sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Exercício 5 (pedidos de Natal)


Hoje quero sair cedo do salão, quero que todas elas apareçam apenas para as mãos, nada de pés, esmaltes bem clarinhos, uma camada só. Quero que todas as clientes tragam papai-noel de chocolate, daqueles maciços, difíceis de morder. Quero abrir um deles e subir a rua chupando pelo gorrinho, quero que ele derreta rápido.

Quero que no salão ninguém pergunte nada, ninguém encoste a mão no meu ombro e diga que sinta absolutamente nada, quero que o Sandro tenha me sorteado no amigo secreto. Quero uma camisola roxa com as alças cor-de-rosa, alguma renda nos seios. Quero que o Sandro fique me olhando o tempo todo, meio de longe, e me dê a camisola, depois me abrace, e nesse abraço sussurre que eu devo ser muito bonita dormindo. Quero que ele ande comigo até o metrô e me fale da família dele.

Quero que a mãe já esteja em casa quando eu chegar, e que os vizinhos estejam quase todos no quintal, quero que o Seu Lázaro não venha. Quero que as crianças não fiquem correndo muito, que as meninas coloquem música de dançar, podem pedir pra olhar minhas fotos. Quero que as pessoas cheguem trazendo pudins, frangos, bolos, muito arroz, quero que a minha mãe tenha conseguido fazer o peru. Quero que alguém traga uma cesta de natal da empresa, com sidra e cerejas em calda. Quero morder as cerejas, muitas cerejas, melando todo o vestido, quero que as meninas também peguem cerejas e apertem, estourem, muitos vestidos ficando vermelhos, pegajosos, doces, quero um pote gigante de cerejas.

Quero que ninguém pergunte nada, quero que não escrevam cartões. Quero que a mãe fale com as mulheres sobre costura, sobre temperos, não quero ouvir a minha mãe contando da madrugada na fila, quero que ela esqueça os próximos domingos, quero que alguém fique pra dormir com ela, que ela não chore. Que nenhum completo imbecil venha explicar sobre procedimentos, sobre leis, sobre cálculos de anos, sobre concessões, enquanto arranca uma coxa de frango com o guardanapo, quero que ninguém venha dizer que tem certeza de que ele é inocente. Quero que ninguém tenha certeza de coisa nenhuma.

Quero que o meu pai tenha conhecido um rapaz muito bom, muito sozinho também, que proteja, um rapaz como o Sandro, que tenha os braços fortes, que fique acordado enquanto ele dorme, que saiba jogar os baralhos que ele gosta. Quero que ele não arrume nenhuma briga e que alguém divida com ele um panetone, um pote gigante de cerejas, quero que domingo ele não me conte nada, que não me diga nada, só me fale do natal de lá e de como os homens rezaram e repartiram frisantes em garrafas descartáveis, que o maior deles se vestiu de Papai Noel, que os guardas trouxeram papais-noéis de chocolate maciço. Quero que todas as celas estejam contornadas por luzinhas douradas piscantes, uma arvorezinha no canto do pátio vai sobrar acesa no silêncio tocando desafinada um noite-feliz bem agudo. Quero que meu pai não fique muito tempo, e se forem mesmo tantos anos assim quero que ele se mate. Quero que ele deixe todo o mundo em paz.

Quero as crianças caindo no sono nas cadeiras de praia do quintal, no sofá, e aos poucos as mães meio bêbadas vão recolhendo todas escoradas de barriga nos ombros, numa das mãos um saquinho com um pouco das sobras, quero a minha mãe embrulhando sobras de arroz até que não haja mais a quem distribuir, quero que sejam três horas da manhã e a minha mãe esteja sorrindo sozinha na cozinha e as meninas já estejam dormindo, quero colocar pouco dinheiro no sutiã e sair sem dizer nada, descer até a rua vazia cheia de luzes, caminhar de saia e sandália baixa até algum lugar que toque música muito alta, quero que o segurança me deixe entrar de graça porque já vai estar tão tarde. Quero uns copos de cachaça e quero conversar com umas meninas na fila do banheiro, vou dizer que sou de Recife e que não tenho onde dormir, quero que sejam travestis. Quero que elas me levem pra tomar café da manhã e que a gente pegue um ônibus muito lento que cruze a cidade silenciosa já debaixo de muito sol. Porque é feriado, porque é Natal, e o salão não vai abrir.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Brisa

Pode ser que por um instante, que talvez por alguns instantes, ou repetidas vezes, eu tenha desejado que ela fosse outra pessoa, uma amiga, qualquer uma daquelas pessoas a quem a essas horas já não é preciso dizer nem mostrar nada, já nem é preciso ser coisa nenhuma. Mas talvez não, talvez eu estivesse achando bom uma pessoa assim desconhecida – para não dizer estranha – os olhos limpos de mim, uma nova foto surgindo nas cores que eram possíveis, cores de vestidos, faróis, essas cores da madrugada.

Ainda assim é impressionante como em tantos momentos eu de fato pensei que seria melhor se ela fosse alienígena, qualquer coisa que de repente se desmaterializasse, sumisse, só pra que eu pudesse parar de falar, de sorrir, pra que eu pudesse ser eu mesmo, um eu-mesmo quieto, evidente. Porque de repente ela parecia uma pessoa completamente extraterrestre simplesmente por não ter estado aqui em nenhum dos momentos importantes da minha vida, por não ter idéia de quem eu sou enquanto há tanta gente querida que é capaz de saber a palavra exata que eu gosto de ouvir.

