quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Catálise


É de noite e por isso o vidro que dá pra rua vira quase um espelho, menos quando passa o farol de um carro lá fora. Um carro que está provavelmente indo fazer alguma coisa mais interessante que ficar caminhando numa esteira.
Meus dentes batendo, a barriga molhando indigna por trás do elástico da bermuda, não consigo parar de pensar na ideia odiosa de estar tantas noites numa academia, mais uma hora que eu perco fazendo mais uma coisa que não significa nada, uma hora gastando a mim mesmo. Dissipando o que meu dia indevidamente economiza – nas tantas horas que também não me dizem nada.
Como se ao longo do dia eu existisse menos do que fui feito pra existir, e então engordo. Possivelmente na esperança fisiológica de existir mais tarde, um dia, tudo o que fui sobrando.
Perder minhas noites aqui porque me falta em juventude o que me vem em ganas de engolir, beber, toda aquela fartura das bandejas por quilo, latas, garrafas, esses tantos consolos, e é preciso vir aqui me gastar para poder me economizar, durar mais anos com muitas horas e poder passar mais tempo fazendo essas coisas que não me dizem nada.
 As pessoas se cruzam no caminho dos seus exercícios e sorriem, e se falam. Quem há de compreender por que se falam. Feias, suadas, não se conhecem, não têm nada em comum a não ser o fato de estarem se gastando no mesmo lugar na mesma porcaria de hora nobre, com a novela muda e legendada em metade dos televisores.
Hoje a música está excelente, quero elogiar o professor que escolhe os CDs, mas nem para isso quero falar, essa é a hora em que estou completamente ausente de mim, não há absolutamente nada nos meus movimentos que diga quem eu sou, autômato, passos mecânicos tentando vencer a hora mais lenta do dia.
Não, é inacreditável que alguém nessa situação se sinta com identidade suficiente para interagir.
Minha não-pessoa lamentando a incapacidade de elogiar a trilha sonora e uma outra não-pessoa comentando com outra que hoje a música está de-cortar-os-pulsos. O mundo se divide em gente que.
Parar com a mania de dividir o mundo. Mas realmente o mundo se divide, não adianta, o mundo terminantemente se divide toda hora, e se divide agora em pessoas que veem a beleza das coisas soturnas e aquelas que querem enfiar alegria no ouvido da gente o tempo todo, uma alegria nervosa, histriônica, até mesmo na camiseta amarelo neon subindo e descendo na barra de alongamento.
Justo o alongamento que é uma coisa lenta, fibrosa e profunda, a única profundidade nessa caixa espelhada quente de glicogênios e catálises.
Ainda falta meia hora. O vidro da rua me reflete porque já é bem noite e já quase não passa farol de carro porque quase todos já chegaram em casa. Pior, todos chegaram nas suas academias. Todos os humanos urbanos diante dos seus espelhos gastando a si mesmos, porque éramos pra ser muito mais do que somos durante o dia e então vamos sobrando, e quando chega a noite é preciso se gastar muito, pra não sobrar, e vai-se gastando o tempo, tanto tempo, que quando eu me der conta nem sobrei nem faltei, só quase não existi.


terça-feira, 29 de julho de 2014

Sobre as nossas delicadezas II


Existe um telefone celular e ele é doentiamente um companheiro, na mão, no bolso, bolsa, roupa, metrô, ele é um companheiro quase maníaco guardando suas fotos, músicas, confissões, estabelecendo os mais ansiosos e desesperados contatos, e esse aparelho de tempos em tempos, de tão solicitado, cai desastradamente no chão, mas sempre fica tudo bem.
Ele cai, às vezes solta a tampa de trás, a bateria escapa para lugares insondáveis e você fica tateando o asfalto como quem procura a vida de um grande amigo temporariamente inconsciente depois de uma queda. Você encontra, e então ele está de volta, pronto para a próxima queda, já ativo no desespero da próxima comunicação – atrasos, saudades, trânsito, dúvidas, súbitas incompatibilidades de gênios.
Só que daí um dia, na centésima queda da altura da sua mão – nem é a pior das quedas, é na verdade uma quedinha de nada, perto das tantas outras, um esbarrão à toa, um deslize, nem mesmo cuspiu a bateria --, e quando ele se ergue do chão vem o espanto diante de uma tela multifragmentada e áspera que enfim não deve mais responder aos seus insistentes toques. E você olha a tela desproporcionalmente estraçalhada e pensa que ela foi ingrata, mimada, porque isso não precisava ocorrer justo hoje, com essa queda, se ela resistiu a coisas tão piores, e de repente a ruptura parece um capricho, uma vaidade, justo num dia como esse.
Mas daí olhando pro seu telefone bem no fundo dos mil vidrinhos doloridos, você percebe que na verdade ele resistiu mais do que devia. E que muita coisa e muita gente resiste mais do que devia, tanta queda, chute, golpe, atropelo, e a tela intacta e leal mantendo os anseios das suas comunicações, até que um dia não tinha mais forças, e era bom que esse dia chegasse, porque não está certo ser derrubado displicentemente assim tantas vezes, e chega uma hora que se não quebra fica a dúvida de como serão as próximas quedas, o que é um jeito terrível de se viver.
E você fica aí parado, no meio da calçada, olhando para o telefone celular com a tela gratuitamente espatifada esperando que com isso ele te ensine alguma coisa, nem que seja a quebrar de vez em quando, e bem antes da centésima queda, pra que alguém fique te olhando assim do jeitinho que você está fazendo, quase se arrependendo e já louco de saudade, porque não é saudável ficar durando assim quando te jogam tanto, chega a parecer que você pode cair, e cuspir a vida na sarjeta, ou embaixo das mesas, que depois fica tudo bem, e você volta, servil e diligente, e não, não é saudável que se disfarcem tanto as nossas delicadezas – senão é até capaz que, na queda fatal, você ainda seja culpado pela desproporção. 
Mas daí você está lá parado pensando tudo isso e fazendo planos sobre como tratar bem o seu futuro telefone, e passa a mão na tela, e assim, mesmo inacreditavelmente em pedaços, ela funciona, ela sorri. 

