Quando o rádio-relógio despertar de novo, daqui a dez minutos, quero que esse peso nos olhos tenha sumido, quem sabe a voz do rádio na notícia exata -- gosto da mocinha do trânsito com a entonação musical e a ênfase no rodízio, repete três vezes as placas que não podem circular. Quero ficar deitado dois minutos enquanto a mocinha dirá que as avenidas estão fluindo surpreendentemente livres daqui até o meu trabalho, os carros todos a oitenta e cinco por hora e ela cada vez mais contente anunciando Livres! livres!
Depois quero levantar e sentir que o tubo da pasta de dente continua cheio, apertar gostoso bem no meio até transbordar pela escova. Quero lembrar que fui ao mercado no domingo e por isso tenho pão, queijo, mortadela, e quero que a Lúcia já tenha feito o café e dessa vez com muito pó, engasgando de tão forte – sempre faz tão fraco e eu nunca a coragem para um Lúcia, o café, talvez, um pouco mais forte, quem sabe?
Depois queria que o jornal estivesse aberto na mesa ao lado do café, queria que o jornal viesse num caderno espiralado fácil de virar página por página sem o cinza carvão desbotando na ponta do dedo engordurado de manteiga. Queria então que esse incômodo perene dentro da barriga fosse embora numa sonora flatulência de dois minutos ininterruptos até a Lúcia aumentar a música na cozinha com um sorriso duro e o olho arregalado.
Queria descobrir que aquele problema no computador se resolveu sozinho, junto com o cano entupido e o microondas que há duas semanas a Lúcia diz que faz um uivo vampiresco – queria que a Lúcia escolhesse palavras como vampiresco. Queria que um botão daqueles auto-clean de liquidificador me deixasse de repente de banho tomado e cueca nova, queria que as gravatas virassem estilinho cômico nos baús dos brechós de São Paulo.
Quero chegar no trabalho em apenas três minutos e descobrir que a Silvana faltou, vai faltar a semana inteira, infecção, e o Rubens também, mas o Rubens pode ser só intoxicação alimentar. Assim sem o Rubens não tem comentário sobre o futebol com a risada grotesca tremelicando o bigode, os dedos finos fazendo uns gestos da malandragem que eu retruco dizendo qualquer coisa sobre o jogo de ontem, algum comentário que ouvi dos manobristas ou de alguém no elevador.
Quero sentir a cadeira vermelha que é a única coisa que eu gosto naquele lugar, rodar, rodar enroscando os fios dos computadores. Quero fechar os olhos na cadeira vermelha e abrir de repente às oito horas da noite no café Boreal, a Daiane vai me trazer o mate com limão e o açucareiro, vai se olhar no reflexo da bandeja e depois vai perguntar se eu já assisti a um Almodóvar qualquer que ela alugou e não sabe se é bom, a Daiane deve gostar de filme; aquele jeito de cruzar os braços apoiada no balcão e ficar olhando a rua, a Daiane é puro cinema.
Quando eu pedir a conta ela vai fazer um muxoxo balançando o rabo de cavalo e limpando a mão de farinha no avental verdinho. Quero que esse grumo de papel higiênico molhado que está atolado na minha garganta desde os treze anos se dissolva de repente e eu diga sem engasgos que gostaria muito de ver aquele Almodóvar de novo. Não quero que ela abra um sorriso, nem diga um doutor-carlos-doutor-carlos –- quero que ela pare de me chamar de doutor. Quero que ela apenas me entregue a conta e com toda a naturalidade do mundo diga um então-vamos-indo, olhando o relógio.
Quero que ela tire a roupa sem rebolado ou mistério, como uma amiga fez pra me mostrar a tatuagem. Quero que ela tenha os seios humanos, com alguma marca de nascença e estrias discretas dos lados, quero que me deixe tirar uma foto com a câmera do celular. Quero que ela mesma tire a camisinha e fique brincando distraída, uma menina descalça no quintal com um balãozinho de água.
Quero que o DVD não funcione porque não estou com tempo para o Almodóvar que eu já vi, quero dar um beijo longo e ela vai apertar as unhas no meu ombro e me emprestar um livro que ela leu essa semana e achou a minha cara, quero que a Daiane também goste de ler.
Quero que a casa da Daiane seja do lado da minha e vou atravessar a rua e ver que a Lúcia deixou tudo arrumado e com cheiro de lustra-móveis – adoro cheiro de lustra-móveis – sem tirar do lugar nenhum dos meus papéis e ainda fez um macarrão molhado e um bife farinhento passado no ovo. Quero cerveja.
Quero o tubo de pasta bem cheio, um copo de água com gás no criado-mudo. Quero deitar na minha cama com três travesseiros embaixo da cabeça e dois atrás dos joelhos. Quero sentir as costas relaxando de orgasmo e lençol gelado e acender o abajur e estalar os dedos dos pés. Quero abrir o livro que a Daiane emprestou e achar esquisito, depois achar bonito, sentir o peso voltando para os olhos devagar.