Mas depois, quando ela de fato se desmaterializou – na medida máxima em que essas menininhas da metrópole conseguem se desmaterializar –, fiquei pensando que é bom de vez em quando tudo assim tão leve, uma brisa breve e colorida que entrou pela janela do carro. Na estrada ainda sinto o vento no pescoço.

sábado, 13 de novembro de 2010

Cidade Impossível

texto escrito para a coletânea Cidades Impossíveis

Ela que tinha uns melindres de astronauta com aqueles bracinhos leves que levitava lentos num gesto sem qualquer finalidade – ela que me mostrou que podemos mexer os braços no meio da rua de um jeito inútil, a simples razão de ser de um movimento --, ela que finalmente um dia me olhou com o anil tresvariado de um olhar que também não tinha finalidade alguma e me falou que vinha de longe, de muito longe, e precisava de dinheiro pra voltar pra lá. Ela que de repente levantou o dedo e apontou para o céu e eu já nem segui o gesto com os olhos porque imaginei que fosse apenas um erguer de braços e um apontar de dedos livres e desvinculados das significações mundanas: ela de fato me apontava a Lua.

Ela que rodopiou devagar com o dedo em riste sempre na direção prateada do astro, os cabelinhos em tufos de sebo, manteiga e graxa, É de lá que eu vim. Nessa hora pensei que até o Pequeno Príncipe tinha sido mais sutil no revelar das origens, e o Pequeno Príncipe era uma criança, ela não, ela era toda ela uns gestos alienígenas, a boca séria parecendo que entre os lábios um morango polpudo fendido no meio, e o camisetão sobre os seios firmes e sobre o mísero da coxa que era necessário cobrir, embora eu desconfiasse que a necessidade de cobrir qualquer coisa também não se materializava nela como algum impulso que direcionasse um gesto, uma camiseta, um escrúpulo. Ela que era toda ela desvinculada me apontava a Lua na explícita intenção de apontar, rompendo a apoteose da espontaneidade numa súbita precisão de símbolos, o dedo e a Lua.

Atrás de nós o homem do bar já estalava na chapa o meu queijo e olhava a moça numa precaução desnecessária, e antes que ele a afastasse batendo o sapato no chão – esse gesto definitivamente comunicativo para os vira-latas – pedi que ela sentasse comigo e fiz ao garçom o 2 com os dedos, magicamente dobrando o número de pães com carne e queijo – e ela agora apontava dois dedos para a Lua. Os pés ela raspava no chão como se coçasse na pedra os calos grossíssimos, mas depois pensei que nem para coçar ela devia ter um gesto certo, Você precisa voltar para a Lua? Ela olhava as mãos estendidas contra a luz da rua e respondia evasivamente que sim.

Na Lua, todas as mulheres são assim como você? Ela sorriu de repente rasgando o morango dos lábios num rompante que me assustou, Assim como? Assim perfeita. Ela baixou os olhos até o centro da mesa e deixou o morango se refazer devagar, numa quase tristeza que vinha de algum lugar muito dentro dela e que escapava imune à racionalidade e às significações – ela simplesmente esquecia que havia alguém ali com ela. Ela que até agora tinha deixado os braços dançando livres e as mãos em desenhos aleatórios, ela que não tinha amarras de repente enlaçou as pernas num abraço de si mesma, num repentino frio urbano que tinha a melancolia das garoas esfumaçadas em torno dos faróis dos carros, pára-brisas, buzinas.

Põe esse casaco, põe? Ela que não me respondeu e de repente riu alto demais, logo me olhou com o anil impenetrável entre os cílios longuíssimos, Você acha que resolve? Pensei que estivesse com frio. Na minha cidade faz muito calor de manhã e muito frio à noite, eu faria poesia sobre isso, se soubesse escrever. Que cidade? Na Lua. Ah. Eu nem sentia a diferença, porque a gente vivia embaixo. Embaixo? Túneis. Certo. Túneis enormes, dão a volta na cidade.

Os sanduíches chegaram embebidos em gordura e ela imóvel olhava o prato numa devoção pagã, Não comemos hambúrguer nem queijo na Lua, na Lua a gente come as irmãzinhas, as que vão ficando fracas, na Lua há muitas irmãs mas há muito desperdício. Desperdício? Sim, matam muitas à toa, outras ficam nos túneis como eu quando poderiam fazer poesia sobre o calor do dia e o frio da noite, outras caem de lá. Você caiu? Eu fugi. e caí.

Ela, que tinha fugido do desperdício lunar e tinha caído aqui nessa cidade, comia o pão sem desperdiçar migalha, o morango dos lábios brilhantes de manteiga e a língua que, essa sim, era precisa nos gestos famintos. Ela que tinha fugido do desperdício e tinha caído nessa cidade onde as almas são tão bem aproveitadas, cidade de poetas que não sabem que são poetas, que apenas sentem alguma coisa no estômago como fosse uma beleza pronta que se vaza lenta sem letras, palavras, sem queijo. Nessa cidade linda onde não se devoram as irmãzinhas, Você comeu suas irmãs? Ela limpou a boca no ombro da camiseta, Não, nós comemos as irmãs dos outros, é uma troca, só que as maiores irmãs vão para as menores famílias. E você fugiu?