segunda-feira, 2 de junho de 2014

A Guerra
Eu nunca mais voltei naquele lugar e por isso a minha lembrança é de que era o maior lugar do mundo. Minha mãe me puxava por uma ladeira enorme, fazia muito sol e as pessoas na fila tinham todas muita pressa ou muito desânimo. As que tinham desânimo parece que iam ali sempre, como que todo dia.
Já fazia muito tempo que em casa ninguém me dizia nada, deixavam a televisão ligada e se calavam, e eu já não perguntava dele e já eu mesma quase não falava, e nem olhava mais a porta no horário da novela porque eu já tinha entendido que ele não ia aparecer de repente. E nesse dia eu ainda não sabia se queria ou não queria ir, mas não tinha ninguém pra ficar comigo tantas horas e – Pega um brinquedo e vem, menina – eu puxei da cama um boneco qualquer que tinha sido dele, e corri pro trem.
A mãe continuava não dizendo nada e eu não perguntava porque pra todo o mundo parecia mais fácil se eu simplesmente não estivesse percebendo. Como se eu não tivesse reparado que meu irmão nunca mais voltou pra casa, nunca mais me trouxe nada, nem me jogou pedaços de tomate durante o jantar, nem me escondeu no armário na hora do banho, nem fez promessas, projetos grandiosos que ele me contava depois de me sentar em cima da mesa da cozinha onde ele dizia que as coisas eram levadas a sério. E naquele dia no lugar imenso minha mãe não tinha nenhum alívio no rosto, mas por alguma razão eu tinha passado a noite conversando com a lua e me dei toda a certeza de que ele ia voltar pra casa.
Eu já sabia que ele tinha começado a vender droga, e que tudo tinha dado errado. Mas eu sabia também que isso um monte de moleque fazia ali no bairro e eu sentia que naquela tarde ele ia pedir desculpas a quem quer que fosse que ele tinha desobedecido, e ia ficar tudo bem. 
Quando a gente entrou, eu me lembro do frio, um frio sem sentido que era como se o sol nunca chegasse ali. Fiz que o boneco voava pelos corredores, mas fiz só pra minha mãe achar que eu estava feliz com o passeio, mas era difícil fingir porque minha cabeça ficava bem na altura das algemas dos homens que toda hora passavam puxados por guardas gigantes, os rostos baixos, a roupa igual, e eu a todo tempo num susto achando que qualquer deles podia ser o meu irmão – e era; qualquer um.
E os homens nas algemas estavam todos de chinelo e eu lembro que achei aquilo muito estranho porque chinelo é uma coisa tão livre. Ficava olhando passarem tantos pés soltos em havaianas puídas e aqueles pés me lembravam de praça, churrasco, pipa, rua, demarcação de gol de futebol. Depois pensei que a gente usava tanto chinelo porque sapato é muito mais caro, mas aí logo em seguida pensei que ainda assim – e talvez por isso mesmo – chinelo fosse uma coisa tão livre.
A gente sentou finalmente e esperou por um tempo que me pareceu muitos dias. Minha mãe não falava comigo a não ser pra me dar um suco ou uma bolacha seca, mas de vez em quando falava com outra mãe, qualquer coisa sobre Deus, ou sobre injustiça – só que por alguma razão minha mãe não parecia achar nada daquilo injusto, e acho que isso é o que mais doía nela. E de repente ouvi uma senhora comentar algo que jamais tinha passado pela minha cabeça – O meu filho já é a terceira vez! – e nessa hora eu pensei que então dali pra frente seria sempre assim. Eu percebi que os rapazes uma hora crescem, e vão presos, e depois vão presos de novo, e pela terceira vez, e que era essa a sina dos nossos homens, como num país que entrega todos os seus meninos à guerra.
Durante toda a tarde minha mãe seguia com os olhos uma mulher apressada, de salto alto, que quase nunca parava em nós, e não olhava pra minha mãe porque sabia que ela estava esperando alguma notícia, e aí eu fui percebendo que de fato era sempre assim pra todo o mundo, tanto que a mulher vinha e dava a notícia para as outras mães, que já sabiam como as coisas eram, e saíam, como quem recebe uma hóstia e volta pra casa pra lavar roupa. E depois da notícia a mulher entrava numa sala em que as pessoas corriam, ou às vezes riam de quaisquer coisas, e quanto mais elas riam mais eu me convencia de que aquela era a ordem natural, de que os irmãos crescem pra serem presos uma, duas, três, intermináveis vezes.
Eu girava o boneco como se ele fosse um trapezista porque eu sabia que estava chegando a hora e era cada vez mais importante que eu não estivesse entendendo nada, e eu pensei bem forte que se eu rodasse o boneco exatamente 18 vezes – a idade do meu irmão – antes de a mulher começar a falar com a minha mãe, a notícia seria boa.
E eu comecei a rodar primeiro devagar porque pensei que ela ia demorar, mas ela foi chegando com a mesma cara que ela fez toda vez que tinha uma notícia, e eu rodei o boneco mais rápido, e mais rápido, mas ela já começou a falar com a minha mãe sem nem olhar pra mim e não deu tempo de eu rodar o boneco 18 vezes – e é capaz que até hoje eu me culpe por isso –, mas eu continuei rodando o boneco porque era importante que eu não estivesse entendendo nada – Nós fizemos tudo o que foi possível --, era fundamental pra minha mãe que eu não entendesse – Mas não significa que ele vai ficar preso os próximos cinco anos inteiros  –, na verdade era absolutamente necessário pra mim que eu não estivesse entendendo nada e como eu rodava o boneco como se não estivesse prestando a menor atenção de vez em quando a mulher de salto olhava pra mim e eu sei que eu tentei segurar o choro mas ele veio assim, silencioso, implacável --A senhora precisa voltar daqui a dois anos pra pedir... – e então ela me olhou de novo e acho que parou um pouco de falar, e eu percebi que até mesmo pra ela era preciso que eu não estivesse entendendo nada.
Minha mãe, que até aquele momento apenas assentia com a cabeça, também olhou pra mim, e eu senti que ela e a mulher de salto olhavam meu choro, e eu rodei mais rápido o boneco só que agora não adiantava mais rodar boneco nenhum.
Eu cresci uns vinte anos naquela tarde, e cresci sem meu irmão, que morreu nove anos depois, recém-saído da terceira cadeia. Eu disse que nunca mais voltei naquele lugar, mas na verdade eu nunca mais saí de lá. Ficamos pra sempre presos – eu, e também minha mãe, e a mulher de salto, que não deveriam nunca ter me visto chorar.


segunda-feira, 31 de março de 2014

Núpcias (obs: por dificuldades na configuração, os próximos 13 textos são antigos)

A gorda com o hálito de gengibre tenta encaixar o fecho do colar de pérolas, baforadas no meu pescoço reclamando dos óculos, precisa dos óculos. Um homem com farelos de pão na barbicha passa uma base em espalmadas violentas no meu rosto, os primeiros golpes do casamento, talvez. A luminária na minha frente está me dando calor, películas de suor, ele diz películas de suor me enxugando com algodões e virando a cabeça da luminária de modo que o foco da luz no teto e não na minha cara. A luminária parecendo agora uma bailarina num gesto final, uma mãe em preces aos céus, um homem agonizando de joelhos com o pescoço tombado para trás, a luminária uma luminária apenas e eu apenas eu nesse vestido que não mereço.
Uma moça pequena me sorri e pede licença para prender a coroa nos meus cabelos, seis horas fazendo esses cachos e depois sei lá desses cachos, eternizados numas fotos e também o que são seis horas perto da eternidade das fotos. No quarto da minha avó uma foto em tons de cinza e naquela época sem cachos, o cabelo uma massa só sem a obscenidade dos fios. Agora eu num sorriso de promessas, a mão suavemente apoiada no corrimão de modo a destacar a luva, nos lábios um quê de trêmulos e os olhos se não brilharem de paixão eles podem depois arrumar no computador, fica bonito. Posso pedir pra deixarem mais verdes, eternamente verdes.
Seis horas com essas revistas baratas, posso mexer nas revistas porque não preciso fazer as unhas, no inverno ficam chiques as luvas, brancas acetinadas até um dedinho acima do cotovelo. Uma mão no corrimão e a outra quem sabe no ombro do noivo, ele com o sorriso mais firme, nada de um quê de trêmulos os lábios nem brilho nos olhos, a sobriedade da decisão sem deslumbramentos. O fraque cinza ainda sem a mancha de vinho que os colegas deveriam derramar sem querer no meio da baderna, às gargalhadas. O fraque ainda impecável e o fotógrafo talvez flagrasse um olhar espontâneo e uma risada minha, uma piada dele, quem sabe sobre uma tia digníssima que está bêbada. Talvez um flash no meio da minha careta de birra quando ele diz que vai dormir no avião o caminho todo, e me aperta o nariz na ponta dos dedos, Bobinha, e de repente a luz do flash e rimos de novo, outra foto. Mas o fotógrafo apenas A mão no corrimão, por favor, e a outra mão na taça, não, não, a outra mão no ombro dele. Sorriso!
Uma noiva abandonada no altar, a gorda diz uma expressão em francês quando consegue colocar as pérolas, terminam minha maquiagem e a mocinha pequena me traz até o salão vazio e eu já sei que abandonada no altar. A dona da loja me ajeita o vestido na cintura e confere as informações, perigoso o endereço sair errado. Quer no canto direito, pode colocar o preço do aluguel também, é sempre bom o preço para as pessoas não se iludirem, coisa mais triste as noivas iludidas. Chegam na loja com a revista nas mãos e talvez o meu sorriso trêmulo e os meus olhos magnificamente verdes e é isso que elas querem mas de repente o preço alto demais. Melhor um preço discreto ao lado dos meus sapatos, outro preço ao lado do vestido. Minha foto não num álbum de veludo vermelho, minha foto num catálogo, as madrinhas não no altar mas nas últimas folhas com modelos que disfarçam os quadris, um cupom de desconto válido às segundas-feiras. Às vezes chegam na loja com a revista amassada, pequenas correções à caneta no meu vestido, tem como diminuir o decote? Olho meu noivo de hoje e ele reclama do calor e pergunta meu nome. Mão no corrimão, por favor. Sorriso.

