, e a outra mão na taça, não, não, a outra mão no ombro dele. Sorriso!
Uma noiva abandonada no altar, a gorda diz uma expressão em francês quando consegue colocar as pérolas, terminam minha maquiagem e a mocinha pequena me traz até o salão vazio e eu já sei que abandonada no altar. A dona da loja me ajeita o vestido na cintura e confere as informações, perigoso o endereço sair errado. Quer no canto direito, pode colocar o preço do aluguel também, é sempre bom o preço para as pessoas não se iludirem, coisa mais triste as noivas iludidas. Chegam na loja com a revista nas mãos e talvez o meu sorriso trêmulo e os meus olhos magnificamente verdes e é isso que elas querem mas de repente o preço alto demais. Melhor um preço discreto ao lado dos meus sapatos, outro preço ao lado do vestido. Minha foto não num álbum de veludo vermelho, minha foto num catálogo, as madrinhas não no altar mas nas últimas folhas com modelos que disfarçam os quadris, um cupom de desconto válido às segundas-feiras. Às vezes chegam na loja com a revista amassada, pequenas correções à caneta no meu vestido, tem como diminuir o decote? Olho meu noivo de hoje e ele reclama do calor e pergunta meu nome. Mão no corrimão, por favor. Sorriso.

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