Ela ergueu de repente as pernas equilibrando na cadeira até tocar os joelhos com a testa e respondeu abafado, entre as coxas, Fugi porque queria escrever, e no túnel não tinha luz, mas aqui ninguém não escreve, aqui é igualzinho lá, todo o mundo em movimento, ninguém não fica, só tem rua. Na Lua não tinha rua? Não, só tem o trem, e tem quem fica em cima e quem fica embaixo, no túnel, e quem fica em cima anda no trem, quem fica embaixo faz o trem andar. E qual o seu nome?

Ela que era um anjo caído da cidade Lua onde as irmãs são desperdiçadas e não se pode escrever porque no túnel não tem luz, justo ela que era tão necessário ser chamada de alguma coisa especial, explicou que não tinha nome, porque o pessoal do túnel nunca tem nome já que não dá pra ouvir o nome de ninguém embaixo do trem, nem adiantaria chamar, você gritaria Maria! e todas continuariam correndo segurando os ferros e arrastando o trem quilômetros e quilômetros. Perguntei se gostava de Luna, e ela sorriu e corou de leve, e eu fiquei sem saber se ela achou de uma patética obviedade a minha escolha ou se era só a lisonja de ter um nome que trazia aquele rubor.

Minha mãe era mais bonita que eu. Impossível. Ela foi alimento de uma família de fora do túnel, trocaram por uma criança minúscula, não deu nem três dias minhas tias já tinham fome, essa coisa de comer hambúrguer é melhor mas fico pensando o que será que eles trocam com as famílias das vacas. Luna tentou passar os dedos entre os cachos, juntando mais gordura à maçaroca morena. Eu tenho uma aula agora, mas eu posso subir com você e você toma um banho, quer?

Ela que era um anjo caído do fundo das crateras da Lua me olhou dessa vez com olhos quase inumanos e alguma coisa no morango dos lábios sibilou deixando toda ela numa imprecisão de traços que me fez pensar que ela não estava inteiramente ali, Na Lua quase não temos água. Água faz muito bem, você vai ver, vai poder desembaraçar os cachos. Para quê? E de repente eu não sabia dizer para quê se desembaraçam os cachos e para quê não se deixam os cabelos para sempre cheios de gordura, manteiga, graxa e as unhas negras e o rosto chamuscado de fuligem, Para você não ficar mais tão sozinha. Para você gostar mais de mim.

Então eu percebi que ela, a moça deslumbrante, mas em todos os sentidos lunática, alienada, maluca, perigosa, imunda, das pernas e ombro de fora, dos pés descalços e forrados de uma carcaça cinzenta de mijo, cimento, grama, vidro, areia e cigarro, ela que eu tantas vezes vira e nunca tinha pensado que pudesse falar, que pudesse pensar, que pudesse precisar de dinheiro para voltar para a Lua, ela era incrível e era toda ela completamente encantadora e apaixonável. Percebi que ela era incrível não no sentido de inacreditável, porque a essa altura eu já não duvidava de nada e já pensava em completar o preço da passagem de volta. Ela era incrível porque a sua própria existência era bonita demais para que não fosse apenas arte, ela era toda ela uma impossibilidade. Ela, justo ela que até então não tivera nome, fugira de um lugar que, fosse onde fosse, certamente por muito pouco não a devorou numa troca injusta com as famílias dos trens, não a macerou num acidente de trabalho nos túneis, não a deixou toda a vida sem luz, sem espelhos, sem cores.

Eu gosto de você assim, pode continuar suja. Vou pensar. Luna cruzou as pernas e encostou na cadeira olhando a rua, Tudo igual, sempre o movimento. Ela tinha o ar de quem não precisaria mais sair daquela mesa, de quem tinha o tempo do mundo, do mundo e de outros mundos para ficar, nunca mais correr atrás ou embaixo dos trens. E como eram esses túneis? A gente era muita, tanta que chutava os calcanhares da frente, tropeçava. tinha de segurar a parte de baixo do trem, com os braços para cima, em fila, todas correndo. o problema é que era escuro, e barulhento, não se via, não se ouvia, ninguém falava. quem cansava e caía era logo levado de refeição. E você caiu? Caí, e fugi. daí caí lá da Lua direto aqui. E como era na hora de brecar? Era a pior parte, perto da estação a gente ia cravando a sola do pé no chão e arrastando terra e pipocando pedregulho, queimando, sangrando, e ia sem querer cavando um buraco cada vez maior até que uma noite a gente tinha de botar mais terra pra poder frear melhor.

Luna me olhava e o olhar era surpreendentemente leve, depois baixou os olhos à sola dos pés e devagar me mostrou, de novo mais um gesto que tinha sentido e propósito. A sola escoriada, queimada, algumas peles pendendo enegrecidas, e eu já não sabia se aquilo era asfalto quente com mijo, folhas e cacos de vidro ou se eram de fato do mecanismo de frenagem dos trens da Lua.

Você tem um namorado na Lua? Lá não tem homem. Como não tem homem? Eles foram embora, deixaram a gente lá sozinha. Mas e como vocês continuam nascendo? Luna fez um passe de dança com os punhos e cotovelos, depois fixou os olhos nos dedos dos pés, E por que não nasceríamos? Sem os homens, como nascem crianças sem os homens? Luna riu de novo, dessa vez como se a minha tolice fosse de uma espirituosidade invejável, E me diz o que homem vai ter que ver com criança?