Passarela




Mastiga um pedaço de porco com a pele estalando nos dentes que ela palita discretamente com a ponta da língua, discreta mas eu sei que é isso que faz com a boca se torcendo e os olhos virados para o lado na concentração da busca. O decote mostrando demais de um peito que já não serve pra mostrar, as veias azuladas saltando no branco translúcido da ausência de sol que o médico recomendou e ela obedeceu para sempre, sol nunca mais, nem um mormacinho, ela diz às vizinhas num tom apocalíptico, balançando a cabecinha de cabelo oleoso e o beicinho rugoso contraindo de desgosto, nem um mormacinho!
Quero me esconder atrás do cardápio e evitar o olhar que já sei que vai lançar sobre a minha torta de chocolate, a pupila dilatando naquilo que ela julga um diálogo mímico, talvez abaixe o olhar para insinuar o caminho da sobremesa direto aos meus quadris, meio quilo a mais e eu estou fora de tudo, ela sempre disse que isso não era pra mim e eu insistindo, não é assim?
Passa o guardanapo na boca e depois fica observando a marca do batom no papel e detesto cada uma das manias, no fundo odeio e não é porque é mãe que a gente tem de viver do lado assim, podia ser qualquer pessoa e calhou de ser essa que eu odeio, se fosse uma colega do trabalho eu já tinha mudado de mesa, de restaurante, de cidade. Pega minha mão e o cinismo de metade de um século se abrindo num sorriso esverdeado de temperos, Ela está evitando esses modelos mais ousados depois do acidente, não é, minha filha?
O acidente que a família cala num baixar barulhento de olhos à comida e eu me levanto rumo ao banheiro e ouço todos os olhos levantando barulhentos às minhas costas, acompanham meus passos adivinhando um tombo como se agora eu mais frágil, vulnerável, eu enorme e minhas pernas dois canudos a bambear nas sandálias. O corredor até o banheiro feito a longa passarela sob flashes e filmes, lembro bem, meus pés na corrida sincronizada do desfile ensaiado, minha mãe na primeira fileira com os óculos vidrados nos meus joelhos, talvez averiguando a proporção ideal entre coxas e canelas e eu numa torção repentina e a queda rápida. O tombo talvez no intervalo preciso de um movimento de pálpebras, minha mãe piscando e eu no chão com a ousadia do seio esquerdo à mostra agora humilhado pelo tornozelo que se recusa a se erguer, alguém me recolhe da passarela pelas axilas. Queda rápida demais sem a elegância das árvores que vão se anunciando lentas, rítmicas, até acalcarem o solo na imponência arrebatadora de um poema incrível. Eu no chão de repente com o seio maquiado de fora e minha mãe no balançar da cabeça como se dissesse às vizinhas Nem um mormacinho mas dizendo qualquer coisa que eu nunca quis saber, ela sumindo na platéia.
Chego à pia sem novos tombos e o espelho mostra qualquer coisa dela no queixo e talvez nos lábios, o espelho um retrato dela e eu sei que as fotos não me importavam, as revistas, os colegas, o namorado, o fracasso, nada de importante enquanto me puxavam pelas axilas. Somente ela e a cabecinha balançando, ela sumindo na platéia.

Cinéfilos

ahahaha Mila, aqui vai sua encomenda. Pena que sou tão hábil em poesia quanto em pintura! beijos


CINÉFILOS


Um homem enorme sentado no chão
chorando os amores que não voltarão
E lá atrás está Jurema
unhas fundas no estofado
e o olhinho mareado
no silêncio do cinema
Vai voltar pra Diadema
e contar pro namorado.
Mas sábado a bilheteria
tem o filme que ela queria
Só que ele muito ansioso
quer ver o tal do homem choroso
unhas fundas no estofado
e o olhinho mareado
no silêncio do cinema
e na sala ao lado Jurema
em gargalhadas convulsivas
porque um anão de camisola
tomou pílulas laxativas
No busão pra Diadema
conta tudo ao namorado
e ele então se descontrola
quer ver logo o anão cagado
E sábado a bilheteria
tem o filme que ela queria
mas ele diz que nem rola
quer ver o anão de camisola!
E na sala ao lado Jurema
unhas fundas no estofado
vê um filme fabuloso!
mas lembra então com saudade
do abraço do namorado
mão com mão no estofado
no silêncio do Cinema
e não diz mais a verdade:
Meu bem, que infelicidade!
que filme mais odioso!
E sábado a bilheteria
Tem o filme que ela queria
mãos coladas no estofado
quatro olhinhos mareados
no silêncio do cinema.


Zíper
Desde pequena ela puxa o zíper com essa força, quero continuar dormindo, não abro os olhos mas o zíper da primeira bota sobe de repente num rasgar agudo no meio da noite. Se eu abrir o olho vou ver a janela e as luzes intermitentes da rua que por algum motivo atingem um padrão, de quarenta em quarenta segundos o farol de um carro passa um feixe de luz pelo teto do quarto como um laser rastreando o ambiente, se eu me movimento quem sabe um alarme e o laser louco pelo quarto em redemoinhos de luzes e sirenes. Mas não abro o olho, a Amanda diz que tudo isso é parte da minha doença. Chama de doença, com um risinho charmoso no canto do lábio, e depois me abraça como se nada tivesse a menor importância.
Agora deve estar descalça de um pé, procurando o outro embaixo da cama, ou buscando uma meia para o pé descalço. Pelo silêncio, deve estar passando o batom, porque parou a respiração. Ou o rímel, no rímel também pára de respirar. Se eu abrisse o olho veria o rastro da luz da rua passar pelos cabelos enormes da Amanda e veria por um instante a poeira sobre ela, sobre os móveis. Não abro o olho e ouço as escovadas brutais que ela dá sem medo de arrancar os fios, eu sei que tira tudo da escova numa maçaroca preta e joga no lixo ao lado do vaso. Fica um montículo cabeludo sobre os papéis higiênicos parecendo uma vagina abandonada há séculos no banheiro.
Quando cresceram os pêlos ela andava pelo quarto nua como se procurasse uma calcinha mas era pra mim que ela andava, eu fingia que lia a revista mas de repente ela perguntava se o sutiã estava bom. Só o sutiã, nenhuma calcinha, e a agressividade da Amanda entre as luzes dos carros na rua ritmicamente passando o radar para detectar o menor movimento, a agressividade daqueles pêlos no meio da minha infância tão lenta.
Termina as escovadas bruscas e a outra bota de repente zíper na fúria dos zíperes de Amanda, por que tanto zíper e tanta força, no meio da noite o rasgo metálico, daqui a pouco é a minissaia que também zíper e a jaqueta zíper e a bolsa zíper e depois vai me olhar. Vai me olhar e se eu abrir os olhos vai fazer um sinal de silêncio que é um "zíper na boca", dizia isso toda a vez que me contava um segredo, sempre um segredo horrível que eu guardava com medo do zíper que eu talvez tivesse nos lábios.
Eu com medo das sombras dos abajures e a Amanda contando histórias de terror com a cara enorme no foco da lanterna, eu apertava os olhos na fronha molhada e fedida de baba choro e leite, eu gritava Pára, Amanda e ela ria com a luz da lanterna alaranjando as cavidades da boca e saindo em raios por entre os dentes. Agora não conta histórias mas ficam esses zíperes me impedindo o sono, a luz vacilante do abajur verde na penteadeira fazendo sombras, mil sombras nas paredes, no teto.
Deve estar contando o dinheiro na carteira e se eu abrir o olho vai me perguntar se está bonita. Eu vou dizer que parece uma prostituta, e ela vai rir e responder que então está muito bonita. Depois vai sentar na minha cama com todo o barulho dos couros e o perfume alcoólico que espirra inclusive nos cabelos. Vai sentar e vai me beijar a bochecha e me chamar de picurrucha mesmo eu já sendo tão grande, já sou grande, Amanda, não sou? E eu vou sentir o batom grudar devagarinho no meu rosto e depois no meu sono manchar o travesseiro e de manhã ainda a marca rosa do beijo aparecendo no espelho. Depois talvez pergunte se amanhã quero ir ao parque, vai fazer mil planos bem baixinho no meu ouvido, vai falar do parque e do shopping mas eu sei que só vai voltar na segunda-feira com olheiras e zíperes arrebentados. Vai me fazer um carinho no cabelo suado e balançar a cabeça com pena, morre de pena de mim. Depois vai sair bem silenciosa como se de repente, depois de tantos zíperes rasgando o meu sono, não pudesse fazer nenhum ruído. Então me faria um aceno e fecharia a porta lentamente, até sentir o clique discreto da maçaneta.
Mas eu não vou abrir o olho, nunca abro o olho. Termina de contar o dinheiro e eu ouço o barulho dos couros, das chaves, e o clique discreto da maçaneta.

