Fui desviar o olho pro céu e
notei a velha lá em cima no terraço. As pessoas continuaram passando,
esbarrando, cornetas, confetes, espumas, a bateria seguindo na frente
desencontrada, as mesmas marchinhas já desde uns quinhentos metros, Se você fosse sincera ô ô ô ô, a velha tão
branca com o olho franzindo no sol, o calor me doendo na cabeça, no ombro, e toda
a gente ainda me empurrando, cantando, os carrinhos de cerveja pedindo espaço, a
pele da velha com bolhas de outros sóis em outros carnavais. Apoiei num carro
estacionado e encolhi os pés pra que menos pessoas pisassem, e não é isso o Carnaval,
encolher os pés pra que ninguém pise?
Embaixo do terraço da velha o
portão de um ferro avermelhado protegendo uma garagem em que ninguém entrava há
pelo menos uma década, a casa tão grande e majestosa sumindo numa decadência de
rainha, a velha num pijama azedo às três da tarde olhando atentamente um
carnaval que escorre sem talento embaixo do terraço. O joelho dela doendo a
cada pulo das mulheres na rua.
Do lado da velha, segurando de
leve o braço murcho, a preta da casa, lá nos seus sessenta e cinco anos, muito
forte, a cara triste, olhando a festa num enfado evidente, sussurrou algo no
ouvido da patroa, quem sabe algo como Vamos Dona Eulália Já Está Bom De Sol Por
Hoje, e dona Eulália sem mover o braço nem os olhos e apenas permanecendo onde
está porque é assim que ela vem dando as ordens ultimamente, ainda mais no meio
desse barulho.
Sinto vergonha de estar aqui, nem
tanto de Dona Eulália que embora doam as bolhas e os joelhos olha o carnaval
passar sem querer voltar pro quarto, do alto de seu terraço descascado de
azulejos quebrados e plantas mortas, mas da preta da casa, que olha a rua sem
inveja nem saudade, estudando a gente que passa com o canto do lábio numa
torsão de desgosto, o cenho contraído no estranhamento alienígena a se
perguntar talvez por que tanta alegria num feriado só, por que tanto pulo nessa
música que já vai distante e esses pés sambando tão determinados e encharcados de
sarjeta cachaça e groselha. Estou com vergonha é diante da preta que talvez nos
olhe como aos netos de Dona Eulália que não a visitam, às vezes nem para fazer
o pagamento da governanta que está quase envelhecendo junto, pelo menos a menina
dia desses veio lhe dar uma televisão antiga dessas pesadas, um namorado
esquisito ajudou a colocar no quartinho dos fundos, Mas não assista muito alto
senão você não escuta a vovó.
A casa parece comprida e deve ter
aos menos cinco quartos vazios acinzentando de umidade, mas a preta da casa
continua nos fundos, em algumas manhãs até pega chuva entre o quarto e a
cozinha, ela que chegou na casa antes dos netos, mesmo dos filhos, nem tinha
nome direito e até hoje também o nome que deram nunca lhe valeu nada demais.
E agora a multidão que segue o bloco,
mobilizada por uma compaixão contagiante, começa a acenar à velha e à
preta, gestos convidativos como se a elas só faltasse o estímulo certo, como se
a artrose a engessar as juntas fosse um capricho, um jogo de charme, e eles
chamam mais, sorrisos, saltos, a velha esboça um sorriso, a preta cochicha
qualquer coisa, talvez sobre a água que ficou fervendo para o escalda-pés.
Um grupo de cinco jovens estanca
o cortejo embaixo do terraço fazendo mais sinais para as velhas, um deles ainda
levanta uma garrafa de cachaça, gentil oferta que não chega ao deboche porque
eles são o rosto da bondade nas suas sandálias coloridas, cabelos grudados na
geleia amistosa dos cachos permanentes, o sorriso ingênuo ampliando o convite à
folia, até seguirem na dança como se a velha não existisse, porque de fato já
quase não existe, nem a preta da casa.
E as duas ainda ouvem ao longe a marcha
distorcida dos alto-falantes e ladeiras, e a velha sorri talvez pensando nas
tradições que não morrem e a preta puxa de novo o braço da velha na direção da
casa, quem sabe pensando nas coisas que simplesmente nunca mudam, Mas como a
cor não pega mulata, mulata eu quero seu amor.
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