Ela que tinha caído seminua de uma cidade subterrânea onde as mulheres trocam suas crianças, suas irmãs, e arrastam os trens pelos túneis em frenagens doloridas, a terra esfolando os pés, salpicando na cara, a escuridão, o barulho, o suor encharcando os olhos inúteis, as mulheres sem nome, sem voz e sem livros, ela que tinha fugido de lá para evitar o irreversível desperdício dessa coisa forte que sente no estômago, essa coisa que quer se materializar em arte, em palavra, em música, mas veio ficar contida aqui nessa mesa, nesse camisetão imundo e nesse x-burguer-salada de colesterol e cisticercos. Ela que olhava os ônibus ferozes e me perguntava curiosa como faziam as pessoas dos túneis para correr tão rápido segurando esses ônibus, e eu respondi que as pessoas estavam penduradas mas era dentro do ônibus, apenas, e ela me olhou com a sobrancelha de incredulidade, Todas? para quê? E eu que de novo não sabia dizer para quê, só sabia que as pessoas tinham lavado seus cabelos e calçado sapatos para então subirem no ônibus, Porque são necessárias em outra parte da cidade.

E ela que já não se movia, nem dançava, nem desperdiçava tantos gestos, apenas olhava os ônibus, os cachorros molhados, as gentes correndo, o prato acrílico de florinhas laranjas com o papel oleoso do hambúrguer, o homem do bar que por sua vez tinha aquele jeito de olhar, aquele olhar de homem que nunca mais veio incomodar nenhuma mulher na Lua, ela que estava ali imóvel de repente era um potencial inconcretizável, um metal derretido escoado nas masmorras da Lua, emparedado na terra cinza.

Mas por que você quer voltar para aquele lugar? E ela que tinha as irmãs e a mãe devoradas em trocas injustas e as pernas corroídas e as mãos doídas de levar pesados trens em torno da Lua, ela me olhava de novo com as sobrancelhas de absoluta incredulidade e balançava a cabeça desaprovando minha cegueira, ela que estava nessa cidade onde nem pode haver injustiça porque não há justiça para fazer o contraponto, ela talvez tenha me dito, se é que soube dizer, que aqui não existe, que aqui ninguém não é, ninguém fica, Aqui não dá. aqui é impossível.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Dos nossos ventos azuis-violeta