Depois quero levantar e sentir que o tubo da pasta de dente continua cheio, apertar gostoso bem no meio até transbordar pela escova. Quero lembrar que fui ao mercado no domingo e por isso tenho pão, queijo, mortadela, e quero que a Lúcia já tenha feito o café e dessa vez com muito pó, engasgando de tão forte – sempre faz tão fraco e eu nunca a coragem para um Lúcia, o café, talvez, um pouco mais forte, quem sabe?
Depois queria que o jornal estivesse aberto na mesa ao lado do café, queria que o jornal viesse num caderno espiralado fácil de virar página por página sem o cinza carvão desbotando na ponta do dedo engordurado de manteiga. Queria então que esse incômodo perene dentro da barriga fosse embora numa sonora flatulência de dois minutos ininterruptos até a Lúcia aumentar a música na cozinha com um sorriso duro e o olho arregalado.
Queria descobrir que aquele problema no computador se resolveu sozinho, junto com o cano entupido e o microondas que há duas semanas a Lúcia diz que faz um uivo vampiresco – queria que a Lúcia escolhesse palavras como vampiresco. Queria que um botão daqueles auto-clean de liquidificador me deixasse de repente de banho tomado e cueca nova, queria que as gravatas virassem estilinho cômico nos baús dos brechós de São Paulo.
Quero chegar no trabalho em apenas três minutos e descobrir que a Silvana faltou, vai faltar a semana inteira, infecção, e o Rubens também, mas o Rubens pode ser só intoxicação alimentar. Assim sem o Rubens não tem comentário sobre o futebol com a risada grotesca tremelicando o bigode, os dedos finos fazendo uns gestos da malandragem que eu retruco dizendo qualquer coisa sobre o jogo de ontem, algum comentário que ouvi dos manobristas ou de alguém no elevador.
Quero sentir a cadeira vermelha que é a única coisa que eu gosto naquele lugar, rodar, rodar enroscando os fios dos computadores. Quero fechar os olhos na cadeira vermelha e abrir de repente às oito horas da noite no café Boreal, a Daiane vai me trazer o mate com limão e o açucareiro, vai se olhar no reflexo da bandeja e depois vai perguntar se eu já assisti a um Almodóvar qualquer que ela alugou e não sabe se é bom, a Daiane deve gostar de filme; aquele jeito de cruzar os braços apoiada no balcão e ficar olhando a rua, a Daiane é puro cinema.
Quando eu pedir a conta ela vai fazer um muxoxo balançando o rabo de cavalo e limpando a mão de farinha no avental verdinho. Quero que esse grumo de papel higiênico molhado que está atolado na minha garganta desde os treze anos se dissolva de repente e eu diga sem engasgos que gostaria muito de ver aquele Almodóvar de novo. Não quero que ela abra um sorriso, nem diga um doutor-carlos-doutor-carlos –- quero que ela pare de me chamar de doutor. Quero que ela apenas me entregue a conta e com toda a naturalidade do mundo diga um então-vamos-indo, olhando o relógio.
Quero que ela tire a roupa sem rebolado ou mistério, como uma amiga fez pra me mostrar a tatuagem. Quero que ela tenha os seios humanos, com alguma marca de nascença e estrias discretas dos lados, quero que me deixe tirar uma foto com a câmera do celular. Quero que ela mesma tire a camisinha e fique brincando distraída, uma menina descalça no quintal com um balãozinho de água.
Quero que o DVD não funcione porque não estou com tempo para o Almodóvar que eu já vi, quero dar um beijo longo e ela vai apertar as unhas no meu ombro e me emprestar um livro que ela leu essa semana e achou a minha cara, quero que a Daiane também goste de ler.
Quero que a casa da Daiane seja do lado da minha e vou atravessar a rua e ver que a Lúcia deixou tudo arrumado e com cheiro de lustra-móveis – adoro cheiro de lustra-móveis – sem tirar do lugar nenhum dos meus papéis e ainda fez um macarrão molhado e um bife farinhento passado no ovo. Quero cerveja.
Quero o tubo de pasta bem cheio, um copo de água com gás no criado-mudo. Quero deitar na minha cama com três travesseiros embaixo da cabeça e dois atrás dos joelhos. Quero sentir as costas relaxando de orgasmo e lençol gelado e acender o abajur e estalar os dedos dos pés. Quero abrir o livro que a Daiane emprestou e achar esquisito, depois achar bonito, sentir o peso voltando para os olhos devagar.
Quero ler o livro que a Daiane emprestou e não entender nada, quero tomar um chá com ela amanhã e dizer que o livro é difícil demais pra mim.
Um comentário:
no começo, achei que era eu.
preciso mesmo escrever que adorei, seguido de cinco exclamações, pra você acreditar que eu adorei?
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