Exercício 1



Quando o rádio-relógio despertar de novo, daqui a dez minutos, quero que esse peso nos olhos tenha sumido, quem sabe a voz do rádio na notícia exata -- gosto da mocinha do trânsito com a entonação musical e a ênfase no rodízio, repete três vezes as placas que não podem circular. Quero ficar deitado dois minutos enquanto a mocinha dirá que as avenidas estão fluindo surpreendentemente livres daqui até o meu trabalho, os carros todos a oitenta e cinco por hora e ela cada vez mais contente anunciando Livres! livres!
Depois quero levantar e sentir que o tubo da pasta de dente continua cheio, apertar gostoso bem no meio até transbordar pela escova. Quero lembrar que fui ao mercado no domingo e por isso tenho pão, queijo, mortadela, e quero que a Lúcia já tenha feito o café e dessa vez com muito pó, engasgando de tão forte – sempre faz tão fraco e eu nunca a coragem para um Lúcia, o café, talvez, um pouco mais forte, quem sabe?
Depois queria que o jornal estivesse aberto na mesa ao lado do café, queria que o jornal viesse num caderno espiralado fácil de virar página por página sem o cinza carvão desbotando na ponta do dedo engordurado de manteiga. Queria então que esse incômodo perene dentro da barriga fosse embora numa sonora flatulência de dois minutos ininterruptos até a Lúcia aumentar a música na cozinha com um sorriso duro e o olho arregalado.
Queria descobrir que aquele problema no computador se resolveu sozinho, junto com o cano entupido e o microondas que há duas semanas a Lúcia diz que faz um uivo vampiresco – queria que a Lúcia escolhesse palavras como vampiresco. Queria que um botão daqueles auto-clean de liquidificador me deixasse de repente de banho tomado e cueca nova, queria que as gravatas virassem estilinho cômico nos baús dos brechós de São Paulo.
Quero chegar no trabalho em apenas três minutos e descobrir que a Silvana faltou, vai faltar a semana inteira, infecção, e o Rubens também, mas o Rubens pode ser só intoxicação alimentar. Assim sem o Rubens não tem comentário sobre o futebol com a risada grotesca tremelicando o bigode, os dedos finos fazendo uns gestos da malandragem que eu retruco dizendo qualquer coisa sobre o jogo de ontem, algum comentário que ouvi dos manobristas ou de alguém no elevador.
Quero sentir a cadeira vermelha que é a única coisa que eu gosto naquele lugar, rodar, rodar enroscando os fios dos computadores. Quero fechar os olhos na cadeira vermelha e abrir de repente às oito horas da noite no café Boreal, a Daiane vai me trazer o mate com limão e o açucareiro, vai se olhar no reflexo da bandeja e depois vai perguntar se eu já assisti a um Almodóvar qualquer que ela alugou e não sabe se é bom, a Daiane deve gostar de filme; aquele jeito de cruzar os braços apoiada no balcão e ficar olhando a rua, a Daiane é puro cinema.
Quando eu pedir a conta ela vai fazer um muxoxo balançando o rabo de cavalo e limpando a mão de farinha no avental verdinho. Quero que esse grumo de papel higiênico molhado que está atolado na minha garganta desde os treze anos se dissolva de repente e eu diga sem engasgos que gostaria muito de ver aquele Almodóvar de novo. Não quero que ela abra um sorriso, nem diga um doutor-carlos-doutor-carlos –- quero que ela pare de me chamar de doutor. Quero que ela apenas me entregue a conta e com toda a naturalidade do mundo diga um então-vamos-indo, olhando o relógio.
Quero que ela tire a roupa sem rebolado ou mistério, como uma amiga fez pra me mostrar a tatuagem. Quero que ela tenha os seios humanos, com alguma marca de nascença e estrias discretas dos lados, quero que me deixe tirar uma foto com a câmera do celular. Quero que ela mesma tire a camisinha e fique brincando distraída, uma menina descalça no quintal com um balãozinho de água.
Quero que o DVD não funcione porque não estou com tempo para o Almodóvar que eu já vi, quero dar um beijo longo e ela vai apertar as unhas no meu ombro e me emprestar um livro que ela leu essa semana e achou a minha cara, quero que a Daiane também goste de ler.
Quero que a casa da Daiane seja do lado da minha e vou atravessar a rua e ver que a Lúcia deixou tudo arrumado e com cheiro de lustra-móveis – adoro cheiro de lustra-móveis – sem tirar do lugar nenhum dos meus papéis e ainda fez um macarrão molhado e um bife farinhento passado no ovo. Quero cerveja.
Quero o tubo de pasta bem cheio, um copo de água com gás no criado-mudo. Quero deitar na minha cama com três travesseiros embaixo da cabeça e dois atrás dos joelhos. Quero sentir as costas relaxando de orgasmo e lençol gelado e acender o abajur e estalar os dedos dos pés. Quero abrir o livro que a Daiane emprestou e achar esquisito, depois achar bonito, sentir o peso voltando para os olhos devagar.
Quero ler o livro que a Daiane emprestou e não entender nada, quero tomar um chá com ela amanhã e dizer que o livro é difícil demais pra mim.

Exercício 2

Quero uma cabeleira grossa e longa pra pentear com força e sentir os fios eletrizados na nuca. Quero uma poltrona daquelas de couros e engrenagens e um livro digno de uma dessas poltronas, e quero que os olhos não ressequem durante o livro que o Marcos me deu, um livro que é digno apenas desta cadeira de palhas soltas. Quero que meu filho fique inteligente de repente.
Quero uma cozinha sem móveis azuis, azul-bebê, o Marquinhos dizia azul-calcinha.
Quero rosquinhas secas que eu vou molhar devagar no café com leite, silêncio. Quero pingar o adoçante a cinco palmos da xícara para ver se acerto as gotas, caem pesadas em ondas de café, quero os óculos para ver as ondas e as horas: há alguns dias estou esperando uma carta anônima.
Quero que o Marcos pare de rir aquele riso ridículo, e me telefone menos vezes na semana, e deixe o emprego indigno que ele transforma em piada à mesa do jantar. Quero muito que ele fique, de repente, inteligente. Quero sentar na minha sala e abrir a janela e deixar qualquer coisa de luz entrar, qualquer coisa de calor nos pés que estico na fresta de sol sobre o carpete, os acarozinhos dançando no ar. Quero encontrar na estante um livro erótico, e quem sabe o sol e qualquer coisa de quente nos pés e nas coxas azuladas de veiazinhas, um mapa da vida na pele escamosa que eu evito no espelho, quero ter coragem de olhar para mim. Quero alongar os dedos doídos e as costas até esticar e colocar no lugar a peça que está solta, consertar tudo num encaixe instantâneo, esquecer o corpo e sua consistência amolecida de travesseiro dormido, voar num balão pendurada pela cabeça até esticar o pescoço feito Alice na maravilha ortopédica de um alongamento mágico.
Quero um país numa toca de coelho. Quero alguém com quem jogar baralho, quero baralhos que falam.
Quero o Américo aqui, mordendo sem força a maçã que ele deixava na cabeceira. O Américo que saiu uma vez para comprar cigarros, e nunca mais parou. Quero o Américo com os dois pulmões aqui na cadeira de palha que ele revestia de almofadas para facilitar a tosse, o Américo com a risada rouca, a careca cheia de xampu e as unhas compridas que ele pintava de vermelho pra provocar o Marcos. O Américo num carinho trêmulo entre tosses e sonhos que ele narrava aos detalhes durante a maçã matinal.
Quero que a minha neta apareça, apenas a minha neta, não quero os meninos. Mas quero que ela chegue sem a cara humilhada de criança feia, quero que chegue oito quilos mais magra e com um vestido verde escuro, quero que me fale de um namorado, pergunte da minha formatura e mostre uma tatuagem no ombro. Quero que tire os sapatos e vá até a vitrola rodar um tropicalismo qualquer e saltitar me segurando pelas mãos.
Quero receber uma carta anônima que diga que vou morrer tragicamente, no fim de semana, um crime qualquer de noticiário. Quero virar literatura. Queria ter morrido antes, o Américo entrando com o jornal e o leite e o meu corpo quase bonito ao pé da escada.
Quero que o criminoso seja um rapaz sem jeito, finjo de morta e ele me carrega no colo escada acima feito noiva virgem. Quero que encha a banheira e ajeite meu corpo de leve na água, quero sentir os dedos dele passando devagar entre as minhas dobras, no contorno das rugas, no cálculo preciso das machadadas. Quero um esquartejamento silencioso e estético – quero virar literatura –, e depois quero que o moço limpe tudo antes do Marcos chegar com as crianças.
Quero que a minha neta apareça de capa vermelha com doces na cesta e encontre na cama um lobo jovem que acabe de vez com a infância tardia. Um lobo rapaz que já saiba tudo o que eu sei, que tenha me devorado aos pedaços na banheira, que abra a boca enorme e não deixe a minha menina escapar por mais nenhum dia.