     Não é que a gente não devesse estar aqui, ou talvez seja melhor dizer que não é que a gente desmereça menos todo esse purgatório, mas é que tem alguma coisa na liberdade das mulheres que vale mais, alguma coisa azul-violeta que violentamente desaparece no baque seco da grade. Acho que é uma certeza inegável de que a gente livre estaria fazendo pelo menos cinco ou seis coisas diárias que se não fossem bonitas seriam pelo menos fundamentais, enquanto os homens não, nos homens não há como apostar muita coisa, não se vê qualquer vento púrpura adornando os movimentos, embelezado a liberdade deles.
     Anteontem Mirtes e eu deitamos pescoço com pescoço no sol meio pestilento daqui – não sei se já comentei que o sol que bate aqui parece um sol condenado, deve estar cumprindo alguma pena quase perpétua no retângulo celeste desse quintal – e fomos pensando no que a gente estaria fazendo se estivéssemos na rua. A Mirtes falou que num sábado desses um parque com os meninos não faria nada mal, eles brigavam muito pelas pipocas que jogavam nos peixes mas estavam sempre contentíssimos. Ela disse também do cachorro, um peludo enorme, desse tamanho, que ia sempre no parque e pulava desastradamente nas pessoas.
     A Mirtes é uma dessas moças que se estivessem soltas nem crime estariam cometendo, só haveria coisas fundamentais ou bonitas para fazer no sopro azul-violeta dos dias, minha borboleta. Ela tinha um marido desses que não vale a pena descrever porque todo o mundo já sabe somar as palavras num quadro óbvio, bebida, desemprego, bebida, mãos, braços, pêlos, bebida, saliva, pedaços de pau, nacos de garrafas, gritos, gordura, móveis quebrados, esgoto, esse tipo de marido. Na frente dos meninos, numa noite, em mais uma daquelas noites que ela nem descreve porque nem precisa já que é só somar aquelas palavras a algumas outras mais longas como a insuportável insistência dele em permanecer ali, o perigoso vazio que ele chamava de amor, a humilhante mania de xingar, é impressionante como esses maridos xingam e a gente já nem liga mas talvez as crianças, os vizinhos, nunca se sabe o quanto ligam para as palavras soltas e às vezes não são nem capazes de somá-las todas para fazer um quadro óbvio e compreender. Eles não compreenderam, foi preciso sugar-lhe os ventos azulzinhos e deixá-la aqui nesse sol estático me contando da noite em que ela de repente decidiu se limpar de todas essas palavras pesadas, peso de mais na vida da gente.
     Mirtes a essas horas poderia estar numa reunião da escola dos meninos mas agora já nem está certa se ainda há de fato uma escola dos meninos, poderia estar cozinhando um ensopado com patos, legumes, macarrões, poderia estar na fila de um banco pagando a luz, poderia estar num samba com a vizinha duas casas ao lado, numa rede sob as árvores, num ônibus abarrotado de gente até a casa da patroa, numa farmácia procurando absorventes, a Mirtes estaria em qualquer lugar envolta em ventos violetas, fazendo coisas bonitas ou fundamentais, e de fato há qualquer coisa na liberdade feminina que o mundo não deveria extirpar assim. Eu mesma se estivesse lá, já faz tanto tempo, é quase certeza que não estaria fazendo nada de muito errado, e no final das contas eram algumas poeiras que eu levava, de vez em quando umas plantas, e a moçada comprava contente, até nesse momento eu sentia o azulado da liberdade me enfeitando os gestos, quando me viam ficavam enfeitiçados, o olho longe mas as mãozinhas ávidas, e às vezes diziam que eu estava salvando a vida deles, era assim que diziam.
     Mas eu digo que hoje nesta segunda-feira, depois de tanto tempo eu provavelmente estaria levando a Marjorie para a aula de dança, dizem que ela está arrasando, ou dando banho na cachorra, eu também tenho uma cachorra linda que o dono deste lugar não deixa vir me visitar, acho um completo absurdo, um cachorrinho aqui dentro ia ser um encanto, as meninas quase iam ficar violetas, correriam no quintalzinho e o bicho deslizando nos corredores encharcados com sabão, rodos, panos, baldes, restos de arroz, papéis higiênicos, nós aqui dentro também temos nossa soma de palavras. Ou eu estaria terminando de fazer o almoço ou de escrever um livro, tenho ficado metida a escrever livros, e depois tomaria um banho e me encontraria com meu mocinho lindo numa cama daquelas bem macias, ele me abraçaria com as pernas bem quentes e diria as coisas que gostava de dizer, aquele mocinho que em tantos anos não veio uma única vez me abraçar aqui, e então só no fim da tarde eu iria para o restaurante num emprego bonito de garçonete que já me prometeram será meu assim que eu recuperar os meus ventinhos roxos.
     Eu não sei dizer se ficava mais nervosa quando passava pela revista, os olhos da polícia vacilando entre a minha mala eletromagnetizada pela magia do raio X e os meus olhos forjando inquietações de turista, quem sabe um mapa colorido nas mãos, o estômago borbulhando de cocaína e o pânico terrível de decolar, a decolagem era o pior momento, chorava. E era aí que o estômago se revirava de plástico borracha e fogo, um calor terrível por dentro, não sei como os aviões não caíam só por conta da convicção que eu tinha de que cairiam.
     No dia em que não deu certo, quando o policial olhou nos meus olhos e viu qualquer coisa evidente, acho que já era o medo do avião me queimando o estômago e os olhos, naquele dia o pavor estava todo especial. Enquanto ele me levava para uma salinha onde possivelmente me eletromagnetizariam e depois me olhariam embaraçados, porque até eles sentem pena desse momento em que tudo desaba por conta de uma coisa que você comeu e que deveria ser um segredo só seu, uma coisinha sua no seu estômago, eu ia caminhando assustada até a salinha mas pensando que pelo menos não era o avião que desabaria, e depois me flagrei chateada porque naquela noite nenhum avião caiu, não fui salva de coisa alguma.
    Dali em diante foi demorando um tempo para eu perceber que a ventania azul-violeta desapareceria definitivamente, e eu nunca mais vi a Marjorie em qualquer lugar que não fosse acinzentado, que não tivesse um cheiro acinzentado, cheio de mulheres completamente acinzentadas. Ela vem aqui com a minha mãe, mostra uns passos tímidos de dança, dá uns risos discretos com os meninos da Mirtes, e eu fico com a impressão de que todo esse ritual, a viagem, a madrugada escura na fila, a revista, a violação, o cheiro, o sabão, o sol condenado, o cinza, todas as palavras juntas, tudo isso só para ver a mãe já trazem a menina sem o vento azul, sem nada para me oferecer. A liberdade fica sempre lá fora.
    Eu não tinha marido nenhum pra matar porque o meu sumiu antes que desse tempo de chamar de marido, de pai, de homem, antes que se pudesse pedir, gritar, matar, e deve ter sido melhor assim. A Mirtes conta que quando a faca de fato entrou ela não acreditava, ela achou que no final tudo ia continuar como antes, ele iria para o hospital e voltaria cuspindo ódio ou quem sabe arrependimento. Olhou os meninos que agora não sei se estavam mesmo embaixo da mesa ou se esse foi um toque dramático da minha cabeça, olhou e continuou segurando o cabo da faca e depois olhou o bêbado que também a olhava e talvez em algum lugar da consciência ele já soubesse que não seria apenas uma costurinha no hospital para que tudo voltasse ao normal. Ela acha que viu um sorriso, ele estava sorrindo.
     Disse que é uma sensação granulosa, a faca suja de peixe atravessando rápida os tecidos, veias, fibras e na hora não parece que foi você, que foi sua mão, parece que foi a faca, a faca sozinha buscando silêncio, saúde, paz, Amén. A Mirtes deixou a faca ali dentro mesmo e chamou a ambulância, diz que enquanto esperavam ele ficou ali ajoelhado, quieto como nunca, imóvel, um silêncio mágico. Sentou na frente dele e ficou pensando se pedia desculpas, ela também sangrando do soco no olho, na boca, na orelha, e resolveu só aproveitar o silêncio, a última coisa bonita e fundamental que ela fez antes de lhe tomarem os ventos violetas.
     Eu não tinha marido pra matar e acabei me enfiando naqueles aviões turbulentos cheios de turistas animados, eu mal conseguia conhecer as cidades, naquele dia eu ia para um lugar diferente, estava decidida a passar pelo menos uma noite lá, quem sabe sair pra dançar. O policial olhou a barriga eletromagnetizada e eu senti como no ultrassom que descobriu a Marjorie quando tudo menos ela deveria estar se formando dentro de mim. Ele não me pediu muita explicação, apenas me perguntou se eu sabia o que havia na minha barriga, como o médico perguntou quando descobriu o bebê. A gente sempre sabe.
     Naquele dia eu também por alguma razão fui me enganando, pensei que talvez me arrancassem as drogas da barriga e me levassem do hospital direto para casa junto da menina, da minha mãe, da cachorra, e elas me dariam broncas terríveis e eu choraria disposta a recomeçar tudo, a arrancar a faca do peito dos maridos, costurar as chagas, refazer famílias, naquele dia eu já sorria pensando que finalmente tinha despertado de um pesadelo esquisito que não combinava comigo. Mas a minha casa ficou lá, nunca me levaram de volta e eu não consigo me lembrar do cheiro, tinha um cheiro doce do xampu da Marjorie misturado com omelete e mexerica, um cheiro que passeava pela sala, já pedi para minha mãe trazer o xampu, o omelete e a tangerina, mas não funcionou, talvez seja preciso o vento azul-violeta de três mulheres livres ajeitando a casa, fazendo a comida, a lição de casa, os livros, remendando os vestidos.
     Eu sei que parece cruel dizer uma coisa dessas mas as mulheres nunca deveriam ser presas assim, como eles, nessa desnecessidade. Há muitas coisas bonitas e fundamentais que deixam de ser feitas lá fora, há toda uma ventania doce que nos abandona, que deixa de girar em volta da nossa cintura, dos braços, saias, cabelos. Há uma infinitude de cores e de cantos que é tomada de nós e também do mundo que perde em cores e cantos, acúmulos de nós nessas masmorras macilentas.
    E mesmo aquelas que se estivessem lá fora estariam fazendo os mesmos crimes, também se ocupariam de tantas coisas bonitas ou fundamentais que o balanço acabaria positivo. Por mais que às vezes a gente tenha a mesma culpa que eles, a certeza de que sempre, durante toda a vida, durante toda a história, fizemos tanta coisa certa faz desse cárcere uma injustiça maior. A certeza de que, ao contrario do que dizem, a primeira a errar nunca foi a gente, nunca vai ser, em nenhum dos tantos casos que acinzentam por aqui, a certeza de que estaríamos todas agora tomando conta de assuntos bonitos ou fundamentais, levadas na harmonia dos nossos ventos azuis-violeta, essa certeza faz com que a prisão de uma mulher seja a mais absoluta violação da energia do mundo, o mais incompreensível desperdício de vida.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Descanse em paz

