texto escrito para a coletânea Cidades Impossíveis
Ela que tinha uns melindres de astronauta com aqueles bracinhos leves que levitava lentos num gesto sem qualquer finalidade – ela que me mostrou que podemos mexer os braços no meio da rua de um jeito inútil, a simples razão de ser de um movimento --, ela que finalmente um dia me olhou com o anil tresvariado de um olhar que também não tinha finalidade alguma e me falou que vinha de longe, de muito longe, e precisava de dinheiro pra voltar pra lá. Ela que de repente levantou o dedo e apontou para o céu e eu já nem segui o gesto com os olhos porque imaginei que fosse apenas um erguer de braços e um apontar de dedos livres e desvinculados das significações mundanas: ela de fato me apontava a Lua.
Ela que rodopiou devagar com o dedo em riste sempre na direção prateada do astro, os cabelinhos em tufos de sebo, manteiga e graxa, É de lá que eu vim. Nessa hora pensei que até o Pequeno Príncipe tinha sido mais sutil no revelar das origens, e o Pequeno Príncipe era uma criança, ela não, ela era toda ela uns gestos alienígenas, a boca séria parecendo que entre os lábios um morango polpudo fendido no meio, e o camisetão sobre os seios firmes e sobre o mísero da coxa que era necessário cobrir, embora eu desconfiasse que a necessidade de cobrir qualquer coisa também não se materializava nela como algum impulso que direcionasse um gesto, uma camiseta, um escrúpulo. Ela que era toda ela desvinculada me apontava a Lua na explícita intenção de apontar, rompendo a apoteose da espontaneidade numa súbita precisão de símbolos, o dedo e a Lua.
Atrás de nós o homem do bar já estalava na chapa o meu queijo e olhava a moça numa precaução desnecessária, e antes que ele a afastasse batendo o sapato no chão – esse gesto definitivamente comunicativo para os vira-latas – pedi que ela sentasse comigo e fiz ao garçom o 2 com os dedos, magicamente dobrando o número de pães com carne e queijo – e ela agora apontava dois dedos para a Lua. Os pés ela raspava no chão como se coçasse na pedra os calos grossíssimos, mas depois pensei que nem para coçar ela devia ter um gesto certo, Você precisa voltar para a Lua? Ela olhava as mãos estendidas contra a luz da rua e respondia evasivamente que sim.
Na Lua, todas as mulheres são assim como você? Ela sorriu de repente rasgando o morango dos lábios num rompante que me assustou, Assim como? Assim perfeita. Ela baixou os olhos até o centro da mesa e deixou o morango se refazer devagar, numa quase tristeza que vinha de algum lugar muito dentro dela e que escapava imune à racionalidade e às significações – ela simplesmente esquecia que havia alguém ali com ela. Ela que até agora tinha deixado os braços dançando livres e as mãos em desenhos aleatórios, ela que não tinha amarras de repente enlaçou as pernas num abraço de si mesma, num repentino frio urbano que tinha a melancolia das garoas esfumaçadas em torno dos faróis dos carros, pára-brisas, buzinas.
Põe esse casaco, põe? Ela que não me respondeu e de repente riu alto demais, logo me olhou com o anil impenetrável entre os cílios longuíssimos, Você acha que resolve? Pensei que estivesse com frio. Na minha cidade faz muito calor de manhã e muito frio à noite, eu faria poesia sobre isso, se soubesse escrever. Que cidade? Na Lua. Ah. Eu nem sentia a diferença, porque a gente vivia embaixo. Embaixo? Túneis. Certo. Túneis enormes, dão a volta na cidade.
Os sanduíches chegaram embebidos em gordura e ela imóvel olhava o prato numa devoção pagã, Não comemos hambúrguer nem queijo na Lua, na Lua a gente come as irmãzinhas, as que vão ficando fracas, na Lua há muitas irmãs mas há muito desperdício. Desperdício? Sim, matam muitas à toa, outras ficam nos túneis como eu quando poderiam fazer poesia sobre o calor do dia e o frio da noite, outras caem de lá. Você caiu? Eu fugi. e caí.