Exercício 3



Quero que ela pouse devagar no meu joelho, joelho deve ser bom de receber ferrão, depois a abelhinha se morrendo num vôo tonto – será que elas sabem que vão morrer? Quero que ela pique e morra bem assustada do meu lado, incrédula, pensando que devia ter ficado em casa fazendo mel como toda abelha devia fazer – deve ser isso que pensam as mulheres quando percebem que estão morrendo no parto e não têm nenhum zangão pra chorar por elas. Deviam ter ficado em casa, a vida toda em casa fazendo mel.
Quero uma porta de madeira branca, um urso de isopor com purpurina com meu nome pendurado. Quero que alguém abra essa porta e me lave e me tire dali dizendo que posso começar tudo, tenho sete anos pra aprender a ler, mais oito pra aprender a falar as coisas certas e outros três ou quatro pra aprender a resistir, ferroadas nos joelhos. Quero que alguém me tire pela porta branca e me dê um beijo na testa pequena e me troque a fralda cantando uma canção que não seja de terror, quero dormir sonhando com o arco-íris que meu irmão prometia, um pote gigante de gomas vermelhas na outra ponta, sempre na outra ponta.
Quero um mapa gigante dos meus últimos anos, quero alguém que aponte, alguém que crave uma lança no ponto exato onde eu me perdi de mim. Alguém que explique quando foi que a Alice saiu do meu corpo e sumiu pra sempre numa toca escura com o coelho neurótico, e me esqueceu sem cor e sem graça lendo livros enfadonhos sobre gente que não me interessa. Quero saber, quero saber por onde é que eu ando há tantos anos que me aperto e não sinto, quero os ferrões, as abelhas, o meu pote de jujubas de cereja do outro lado do arco-íris, quero a minha mãe fazendo mel na cozinha de casa ao invés de morrendo pra fazer uma filha que talvez nem saiba amá-la, faz tempo que eu não sei amar. Não acho mais graça na páscoa e nos seus chocolates, quero de volta os meus líquidos – minha saliva, meu choro, meu tesão, meu suor nas noites de festa.
Quero saber quem foi que eu piquei, em que joelho maldito eu deixei a minha força, o meu brilho, a vontade de levantar da cama e correr até o pote de balas – ou quem sabe se já não piquei o útero e cheguei azeda no mundo, moribunda, frouxa, vendo as pessoas na velocidade delas e sentindo preguiça de sorrir, às vezes ódio dos solícitos que seguram portas e eu tenho de olhar e agradecer.
Quero fechar os olhos e entender, de repente perceber o que é que está errado, um jogo dos sete erros: desvendo e faço o último círculo e levanto e saio de casa de camisola e chinelos cumprimentando vizinhos e começando tudo de novo atrás das jujubas vermelhas no arco-íris. Quero sentir uma dor aguda de um ferrão nos joelhos e perceber seja o que for que eu não percebo há anos, ver a abelhinha tontear e silenciar o zumbido ameaçador até cair bêbada, inofensiva.
Mas ela foi embora, voando, e eu não sinto nada.

Exercício 4



Quero chegar de novo atrasada, o Emílio esperando ansioso a troca de turno, quero ver que mais uma vogal do letreiro queimou, a outra piscando na intermitência rouge das ambulâncias, das polícias, das espeluncas. Quero esse lugar apagando aos poucos, o nome óbvio sumindo, só a sombra das letras grudentas da fumaça oleosa dos escapamentos.
Quero minha televisão minúscula azulando o programa do Jô no volume baixinho que não incomoda. Quero que o primeiro casal chegue discutindo qualquer coisa sobre uma festa, bêbados, ela mais do que ele, brigando porque ele guardou salgadinhos no bolso da jaqueta. Quero que entrem sem boa-noite e sem perguntas, passo a chave pelo vidro e recebo o RG rasgado e rio sozinha da vesguice da foto. Conferem o valor na plaquinha torta atrás da samabaia, dividem.
Quero encostar na cadeira giratória e esquentar o pé gelado na mantinha que o Emílio deixa pra mim. Na verdade quero que os homens hoje fiquem todos nos seus cantos, caídos, quero que sumam em tragadas, garrafadas, tacos de sinuca, quero que durmam gordos atrás dos óculos, dos livros e de repente um coro agudo por essas escadas, quero duas mocinhas pedindo uma suíte com banheira, vou sorrir – estamos lotados – e elas esperam na saleta.
Quero que encostem os narizes, os cílios, misturem os cabelos, os cachos, os brincos. Quero risos e elogios que não consigo ouvir. Quero escutar só as risadas até silenciarem os gritos asmáticos daqueles sebentos, palavrões pelos corredores.
Quero anunciar o quarto limpo, espalhar pétalas de rosas pela cama. Quero que peguem a chave da minha mão num sorriso de pura gratidão e corram saltitantes pela escada, câmera lenta nos sapatinhos barulhentos. Quero que interfonem pedindo um suco de morangos que vou picar eu mesma, o liquidificador em vez da tevê na tomada da recepção. Depois quero que peçam mousse, chantili, leite condensado.
Quero que peçam coisas impossíveis, pilhas, livros, vestidos, quero que peçam festas, filhos, amigos, filmes, quero que peçam e eu vou dizendo pois-não e vou levando até que me puxem pela mão devagar e me convidem, quero que me mostrem o quarto, a vida, a paixão e me encostem os narizes, os cílios, misturem os cabelos nos meus cachos crespos, os brincos. Quero as risadas todas comigo, vão me rodar contentes, contar histórias de bebedeiras, maluquices, quero sentar tímida na cama e cantar baixinho.
Quero que elas queimem uma por uma as luzes do letreiro e fechem as portas dos quartos desertos e tragam aos poucos um a um cada prato da cozinha, quero enfiar o dedo em todos os bolos baratos, lamber os pudins. Quero rir com elas das azeitonas e cuspir os caroços com força pela janela, quero roubar as cerejas solitárias de todas as taças mal lavadas. Quero que elas apaguem de vez todas as luzes e aluguem para sempre todos os pernoites, todas as diárias. Quero que não saiam nunca mais daqui.