e me tirou o direito a uma agonia profunda, a um descabelar sem precedentes na história de todos os nossos amigos, parentes, talvez dos livros. Imagine-se o que não teria sido a tragédia da sua morte nos nossos vinte e poucos anos, nos nossos vinte e tantos planos, a paralisia completa de todos os meus sentidos diante da notícia, a vista embaçada de medo, a frouxidão dos músculos, a falta de forças para falar, protestar, e todos juntos com suas mãos tão jovens me erguendo do chão no espetáculo do túmulo e semanas depois todos já clamando por um recomeço, porque seria preciso um recomeço.

Poderia ter morrido meses antes da festa, ou dois, três anos depois do casamento, quem sabe eu ainda com a Cabíria no ventre, cada chutezinho uma vontade de vida e eu atada à catatonia da sua morte imprevisível, arrebatadora, inaceitável. Eu para sempre com a dignidade da jovem viúva, eu com o direito a mil ligações telefônicas. Eu com a beleza artística de longas camisolas negras a girar no carpete do quarto ao som de cameratas barrocas, gregorianas, despedaçando rosas em pétalas pegajosas de lágrimas, os vizinhos aos gritos no portão, e a ingenuidade risível de um copo com água e açúcar que me trariam incansavelmente até que eu conseguisse abandonar o sonho de você, o nosso sonho.

Mas você com a sua paciência deixou o tempo passar em nós, você me privou de uma tragédia a que eu pudesse eternamente culpar pela absoluta mesmidão dos meus dias, a que eu pudesse atribuir essa indiferença dos anos uns dos outros, ou pelo menos conferisse à trivialidade das rebeldias de Cabíria a melancolia misteriosa dos órfãos. Você deixou minha vida dormir do seu lado, no desconforto sempre alerta dos insones, até que ela não soubesse mais aonde ir ao acordar, até que ela não quisesse ir a lugar nenhum.

E agora, quando já era tarde demais para que sua morte me trouxesse uma tristeza profunda, quando já não há um golpe que me traga destaque, qualquer coisa pesada nos olhos, qualquer coisa de sábio no sorriso que por mais que se abrisse não seria pleno, agora quando já estávamos quase prontos a aceitar nossos passos juntos, agora que já não se pode perder um futuro, quando já não há plano, não há sonho a se destruir, a sua morte veio cedo demais, e, uma vez que veio cedo, veio demasiado tarde.