Ela, que tinha fugido do desperdício lunar e tinha caído aqui nessa cidade, comia o pão sem desperdiçar migalha, o morango dos lábios brilhantes de manteiga e a língua que, essa sim, era precisa nos gestos famintos. Ela que tinha fugido do desperdício e tinha caído nessa cidade onde as almas são tão bem aproveitadas, cidade de poetas que não sabem que são poetas, que apenas sentem alguma coisa no estômago como fosse uma beleza pronta que se vaza lenta sem letras, palavras, sem queijo. Nessa cidade linda onde não se devoram as irmãzinhas, Você comeu suas irmãs? Ela limpou a boca no ombro da camiseta, Não, nós comemos as irmãs dos outros, é uma troca, só que as maiores irmãs vão para as menores famílias. E você fugiu?
Ela ergueu de repente as pernas equilibrando na cadeira até tocar os joelhos com a testa e respondeu abafado, entre as coxas, Fugi porque queria escrever, e no túnel não tinha luz, mas aqui ninguém não escreve, aqui é igualzinho lá, todo o mundo em movimento, ninguém não fica, só tem rua. Na Lua não tinha rua? Não, só tem o trem, e tem quem fica em cima e quem fica embaixo, no túnel, e quem fica em cima anda no trem, quem fica embaixo faz o trem andar. E qual o seu nome?
Ela que era um anjo caído da cidade Lua onde as irmãs são desperdiçadas e não se pode escrever porque no túnel não tem luz, justo ela que era tão necessário ser chamada de alguma coisa especial, explicou que não tinha nome, porque o pessoal do túnel nunca tem nome já que não dá pra ouvir o nome de ninguém embaixo do trem, nem adiantaria chamar, você gritaria Maria! e todas continuariam correndo segurando os ferros e arrastando o trem quilômetros e quilômetros. Perguntei se gostava de Luna, e ela sorriu e corou de leve, e eu fiquei sem saber se ela achou de uma patética obviedade a minha escolha ou se era só a lisonja de ter um nome que trazia aquele rubor.
Minha mãe era mais bonita que eu. Impossível. Ela foi alimento de uma família de fora do túnel, trocaram por uma criança minúscula, não deu nem três dias minhas tias já tinham fome, essa coisa de comer hambúrguer é melhor mas fico pensando o que será que eles trocam com as famílias das vacas. Luna tentou passar os dedos entre os cachos, juntando mais gordura à maçaroca morena. Eu tenho uma aula agora, mas eu posso subir com você e você toma um banho, quer?
Ela que era um anjo caído do fundo das crateras da Lua me olhou dessa vez com olhos quase inumanos e alguma coisa no morango dos lábios sibilou deixando toda ela numa imprecisão de traços que me fez pensar que ela não estava inteiramente ali, Na Lua quase não temos água. Água faz muito bem, você vai ver, vai poder desembaraçar os cachos. Para quê? E de repente eu não sabia dizer para quê se desembaraçam os cachos e para quê não se deixam os cabelos para sempre cheios de gordura, manteiga, graxa e as unhas negras e o rosto chamuscado de fuligem, Para você não ficar mais tão sozinha. Para você gostar mais de mim.
Então eu percebi que ela, a moça deslumbrante, mas em todos os sentidos lunática, alienada, maluca, perigosa, imunda, das pernas e ombro de fora, dos pés descalços e forrados de uma carcaça cinzenta de mijo, cimento, grama, vidro, areia e cigarro, ela que eu tantas vezes vira e nunca tinha pensado que pudesse falar, que pudesse pensar, que pudesse precisar de dinheiro para voltar para a Lua, ela era incrível e era toda ela completamente encantadora e apaixonável. Percebi que ela era incrível não no sentido de inacreditável, porque a essa altura eu já não duvidava de nada e já pensava em completar o preço da passagem de volta. Ela era incrível porque a sua própria existência era bonita demais para que não fosse apenas arte, ela era toda ela uma impossibilidade. Ela, justo ela que até então não tivera nome, fugira de um lugar que, fosse onde fosse, certamente por muito pouco não a devorou numa troca injusta com as famílias dos trens, não a macerou num acidente de trabalho nos túneis, não a deixou toda a vida sem luz, sem espelhos, sem cores.
