Quero chegar de novo atrasada, o Emílio esperando ansioso a troca de turno, quero ver que mais uma vogal do letreiro queimou, a outra piscando na intermitência rouge das ambulâncias, das polícias, das espeluncas. Quero esse lugar apagando aos poucos, o nome óbvio sumindo, só a sombra das letras grudentas da fumaça oleosa dos escapamentos.
Quero minha televisão minúscula azulando o programa do Jô no volume baixinho que não incomoda. Quero que o primeiro casal chegue discutindo qualquer coisa sobre uma festa, bêbados, ela mais do que ele, brigando porque ele guardou salgadinhos no bolso da jaqueta. Quero que entrem sem boa-noite e sem perguntas, passo a chave pelo vidro e recebo o RG rasgado e rio sozinha da vesguice da foto. Conferem o valor na plaquinha torta atrás da samabaia, dividem.
Quero encostar na cadeira giratória e esquentar o pé gelado na mantinha que o Emílio deixa pra mim. Na verdade quero que os homens hoje fiquem todos nos seus cantos, caídos, quero que sumam em tragadas, garrafadas, tacos de sinuca, quero que durmam gordos atrás dos óculos, dos livros e de repente um coro agudo por essas escadas, quero duas mocinhas pedindo uma suíte com banheira, vou sorrir – estamos lotados – e elas esperam na saleta.
Quero que encostem os narizes, os cílios, misturem os cabelos, os cachos, os brincos. Quero risos e elogios que não consigo ouvir. Quero escutar só as risadas até silenciarem os gritos asmáticos daqueles sebentos, palavrões pelos corredores.
Quero anunciar o quarto limpo, espalhar pétalas de rosas pela cama. Quero que peguem a chave da minha mão num sorriso de pura gratidão e corram saltitantes pela escada, câmera lenta nos sapatinhos barulhentos. Quero que interfonem pedindo um suco de morangos que vou picar eu mesma, o liquidificador em vez da tevê na tomada da recepção. Depois quero que peçam mousse, chantili, leite condensado.
Quero que peçam coisas impossíveis, pilhas, livros, vestidos, quero que peçam festas, filhos, amigos, filmes, quero que peçam e eu vou dizendo pois-não e vou levando até que me puxem pela mão devagar e me convidem, quero que me mostrem o quarto, a vida, a paixão e me encostem os narizes, os cílios, misturem os cabelos nos meus cachos crespos, os brincos. Quero as risadas todas comigo, vão me rodar contentes, contar histórias de bebedeiras, maluquices, quero sentar tímida na cama e cantar baixinho.
Quero que elas queimem uma por uma as luzes do letreiro e fechem as portas dos quartos desertos e tragam aos poucos um a um cada prato da cozinha, quero enfiar o dedo em todos os bolos baratos, lamber os pudins. Quero rir com elas das azeitonas e cuspir os caroços com força pela janela, quero roubar as cerejas solitárias de todas as taças mal lavadas. Quero que elas apaguem de vez todas as luzes e aluguem para sempre todos os pernoites, todas as diárias. Quero que não saiam nunca mais daqui.
Mari Carrara e Lucas Fabio
Quero minha televisão minúscula azulando o programa do Jô no volume baixinho que não incomoda. Quero que o primeiro casal chegue discutindo qualquer coisa sobre uma festa, bêbados, ela mais do que ele, brigando porque ele guardou salgadinhos no bolso da jaqueta. Quero que entrem sem boa-noite e sem perguntas, passo a chave pelo vidro e recebo o RG rasgado e rio sozinha da vesguice da foto. Conferem o valor na plaquinha torta atrás da samabaia, dividem.
Quero encostar na cadeira giratória e esquentar o pé gelado na mantinha que o Emílio deixa pra mim. Na verdade quero que os homens hoje fiquem todos nos seus cantos, caídos, quero que sumam em tragadas, garrafadas, tacos de sinuca, quero que durmam gordos atrás dos óculos, dos livros e de repente um coro agudo por essas escadas, quero duas mocinhas pedindo uma suíte com banheira, vou sorrir – estamos lotados – e elas esperam na saleta.
Quero que encostem os narizes, os cílios, misturem os cabelos, os cachos, os brincos. Quero risos e elogios que não consigo ouvir. Quero escutar só as risadas até silenciarem os gritos asmáticos daqueles sebentos, palavrões pelos corredores.
Quero anunciar o quarto limpo, espalhar pétalas de rosas pela cama. Quero que peguem a chave da minha mão num sorriso de pura gratidão e corram saltitantes pela escada, câmera lenta nos sapatinhos barulhentos. Quero que interfonem pedindo um suco de morangos que vou picar eu mesma, o liquidificador em vez da tevê na tomada da recepção. Depois quero que peçam mousse, chantili, leite condensado.
Quero que peçam coisas impossíveis, pilhas, livros, vestidos, quero que peçam festas, filhos, amigos, filmes, quero que peçam e eu vou dizendo pois-não e vou levando até que me puxem pela mão devagar e me convidem, quero que me mostrem o quarto, a vida, a paixão e me encostem os narizes, os cílios, misturem os cabelos nos meus cachos crespos, os brincos. Quero as risadas todas comigo, vão me rodar contentes, contar histórias de bebedeiras, maluquices, quero sentar tímida na cama e cantar baixinho.
Quero que elas queimem uma por uma as luzes do letreiro e fechem as portas dos quartos desertos e tragam aos poucos um a um cada prato da cozinha, quero enfiar o dedo em todos os bolos baratos, lamber os pudins. Quero rir com elas das azeitonas e cuspir os caroços com força pela janela, quero roubar as cerejas solitárias de todas as taças mal lavadas. Quero que elas apaguem de vez todas as luzes e aluguem para sempre todos os pernoites, todas as diárias. Quero que não saiam nunca mais daqui.
Mari Carrara e Lucas Fabio
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