Agora que eu talvez já não tivesse por você o puro amor a ser violentado pela perda, a sua morte me traz uma tragédia medíocre, que me priva do asilo das suas conversas amenas, do seu chá, das suas idéias recentes de envelhecimento e companheirismo, da continuidade imaculada de um projeto, e me atira de repente no terreno das senhoras solitárias, sujeitas à piedade das outras senhoras, aos pensamentos perversos de quem me prevê longos vinte e cinco, trinta anos de uma castidade amarga. Você que não se foi a tempo de me tornar especial não podia me deixar aqui assim, sem beleza nem arrebatamento suficiente para rodar com as pétalas de rosa estraçalhadas entre as unhas. E ninguém virá me ajudar a recomeçar, não há recomeço. A tragédia ficou em mim, amornada, frouxa, a me amolecer ainda mais as carnes, os lábios, as bolsas embaixo dos olhos.

Hoje, na voz quase embargada de um choro encruado, nessa dolorida ausência do desespero que não me entra, não me toca, nessa ausência profunda do que seja você e do que não seja você, nessa incapacidade que sinto para o descabelamento, hoje só consigo dizer que mais incompleta do que a sua vida terminada assim numa freada é a minha vida que você embalou num sono indolente até ontem e condenou a um coma social a partir da madrugada.

Hoje só consigo dizer, meu bem, que a casa não respira, não há vozes, quase não há luzes, e é provável que nunca mais haja geléia de physalis, porque nunca fizemos questão, eu penso. Dizer que Cabíria não me olha nos olhos, talvez porque tenha medo de não encontrar nada, e também que sem você não há desejo nem dor, e as visitas todas perderão o jeito para a amizade, todas com a sensação de que os móveis ainda lhe pertencem, vão sentar de leve na borda do sofá porque até as cadeiras, as almofadas, as poltronas devem estar condoídas.

Só tenho a dizer, meu amor, que espero haja muita vida nesse lugar onde eles colocam gente como você, porque eu estou condenada para sempre, todo tempo, até o fim, a descansar em paz.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Nós que já enterramos nossos mortos

Nós que já enterramos nossos mortos, nossas caudalosas torrentes de mortos. Que já enterramos artistas, feiticeiras, marginais, e enterramos livros, músicas, vozes, até que fomos perdendo sob os nossos pés também a noção, o apego, o susto, o choque, a crença e também a incredulidade. Nós que já pisamos sobre os corpos das melhores e das piores coisas que foi preciso enterrar, pisamos em cima dos séculos. Nós que estamos no topo disforme de uma montanha insondável de milênios, guerras, conceitos, línguas, tribos, nós que enterramos o passado e sapateamos nos escombros, na ossada de tantas tragédias com nossas manias, gilletes danones modess e band-aids, nossos fossos fundos, nossos dutos, óleos, nossos pingentes de ouro, nossas minas. Nós que já não tínhamos mais o que enterrar, enterramos nossas vidas, ainda vivas, ao vivo, em rede internacional.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

O Mundo das Coisas que Caem



este texto foi escrito há aproximadamente 7 anos, no primeiro colegial, quando tinha uns quinze anos -- veio depois de uma daquelas falas inesquecíveis da mila. Eu me lembrei dele hoje porque nesse momento me vem muito a calhar.
Hoje eu sonhei que morri, e o céu era um restaurante baixo-astral cheio de adultos desconhecidos, e teria de passar muitos e muitos anos sozinha ali até que meus amigos começassem a morrer para que eu pudesse reencontrá-los. enquanto isso, eles ficariam lá na Terra, todos juntos, vivendo sem mim.
O munda das coisas que Caem
Uma saudade estranha, esta. Não sei bem se vem de dentro ou se grita por trás. Parece até que chama lá na frente, saudade das coisas que não virão mais.
Na verdade, vai me cutucando por todos os lados e eu nunca vou saber dizer bem onde é que dói. Saudade do que não consegui, das pequenas chances que eu perdi, das oportunidades que nem tive. Como se todas aquelas pequenas coisas que caíram ao chão e nunca foram encontradas estivessem agora fazendo falta. Todos os milhares de tampinhas de pasta de dente que sumiram instantaneamente ao tocar o azulejo do piso, todos os comprimidos devorados pelo chão debaixo da pia da cozinha. Os bomboms, salgadinhos, brincos, pingentes, clipes, lentes de contato. Tudo que sumiu aos poucos e agora dá saudade...
Uma aMila minha, que sempre dá saudade porque eu quero mais e mais, disse bem que as coisas que caem vão para o Mundo Paralelo das Coisas que Caem. Eu vou lembrando o rosto íntimo dizendo esse absurdo e vou rindo gostoso, uma risada profunda, vai chacoalhando tudo por dentro, e a gargalhada alta já até molhou os olhos e eu percebo que rio mesmo é de desespero. Porque apalpo as dobras do sofá, e rastejo forçando a vista pelo chão, e procuro embaixo do tapete e até já sinto o joelho cansar de ajoelhar. Procuro e procuro e não acho as coisas que não voltam mais.
E quando eu vejo já perdi a aliança, o terço e os ponteiros; os amigos, as festas e os músculos. Um mundo paralelo. A saudade me chama é de lá.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