Eu gosto de você assim, pode continuar suja. Vou pensar. Luna cruzou as pernas e encostou na cadeira olhando a rua, Tudo igual, sempre o movimento. Ela tinha o ar de quem não precisaria mais sair daquela mesa, de quem tinha o tempo do mundo, do mundo e de outros mundos para ficar, nunca mais correr atrás ou embaixo dos trens. E como eram esses túneis? A gente era muita, tanta que chutava os calcanhares da frente, tropeçava. tinha de segurar a parte de baixo do trem, com os braços para cima, em fila, todas correndo. o problema é que era escuro, e barulhento, não se via, não se ouvia, ninguém falava. quem cansava e caía era logo levado de refeição. E você caiu? Caí, e fugi. daí caí lá da Lua direto aqui. E como era na hora de brecar? Era a pior parte, perto da estação a gente ia cravando a sola do pé no chão e arrastando terra e pipocando pedregulho, queimando, sangrando, e ia sem querer cavando um buraco cada vez maior até que uma noite a gente tinha de botar mais terra pra poder frear melhor.
Luna me olhava e o olhar era surpreendentemente leve, depois baixou os olhos à sola dos pés e devagar me mostrou, de novo mais um gesto que tinha sentido e propósito. A sola escoriada, queimada, algumas peles pendendo enegrecidas, e eu já não sabia se aquilo era asfalto quente com mijo, folhas e cacos de vidro ou se eram de fato do mecanismo de frenagem dos trens da Lua.
Você tem um namorado na Lua? Lá não tem homem. Como não tem homem? Eles foram embora, deixaram a gente lá sozinha. Mas e como vocês continuam nascendo? Luna fez um passe de dança com os punhos e cotovelos, depois fixou os olhos nos dedos dos pés, E por que não nasceríamos? Sem os homens, como nascem crianças sem os homens? Luna riu de novo, dessa vez como se a minha tolice fosse de uma espirituosidade invejável, E me diz o que homem vai ter que ver com criança?
Ela que tinha caído seminua de uma cidade subterrânea onde as mulheres trocam suas crianças, suas irmãs, e arrastam os trens pelos túneis em frenagens doloridas, a terra esfolando os pés, salpicando na cara, a escuridão, o barulho, o suor encharcando os olhos inúteis, as mulheres sem nome, sem voz e sem livros, ela que tinha fugido de lá para evitar o irreversível desperdício dessa coisa forte que sente no estômago, essa coisa que quer se materializar em arte, em palavra, em música, mas veio ficar contida aqui nessa mesa, nesse camisetão imundo e nesse x-burguer-salada de colesterol e cisticercos. Ela que olhava os ônibus ferozes e me perguntava curiosa como faziam as pessoas dos túneis para correr tão rápido segurando esses ônibus, e eu respondi que as pessoas estavam penduradas mas era dentro do ônibus, apenas, e ela me olhou com a sobrancelha de incredulidade, Todas? para quê? E eu que de novo não sabia dizer para quê, só sabia que as pessoas tinham lavado seus cabelos e calçado sapatos para então subirem no ônibus, Porque são necessárias em outra parte da cidade.
E ela que já não se movia, nem dançava, nem desperdiçava tantos gestos, apenas olhava os ônibus, os cachorros molhados, as gentes correndo, o prato acrílico de florinhas laranjas com o papel oleoso do hambúrguer, o homem do bar que por sua vez tinha aquele jeito de olhar, aquele olhar de homem que nunca mais veio incomodar nenhuma mulher na Lua, ela que estava ali imóvel de repente era um potencial inconcretizável, um metal derretido escoado nas masmorras da Lua, emparedado na terra cinza.
Mas por que você quer voltar para aquele lugar? E ela que tinha as irmãs e a mãe devoradas em trocas injustas e as pernas corroídas e as mãos doídas de levar pesados trens em torno da Lua, ela me olhava de novo com as sobrancelhas de absoluta incredulidade e balançava a cabeça desaprovando minha cegueira, ela que estava nessa cidade onde nem pode haver injustiça porque não há justiça para fazer o contraponto, ela talvez tenha me dito, se é que soube dizer, que aqui não existe, que aqui ninguém não é, ninguém fica, Aqui não dá. aqui é impossível.