Mari Carrara e Lucas Fabio

Partindo



Ela disse que estava partindo, não disse assim chique mas disse qualquer coisa que, se fosse escrita, a palavra seria partir. Continuei com os pés enlaçados atrás das pernas da cadeira, girando de leve para um lado e para o outro. Ela ia partir, era isso, e partir significa uma porção de coisa mais importante do que simplesmente ir embora.
Ela falava, num tom condescendente, que tinha tentado me dizer antes, acho que se esforçava para chorar porque na verdade parecia entusiasmada. Naquela hora, quando ela disse que eu certamente seria muito feliz – quem sabe alguém que combinasse mais comigo –, naquela hora eu pensei que ela estava partindo o mundo no meio, partindo de um lado o mundo que tinha existido até aquele dia, e do outro a parte do mundo em que eu teria de viver quando ela tirasse a mão piedosa do meu joelho.
Deixei o pé travado atrás da cadeira pensando que é por isso que chamam esse momento de partir, ela me partia no meio com um golpe na nuca, fiquei ali tonto, ruído, uma bolha ácida inflando no estômago – descobri que o ciúme mora no estômago, quem sabe uma água-viva gelatinosa e urticante. Ela partiu naquele dia e depois, por telefonemas, partiu o apartamento em dois, o dinheiro em dois, até o carro ela partiu em dois carrinhos e o menino ela partiu salomonicamente em finais de semana monótonos, ele traz o vídeo-game e conversamos sobre refeições, em monossílabos. Ela abriu a porta do carro e tirou o cinto do menino, debruçou sobre o banco pra alcançar a mochila e quando eu reclamei que o meu filho estava engordando ela sorriu – condescendente (não com o menino, que talvez nem esteja gordo, mas comigo) – colocando a mão no meu joelho.
Ela partiu antes mesmo que eu tirasse os pés de trás dos pés da cadeira giratória, eu estava esperando ela desabar num choro de insegurança abrupta mas ela chegou a comentar que não era possível que eu não tivesse percebido como as coisas estavam, usou a expressão “há anos”. Eu ia perguntar se a sexta-feira não tinha significado nada pra ela mas apertei mais o pé no enlace da cadeira. Fiquei pensando se ela ia apoiar a maleta no chão e passar um batom antes de sair, no espelho da sala, quem sabe explicar onde anotou os contatos da empregada na pausa entre um lábio e outro.
Naquele dia parece que ela partiu alguma ligação química dentro do meu corpo, qualquer coisa que tornava automático o pé-depois-do-outro, os passos simples na direção do que é certo e fácil. Ficou um robô enrijecido que calcula feito criança a tabuada esquecida de cada gesto.

Motivo Especial

Passarela de pedestres em cima da avenida 23 de maio, é um bloco de concreto que os meus amigos tentam me convencer de que balança, as pontes todas moles, senão quebram. Vou atravessando na garoa gelada pensando que pedestre é muito parecido com cipreste, e tento pensar um trava-língua: os pedestres apedrejam os ciprestes, ou os pedestres nos ciprestes com os tigres tristes. Quando eu era pequena achava que tinha um órgão da prefeitura – a prefeitura era a autoridade máxima – responsável por pensar piadas e charadas, porque quando os civis tentavam criar parecia que faltava técnica.
No meio dos pedestres e dos meus ciprestes encontro de repente um anúncio molhado e rasgado, colado na mureta em três vias de folha de impressora – tentei escrever agora folha de "sulfite" mas o Word está dizendo em vermelho que "sulfite" não é palavra que se diga. “MOTIVO ESPECIAL - Procuro Josely (Jô)! Por favor! Me ajude! É muito importante! Costumava morar entre os bairros Jardim Luso e Jardim Miriam ou próximo ao Carrefour da Av. Cupecê.” Embaixo, dois números de telefone e um nome de homem.
Josely acordou um dia e feito uma cadela desembestou sem coleira pela fresta do portão e se acomodou em outro canto de São Paulo, deixando marido e criança doente. Talvez tenha perdido a memória e esteja começando tudo de novo na casa de uma senhora que precisava de uma mocinha para cozinhar.
Quem sabe Josely tenha um dia aberto a correspondência que não devia e saiu de mochila deixando a carta dramaticamente aberta sobre o travesseiro. Ou pode ser que Josely tenha viajado para Pernambuco e voado num tapete mágico com o homem dos sonhos e cinco anos depois ele aparece em São Paulo e não encontra em nenhum endereço a sua Josely, que tinha os cabelos até a cintura e usava um vestido florido, mas nesse frio deve estar com um casaco daqueles azul-cintilantes que estufam.
É muito importante, ele diz, e pode ser que tenha notícias sobre parentes distantes, ou quem sabe Josely foi embora com uma boneca de infância onde tinham escondido diamantes, ouro, ou drogas caríssimas, e ela a essa altura sem entender nada presa na rodoviária com a bonequinha em frangalhos. Deve ser que Josely tenha um filho em coma há vinte anos que acordou e pede a mãe em gestos de bebê.
Pode ser que o motivo especial seja apenas encontrar Josely, fazê-la sorrir entre as argolas dos brincos e o cachecol vermelho que ela quase esqueceu no trem naquele dia do jogo, dizer que não precisava ter sumido assim, esperar que ela desmanche o sorriso para fazer um bico de raiva, de uma raiva que já passou há muito tempo mas não a ponto de voltar ao Carrefour na avenida Cupecê e esperar por um buquê de flores. Muito especial a vontade desesperada de explicar qualquer coisa, de chorar no ouvido perfumado e espiar o livro colorido que ela carrega numa sacola molhada junto com o guarda chuva. Alisar o cabelo da Josely que ela deixa preso numa piranha que muda de cor com a luz do sol, e comentar que ela fica bonita de óculos – e então ela vai tirar depressa, e enfiar também na sacola molhada. Encontrar Josely tomando café com leite e bolo de cenoura num balcão, olhando para a televisão que mostra o trânsito matinal, e sentar como se ela fosse uma mulher qualquer, e não Josely. Esperar que ela olhe por acaso para o lado e engasgue, tussa, chore assustada e rindo gargalhadas aos soluços até se entregar num abraço apertado de jaquetas.
Desço da passarela e vejo as mulheres do ponto de ônibus. Não posso passar mais um dia sem encontrar Josely.

decote, flor e zíper

A janela aberta e o calor da noite parece que está em todo lugar, ela enxuga a testa na manga da camisola, Virgem santíssima, essa noite de pecado e eu aqui no cubo, minha casa é um cubinho, já cansei de dizer isso. Enche o cabelo de grampos até afastar da nuca os fiozitos molhados, a mão em leque num abano mais charmoso que eficaz, cotovelos no parapeito.
A escuridão quieta de apitos distantes dos vigias pelos becos, O sábado é mudo só nessa rua, nesse cubo. Apoia a sobrancelha na grade da janela, Seria pior se além de cubo fosse cadeia, virgem santíssima, não gosto nem de pensar.
A taça de vinho branco desgelando sobre a pilha de livros, e a revista aberta no modelo roxo, laço na cintura. Volta à mesa, a máquina abarrotada de retalhos, Talvez se eu reforçasse um pouco mais no decote. O pé descalço no pedal e o barulho da agulha rápida no traçado preciso, alfinetes na boca e o olhos tensos no desenho, qualquer deslize e haja remendos. A mão alternando entre o cigarro, o vinho e o tecido entortando sob as engrenagens.
O quarto um cubo avermelhado de abajures, procura nas gavetas o óleo para o cabeçote, Desse jeito não termino nunca. Dedilha as bordas do decote e folheia depressa a revista, Ponto em trança... talvez uma flor preta com esses restos aqui, vai ficar uma delícia. O cubo cada vez mais quente, goladas de vinho e o melado escorrendo no queixo, limpa com o dorso da mão. Cigarro, janela, abano, vinho, pedal. O silêncio e a intermitência das correias, polias, motores, a agulha na obstinação frenética sobre o pano roxo.
Esse lugarzinho é um cubo desses japoneses, é japonês, não é? O quarto vazio mas ela interrompe a costura para falar, o repentino sossego de todo um bairro morto, Aqueles cubos coloridos que tem de retorcer e trocar os lados até ficar da mesma cor, meus retalhos coloridos pelo chão, essas paredes que de repente recuam, apertam, uma sufocação, virgem santíssima. Deixa o silêncio um segundo e limpa o sono dos olhos num aperto doído de indicadores. A máquina cortando a noite em mini-britadeiras prateadas, o ziguezague brilhante embaçando a vista, Daqui a pouco algum velho sonolento me enfia o nariz pelas grades, o silêncio, o silêncio! um cubo deve ter vizinhos em cada um dos seis lados, virgem!
Puxa com cuidado o vestido e vai colhendo os restos de linha, escova as pregas e faz o teste do zíper num cuidado improvável, Duvido que você resista a uma abordagem das violentas... imagina o vexame você travando justo numa hora dessas. Tira a camisola sem conferir a janela e entra na roupa que lhe sobra na cintura, nos seios, pende sobre os ombros em ares de arlequim. Aperta os seios no espelho e faz um beicinho olhando fundo nos próprios olhos, a barra da saia quase nas canelas, Essa flor a gente prende aqui, vai ficar deslumbrante.
Desce do vestido e pendura na maçaneta do armário, uma sombra feminina a espreitar-lhe o sono, Se ventasse era capaz até de você dançar nesse cabide. Deita num salto, os últimos goles do vinho, as paredes trocando as cores, retorcendo o cubo no encaixe impossível, Vai ficar bom nela, você vai ver, com aquele peitão você vai ser o mais bonito de toda a festa, talvez ela me agradeça com um beijo rápido. Levanta de súbito para ajustar a flor no alfinete, Pode ser que peça ajuda pra vestir, e você não vai me deixar passar vergonha com esse zíper vagabundo, certo? muito bem. depois ela vai dizer que era exatamente o que ela estava pensando e vai procurar na carteira o resto do dinheiro e eu vou dizer que não, que você é um presente, você é especial, e vou terminar de subir o zíper, e ajeitar a flor, e você vai me olhar com essa carinha de cumplicidade e, se eu tiver sorte, com vento ou sem vento nós vamos dançar feito loucos, eu e você, cada vez mais cheios do perfume doce, e rodar e rodar e até eu tombar sobre você, o decote, a flor entrando na minha boca.
Faz um carinho lento em volta da flor, e volta para a cama, séria. Fixa de novo os olhos no vestido, Agora dorme.

