segunda-feira, 31 de março de 2014

Passarela




Mastiga um pedaço de porco com a pele estalando nos dentes que ela palita discretamente com a ponta da língua, discreta mas eu sei que é isso que faz com a boca se torcendo e os olhos virados para o lado na concentração da busca. O decote mostrando demais de um peito que já não serve pra mostrar, as veias azuladas saltando no branco translúcido da ausência de sol que o médico recomendou e ela obedeceu para sempre, sol nunca mais, nem um mormacinho, ela diz às vizinhas num tom apocalíptico, balançando a cabecinha de cabelo oleoso e o beicinho rugoso contraindo de desgosto, nem um mormacinho!
Quero me esconder atrás do cardápio e evitar o olhar que já sei que vai lançar sobre a minha torta de chocolate, a pupila dilatando naquilo que ela julga um diálogo mímico, talvez abaixe o olhar para insinuar o caminho da sobremesa direto aos meus quadris, meio quilo a mais e eu estou fora de tudo, ela sempre disse que isso não era pra mim e eu insistindo, não é assim?
Passa o guardanapo na boca e depois fica observando a marca do batom no papel e detesto cada uma das manias, no fundo odeio e não é porque é mãe que a gente tem de viver do lado assim, podia ser qualquer pessoa e calhou de ser essa que eu odeio, se fosse uma colega do trabalho eu já tinha mudado de mesa, de restaurante, de cidade. Pega minha mão e o cinismo de metade de um século se abrindo num sorriso esverdeado de temperos, Ela está evitando esses modelos mais ousados depois do acidente, não é, minha filha?
O acidente que a família cala num baixar barulhento de olhos à comida e eu me levanto rumo ao banheiro e ouço todos os olhos levantando barulhentos às minhas costas, acompanham meus passos adivinhando um tombo como se agora eu mais frágil, vulnerável, eu enorme e minhas pernas dois canudos a bambear nas sandálias. O corredor até o banheiro feito a longa passarela sob flashes e filmes, lembro bem, meus pés na corrida sincronizada do desfile ensaiado, minha mãe na primeira fileira com os óculos vidrados nos meus joelhos, talvez averiguando a proporção ideal entre coxas e canelas e eu numa torção repentina e a queda rápida. O tombo talvez no intervalo preciso de um movimento de pálpebras, minha mãe piscando e eu no chão com a ousadia do seio esquerdo à mostra agora humilhado pelo tornozelo que se recusa a se erguer, alguém me recolhe da passarela pelas axilas. Queda rápida demais sem a elegância das árvores que vão se anunciando lentas, rítmicas, até acalcarem o solo na imponência arrebatadora de um poema incrível. Eu no chão de repente com o seio maquiado de fora e minha mãe no balançar da cabeça como se dissesse às vizinhas Nem um mormacinho mas dizendo qualquer coisa que eu nunca quis saber, ela sumindo na platéia.
Chego à pia sem novos tombos e o espelho mostra qualquer coisa dela no queixo e talvez nos lábios, o espelho um retrato dela e eu sei que as fotos não me importavam, as revistas, os colegas, o namorado, o fracasso, nada de importante enquanto me puxavam pelas axilas. Somente ela e a cabecinha balançando, ela sumindo na platéia.

2 comentários:

Anônimo disse...

O texto me deixou triste....
MAs ele é bom!
Festa do tomate hj?

Anônimo disse...

Snif, snif... Cheira o continho!
Casal. Um deles assiste um filme mto bom e o outro não. Semana seguinte, vão em salas separadas.Ambos filmes bons. Ela fala pra ele ir ver o filme novo. Assim sucessivamente. Nunca mais vão ao cine juntos. Captou?Quero pronto em cima da minha mesa até a próxima segunda, sem falta! Debite na pasta 15487, do caso UNIBANCO.