segunda-feira, 31 de março de 2014

Partindo



Ela disse que estava partindo, não disse assim chique mas disse qualquer coisa que, se fosse escrita, a palavra seria partir. Continuei com os pés enlaçados atrás das pernas da cadeira, girando de leve para um lado e para o outro. Ela ia partir, era isso, e partir significa uma porção de coisa mais importante do que simplesmente ir embora.
Ela falava, num tom condescendente, que tinha tentado me dizer antes, acho que se esforçava para chorar porque na verdade parecia entusiasmada. Naquela hora, quando ela disse que eu certamente seria muito feliz – quem sabe alguém que combinasse mais comigo –, naquela hora eu pensei que ela estava partindo o mundo no meio, partindo de um lado o mundo que tinha existido até aquele dia, e do outro a parte do mundo em que eu teria de viver quando ela tirasse a mão piedosa do meu joelho.
Deixei o pé travado atrás da cadeira pensando que é por isso que chamam esse momento de partir, ela me partia no meio com um golpe na nuca, fiquei ali tonto, ruído, uma bolha ácida inflando no estômago – descobri que o ciúme mora no estômago, quem sabe uma água-viva gelatinosa e urticante. Ela partiu naquele dia e depois, por telefonemas, partiu o apartamento em dois, o dinheiro em dois, até o carro ela partiu em dois carrinhos e o menino ela partiu salomonicamente em finais de semana monótonos, ele traz o vídeo-game e conversamos sobre refeições, em monossílabos. Ela abriu a porta do carro e tirou o cinto do menino, debruçou sobre o banco pra alcançar a mochila e quando eu reclamei que o meu filho estava engordando ela sorriu – condescendente (não com o menino, que talvez nem esteja gordo, mas comigo) – colocando a mão no meu joelho.
Ela partiu antes mesmo que eu tirasse os pés de trás dos pés da cadeira giratória, eu estava esperando ela desabar num choro de insegurança abrupta mas ela chegou a comentar que não era possível que eu não tivesse percebido como as coisas estavam, usou a expressão “há anos”. Eu ia perguntar se a sexta-feira não tinha significado nada pra ela mas apertei mais o pé no enlace da cadeira. Fiquei pensando se ela ia apoiar a maleta no chão e passar um batom antes de sair, no espelho da sala, quem sabe explicar onde anotou os contatos da empregada na pausa entre um lábio e outro.
Naquele dia parece que ela partiu alguma ligação química dentro do meu corpo, qualquer coisa que tornava automático o pé-depois-do-outro, os passos simples na direção do que é certo e fácil. Ficou um robô enrijecido que calcula feito criança a tabuada esquecida de cada gesto.

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