Sobre poços, sucos e formigas



Eram recreios cinzentos de correrias alheias, vozezinhas pelos corredores, pátios, quadras. Ela saía da sala de aula devagar, quem sabe tentando ficar, evitar a vista da alegria fria que não convidava, a festança que não abria sua rodas, sua músicas. A professora passava e sorria, às vezes condescendente, às vezes com indisfarçável piedade.

Ela sentava gorducha num dos andares gelados, atrás de um vaso enorme de onde cresciam miniárvores. Queria encolher e sumir doída na argamassa da parede, mas sempre o corpão grande demais, os cabelos num devaneio insolúvel, e elas tantas passando minúsculas, saltitantes, a lisura dourada dos fios cintilantes de sol, Nós-quatro-eu-com-ela-eu-sem-ela-nós-por-cima-nós-por-baixo-nós-quatro-eu-com-ela-nós-quatro-eu-com-ela-eu-com-ela.

Um dia a professora perguntou por que ela estava sozinha. O importante era demonstrar de pronto que era apenas uma opção, evitar a todo custo as comoções desastrosas dos cuidados pedagógicos. Era prioritário que se impedisse um discurso na sala de aula, a professora segurando a mão dela e lembrando a todos que não se devem excluir coleguinhas só pela aparência, ou pelo tamanho.

Aqueles recreios intermináveis com bisnaguinhas esmagadas no papel alumínio, o suco, o bolo, o Yakult, e a fome que continuava. A vontade traidora de comprar churros na cantina, todo o dia a resistência, a contagem dos minutos até o sinal da aula, até que não desse tempo de aumentar a barreira entre ela e o mundo com mais centenas de calorias.

Em algum canto fundo ela sentia que era melhor, que estava além de tudo aquilo, dos pisões, empurrões, das zombarias. As histórias engraçadas que escrevia, as professoras numa adulação sem fim. A Lua que a ouvia atenciosa e exclusiva. Mas era importante esconder o que não prestava, e o que não prestava era grande demais pra caber em qualquer discrição.

A educação física trazia o couro cruel das boladas diretas na cabeça, no estômago, impossível desviar da agilidade das princesinhas, dos meninos tão pequenos gritando-lhe o sobrenome – que terminava em ÃO – e então atirando humilhantemente a bola fatal, Queimou-queimou-queimou! Uma vez na sala de aula furou sem querer a palma da mão com um lápis, o sangue correndo rápido, a pele subindo, mas esperou silenciosa o seu número na chamada para gritar presente e só então andar desajeitada até a frente – era obrigada a se sentar na última cadeira e permitir a visão dos normais – chorando e pedindo para ir à enfermaria.

Quando vazou a garrafinha de suco, não quis atrapalhar a aula, passou horas preocupada em reter o líquido com a régua, um rodo sem ralo e sem pano puxando o melaço para baixo da cadeira, até que os alunos reclamaram de suas bolsas molhadas e a bronca veio em dobro. Sempre ela atrapalhando, sujando, sempre a gorda trazendo comidas impróprias na escola. Muito antes disso, aos dois anos, foi pela primeira e única vez encaminhada à diretora, por ter espontânea e barbaramente espancado um minúsculo menino que a caçoara demais quando derrubou o guaraná inteiro na mesa de aniversário de alguém. Sempre o comprido dos braços, o exagero do quadril esbarrando na fragilidade dos líquidos tão talentosamente contidos pelos normais.

Para diminuir psicologicamente o tamanho, buscava o ridículo nos adereços dos Bananas de Pijama, na mochila da Barbie. Lamentava não caberem nos pés os tênis de velcro do ursinho Puff – desde os oito anos calçava 38-39, e logo veio o sutiã. Logo virou a Louca, a Mongol, a Nenezão, até que começou a sentir gosto pela humilhação, pois era assim que recebia mais e mais atenção. Passou a trazer presentes das lojinhas de 1 dólar, que distribuía aleatoriamente – com algumas preferências – na entrada da sala. Começou a ter amigos, depois uma amiga de verdade, também gigante, mas que não tinha qualquer problema com isso. O seu grande amor – amou-o chorosa por quatro anos, desde os oito anos – finalmente segredou-lhe que ela não era bonita, mas “dava as coisas”, era boa. Era boa.

Hoje não sei dessa menina, mas tudo dela resiste imbatível em mim. Tenho sonhado com formigas – o que parece indicar solidão. Tenho tido recreios solitários de mil vozes contentes, mas os professores já não se preocupam com a minha inabilidade em abordar os outros. Tenho pedido carinho demais e recebido infinitamente menos, e tenho concluído o revés do que pensava a menina gorducha: as pessoas que se bastam não são incrivelmente suficientes e interessantes, elas têm na verdade muito pouco a trocar com os outros.

A menina sozinha era um poço de amor acumulando num canto, um poço doendo profundo de devoção, uma entrega completa esquecida na água parada daquela solidão incompreensível. A menina sozinha ainda é esse poço, mas cada vez mais turbulento de tanta pedra, tanto gelo, tanta gente que buliu aqui e sumiu no vazio dos seus egos secos. Eu e a menina somos líquido quente, doce. Líquido que vaza vexaminoso das garrafinhas, copos, latinhas, que transborda exagerado de cada abraço, que não cabe mesmo na imensidão de mim.

O vôo



Exploro o espelho como querendo virar suas páginas, eu quero ter coragem de me perguntar por que eu preciso às vezes me prender assim, por que é que de uma hora para a outra eu baixo os olhos e ato pés e mãos aos móveis mais pesados da sala nova.
Bem na hora do vôo as minhas asas num muxoxo proposital e vexaminoso, as garras escondidas na minha própria carne, os olhos distraídos num torpor de fantasias. Por que será que justo na hora de crescer meus braços, estender as mãos até tantos dos meus sonhos – por que tantas mortes no meu sonho agora? Por que tanta morte nos meus sonhos? –, por que será que quando o mundo me vê tão grande eu me encolho doída na caixinha mais minúscula que alguém me oferece?
Por que será que a vertigem do vôo que eu talvez pudesse dar me finca os pés, afunda os passos nessa lama densa. Que lugar comum é esse que a que eu me entrego e me apago e me rasgo.
Onde a vontade de quebrar minhas correntes, despontar livre de novo, desperta, desencaixada dos cubículos pequenos, da mesquinharia da vida dos outros, de volta no eixo das minhas palavras, do meu samba, da minha noite.
De dentro da caixa mais pequena que me coube, chego a pensar que foi o medo da queda que podia vir depois de um vôo. Mas virando as páginas desse espelho cru, penso que é o pavor de bater mil vezes as asas, espalhar vento nos cabelos de todos, fazer um estardalhaço de giros, arfadas, gritos, sem conseguir – nunca, jamais – sair do lugar.

