quinta-feira, 6 de março de 2014

Se você fosse sincera




Fui desviar o olho pro céu e notei a velha lá em cima no terraço. As pessoas continuaram passando, esbarrando, cornetas, confetes, espumas, a bateria seguindo na frente desencontrada, as mesmas marchinhas já desde uns quinhentos metros, Se você fosse sincera ô ô ô ô, a velha tão branca com o olho franzindo no sol, o calor me doendo na cabeça, no ombro, e toda a gente ainda me empurrando, cantando, os carrinhos de cerveja pedindo espaço, a pele da velha com bolhas de outros sóis em outros carnavais. Apoiei num carro estacionado e encolhi os pés pra que menos pessoas pisassem, e não é isso o Carnaval, encolher os pés pra que ninguém pise?
Embaixo do terraço da velha o portão de um ferro avermelhado protegendo uma garagem em que ninguém entrava há pelo menos uma década, a casa tão grande e majestosa sumindo numa decadência de rainha, a velha num pijama azedo às três da tarde olhando atentamente um carnaval que escorre sem talento embaixo do terraço. O joelho dela doendo a cada pulo das mulheres na rua.
Do lado da velha, segurando de leve o braço murcho, a preta da casa, lá nos seus sessenta e cinco anos, muito forte, a cara triste, olhando a festa num enfado evidente, sussurrou algo no ouvido da patroa, quem sabe algo como Vamos Dona Eulália Já Está Bom De Sol Por Hoje, e dona Eulália sem mover o braço nem os olhos e apenas permanecendo onde está porque é assim que ela vem dando as ordens ultimamente, ainda mais no meio desse barulho.
Sinto vergonha de estar aqui, nem tanto de Dona Eulália que embora doam as bolhas e os joelhos olha o carnaval passar sem querer voltar pro quarto, do alto de seu terraço descascado de azulejos quebrados e plantas mortas, mas da preta da casa, que olha a rua sem inveja nem saudade, estudando a gente que passa com o canto do lábio numa torsão de desgosto, o cenho contraído no estranhamento alienígena a se perguntar talvez por que tanta alegria num feriado só, por que tanto pulo nessa música que já vai distante e esses pés sambando tão determinados e encharcados de sarjeta cachaça e groselha. Estou com vergonha é diante da preta que talvez nos olhe como aos netos de Dona Eulália que não a visitam, às vezes nem para fazer o pagamento da governanta que está quase envelhecendo junto, pelo menos a menina dia desses veio lhe dar uma televisão antiga dessas pesadas, um namorado esquisito ajudou a colocar no quartinho dos fundos, Mas não assista muito alto senão você não escuta a vovó.
A casa parece comprida e deve ter aos menos cinco quartos vazios acinzentando de umidade, mas a preta da casa continua nos fundos, em algumas manhãs até pega chuva entre o quarto e a cozinha, ela que chegou na casa antes dos netos, mesmo dos filhos, nem tinha nome direito e até hoje também o nome que deram nunca lhe valeu nada demais.
E agora a multidão que segue o bloco, mobilizada por uma compaixão contagiante, começa a acenar à velha e à preta, gestos convidativos como se a elas só faltasse o estímulo certo, como se a artrose a engessar as juntas fosse um capricho, um jogo de charme, e eles chamam mais, sorrisos, saltos, a velha esboça um sorriso, a preta cochicha qualquer coisa, talvez sobre a água que ficou fervendo para o escalda-pés.
Um grupo de cinco jovens estanca o cortejo embaixo do terraço fazendo mais sinais para as velhas, um deles ainda levanta uma garrafa de cachaça, gentil oferta que não chega ao deboche porque eles são o rosto da bondade nas suas sandálias coloridas, cabelos grudados na geleia amistosa dos cachos permanentes, o sorriso ingênuo ampliando o convite à folia, até seguirem na dança como se a velha não existisse, porque de fato já quase não existe, nem a preta da casa.
E as duas ainda ouvem ao longe a marcha distorcida dos alto-falantes e ladeiras, e a velha sorri talvez pensando nas tradições que não morrem e a preta puxa de novo o braço da velha na direção da casa, quem sabe pensando nas coisas que simplesmente nunca mudam, Mas como a cor não pega mulata, mulata eu quero seu amor.




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