Matriarcal


A janela aberta e dois ventiladores bamboleantes, a ferrugem arranhando num ventinho quase sem movimento, Pode vento que não se mexe, mãe? Alena bate no chão um boneco verde, entre o losango das perninhas molhadas de suor e carpete. Bem baixinho, faz a voz do bicho que conversa tristonho com uma tampa de caneta.
Mãe, pode uma dinossaura ter um filho canetinha? Estela suspira um monossílabo, virando a poltrona de leve na direção de um dos ventos estáticos, Não é possível que não se faça uma porcaria de um vento! Pende a cabeça para trás e estica os braços numa cruz úmida, pontinhos de pó misturando na testa. Passa o dorso da mão displicente na cabeça da menina. Queria saber, mãezinha, pode um bicho desses ter pra filhote uma canetinha...
Lá fora o silêncio do calor já abafou todas as vozes, até a feira vende silenciosa as suas frutas derretidas, Nesse calor ninguém faz filhote, não, Alena, nem dinossauro nem caneta. A menina aperta o plástico do boneco e olha os olhos estrábicos de ternura, a lingüeta do bicho pendendo para o lado num charme perene, Deve poder sim, mãe, é só o pai ser bem caneta, pode nascer uma caneta... verde, talvez...
Estela alcança as chinelas com as pontas dos pés sem se mover da cruz, Vamos virar bolinhas de sagu nessa fervura. Alena faz o boneco escalar devagar a poltrona até chegar à cabeça pendente da mãe, os olhos envesgam de ponta-cabeça diante da linguinha marota do dinossauro, Por que você não leva esse bicho pra comprar umas laranjas aí na frente, ahn?
Alena senta de repente no chão, encosta nas costas da poltrona, a cabecinha encaixada embaixo da cabeça da mãe, Meu pai é como, mãe? eu pareço mais com ele ou com você? Estela desfaz a cruz desenrolando o dorso, a cabeça doída da peripécia. Afasta os cabelos da nuca, abana, sopra por dentro do vestido, Por que você pareceria o pai, Alena? criança não tem nada que ver com pai, não. pai é coisa que inventaram, você não tem mais idade pra acreditar nessas coisas.
Alena levanta e rasteja no tapete quente até a janela. Contempla quieta a lentidão do sol sobre as gentes passantes, Mas ninguém faz filhote sozinho, né... Estela respira num enfado, ajeitando a coluna na poltrona, E você não está vendo que você inteirinha foi eu que fiz sozinha, menina? ...vem aqui. Alena olha a mãe e afasta a cabeleira dos olhinhos sérios. Corre de repente num salto, cai num abraço suarento que ela aperta esmagando o dinossauro entre as barrigas. Você vai aprender na escola, Leninha. Estela ajeita a menina no colo em posição de estudos, as perninhas imóveis de atenção. Antes ia tudo bem, mas um dia eles inventaram que os filhos eram deles, amarraram a gente em casa pra não acontecer filho de outro, e ficaram aí, mandando em vocês, enchendo a vida dessas regras deles. tudo mentiras, Aleninha, tudo umas mentiras.
Alena ilumina o sorriso confuso, acomoda a cabeça no colo quente. Estela vai acumulando devagar os cabelos da menina num chumaço molhado, procura alguma coisa pra amarrar o penteado, Fui eu que fiz você, completinha.
Alena balança as perninhas, abraça o dinossauro num consolo sincero, Então não tem jeito de nascer uma canetinha.

quinta-feira, 6 de março de 2014

Se você fosse sincera




Fui desviar o olho pro céu e notei a velha lá em cima no terraço. As pessoas continuaram passando, esbarrando, cornetas, confetes, espumas, a bateria seguindo na frente desencontrada, as mesmas marchinhas já desde uns quinhentos metros, Se você fosse sincera ô ô ô ô, a velha tão branca com o olho franzindo no sol, o calor me doendo na cabeça, no ombro, e toda a gente ainda me empurrando, cantando, os carrinhos de cerveja pedindo espaço, a pele da velha com bolhas de outros sóis em outros carnavais. Apoiei num carro estacionado e encolhi os pés pra que menos pessoas pisassem, e não é isso o Carnaval, encolher os pés pra que ninguém pise?
Embaixo do terraço da velha o portão de um ferro avermelhado protegendo uma garagem em que ninguém entrava há pelo menos uma década, a casa tão grande e majestosa sumindo numa decadência de rainha, a velha num pijama azedo às três da tarde olhando atentamente um carnaval que escorre sem talento embaixo do terraço. O joelho dela doendo a cada pulo das mulheres na rua.
Do lado da velha, segurando de leve o braço murcho, a preta da casa, lá nos seus sessenta e cinco anos, muito forte, a cara triste, olhando a festa num enfado evidente, sussurrou algo no ouvido da patroa, quem sabe algo como Vamos Dona Eulália Já Está Bom De Sol Por Hoje, e dona Eulália sem mover o braço nem os olhos e apenas permanecendo onde está porque é assim que ela vem dando as ordens ultimamente, ainda mais no meio desse barulho.
Sinto vergonha de estar aqui, nem tanto de Dona Eulália que embora doam as bolhas e os joelhos olha o carnaval passar sem querer voltar pro quarto, do alto de seu terraço descascado de azulejos quebrados e plantas mortas, mas da preta da casa, que olha a rua sem inveja nem saudade, estudando a gente que passa com o canto do lábio numa torsão de desgosto, o cenho contraído no estranhamento alienígena a se perguntar talvez por que tanta alegria num feriado só, por que tanto pulo nessa música que já vai distante e esses pés sambando tão determinados e encharcados de sarjeta cachaça e groselha. Estou com vergonha é diante da preta que talvez nos olhe como aos netos de Dona Eulália que não a visitam, às vezes nem para fazer o pagamento da governanta que está quase envelhecendo junto, pelo menos a menina dia desses veio lhe dar uma televisão antiga dessas pesadas, um namorado esquisito ajudou a colocar no quartinho dos fundos, Mas não assista muito alto senão você não escuta a vovó.
A casa parece comprida e deve ter aos menos cinco quartos vazios acinzentando de umidade, mas a preta da casa continua nos fundos, em algumas manhãs até pega chuva entre o quarto e a cozinha, ela que chegou na casa antes dos netos, mesmo dos filhos, nem tinha nome direito e até hoje também o nome que deram nunca lhe valeu nada demais.
E agora a multidão que segue o bloco, mobilizada por uma compaixão contagiante, começa a acenar à velha e à preta, gestos convidativos como se a elas só faltasse o estímulo certo, como se a artrose a engessar as juntas fosse um capricho, um jogo de charme, e eles chamam mais, sorrisos, saltos, a velha esboça um sorriso, a preta cochicha qualquer coisa, talvez sobre a água que ficou fervendo para o escalda-pés.
Um grupo de cinco jovens estanca o cortejo embaixo do terraço fazendo mais sinais para as velhas, um deles ainda levanta uma garrafa de cachaça, gentil oferta que não chega ao deboche porque eles são o rosto da bondade nas suas sandálias coloridas, cabelos grudados na geleia amistosa dos cachos permanentes, o sorriso ingênuo ampliando o convite à folia, até seguirem na dança como se a velha não existisse, porque de fato já quase não existe, nem a preta da casa.
E as duas ainda ouvem ao longe a marcha distorcida dos alto-falantes e ladeiras, e a velha sorri talvez pensando nas tradições que não morrem e a preta puxa de novo o braço da velha na direção da casa, quem sabe pensando nas coisas que simplesmente nunca mudam, Mas como a cor não pega mulata, mulata eu quero seu amor.