A minha indiferença



O meu desprezo tem a força do meu amor, potência violenta e escaldante desses vulcões de mim. O mesmo vigor e a mesma energia, não adianta fugir que o meu desprezo tem a mesma valentia, o mesmo esforço. A mesma violação. Meu desprezo me imuniza das lembranças, dos tons pastéis, das aquarelas. Meu desprezo me imaniza e atrai o ferro do mundo, metal em brasa me empedernindo os seios, os olhos, o abraço.
Meu desprezo faz o mesmo estrago que todo o meu amor, traz o mesmo espanto. Meu desprezo mantém o mesmo e sempre vivo desconforto. Segue assim lacerante e destemperado, e diligente me protege das minhas tantas maleabilidades.
Segue assim até ofuscar o objeto, encobrir de cinza e rocha o que um dia teve algo de bonito. Até que reine a paz desconfiada, o silêncio e o descaso de uma qualquer indiferença.
E a única indiferença possível, essa que eu espero sem perceber que não virá enquanto não me esquecer de esperar, é na verdade o embate fatal entre o meu amor e o meu desprezo, esses titãs implacáveis de mim. E, no instante em que ela chegar, o objeto do duelo – objeto que é – já será gigante e infinito.
A única indiferença possível virá quando você estiver tão imenso que encobrirá no seu negrume tudo o que possa haver em mim, num eclipse maldito.

segunda-feira, 15 de março de 2010

chez nous

A porta
O sofá bordô
O incenso de gengibre e canela
O tapete de fuxico pisado
A escuridão avermelhada das lampadazinhas
O abstrato do quadro
A janela esvoaçante de cortinas
Gigante
O silêncio suspenso sobre o ruído total
A noite, o sábado
O telefone
...O silêncio...
O negrume do espelho
A mesa mogno
O vinho com pedaços de frutas
O livro
A cadeira
O pé pendente
Unhas branco renda
O cachorro
O rabo.
A moça sozinha
-- A solidão doída desses sábados --
Mas o cachorro
Língua
rabo
espreguiçadas de contentamento
barriguinha no pé pendente
e a plenitude.

quinta-feira, 4 de março de 2010

minhas horas



Minhas horas uma cachoeira portentosa nos meus ombros, véu de noiva desvairada erodindo os meus barrancos
Minhas horas me levando a pele me afrouxando as ancas e vergando os ossos
Minhas horas tão meninas que não me escutam
Tão lindas que já nem minhas
minhas horas me girando confusa: eu um turbilhão de potencial inaplicável
minhas horas sumindo na vingança brutal dos sonhos traídos

comprar mais horas, instalá-las bem no fim do dia
horas em claro
horas a fio
as horas
nuas

o Chapeleiro Maluco já disse que é preciso ser amigo do tempo
e ele obedece
ele respeita
quero guardar as horas numa piscina quente e boiar tranqüila
contê-las num balão bem lento
com toda a minha gente dentro
costurá-las num vestido roxo-ocasiões-especiais
-- nada dessas horas danadas me mordiscando os pés enquanto derreto no ônibus ou passo o fio dental –
Preservá-las em 200 caixinhas de música
Pandoras preciosas do meu tempo
Que a cada espiadela me enchem de vida
Mas deixam espalhar qualquer coisa assombrosa
Qualquer coisa vazia
Até que eu corra pelo quarto abrindo todas
-- vazio –
Bailarinas girando
--minhas horas –
e de repente uma caixinha vai ter só um velho espelhinho escurecido.
Meu olho esquerdo ao fundo e uma última e solitária hora que me escapa.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

quando ela vier dormir aqui

quando você vier dormir aqui, vou esconder num armário as montanhas de papéis neuroticamente empilhados por cinco anos, a jurista incrível que deveria ter sido e não foi. Vou ajeitar os ursinhos pra você sentir a fofura do meu espaço, minhas reminiscências da infância que era ontem mesmo.
Vou arrumar os livros, deixar mais perto dos olhos os mais marcantes, porque uma hora você vai olhar e perguntar com o interesse integral que dedica a todas as perguntas – essa minha mania deselegante de perguntar e me esquecer de prestar atenção à resposta. Vou contar a história de um deles, quem sabe um Stephen king e vou ter um pouco de medo na hora de dormir.
Quando você vier, vou comprar frutas de todas as cores e fazer os sucos mais bonitos, comprei canudos de acrílico. Você vai chegar contando da baliza e meio esquecendo a mochila nas costas, cachinhos esmagados sob as alças.
Vai ficar de calça e tênis até quase meia noite, pegando o jeito da casa, uma vez vai abrir a geladeira atrás de uma coisa inexistente. Vai ser uma noite fresca, rede e suco na varanda. O cachorro vai pedir um carinho desajeitado e depois desistir num cantinho perto da porta.
Depois você vai entrar no escritório e olhar os porta-retratos, você de cabelo liso e uma bolsinha dourada nas mãos. A gente vai arrumar as camas e falar do passado, cada vez mais passado o passado da gente, as conversas ficando melancólicas. Mas depois umas risadas altas – meus pais estarão em Santos – e a gente vai lembrar que mesmo as fases mais trágicas eram as mais engraçadas, são as fases de hoje que são assim, estranhas, que não encaixam direito naquela coisa dos planos.
Você vai botar um pijaminha infantil e apoiar um travesseiro na parede atrás da cama, olhinho de sono e muita coisa ainda pra falar, vamos falar bem dos outros. Vou deitar no seu colo e você vai acabar tendo de me fazer algum carinho de vez em quando, e vou ficar assim até você parar de contar os segundos pra minha cabeça sair dali, até você começar a olhar as prateleiras e fazer perguntas, quem sabe até o diário dos 12 anos que é o que há de mais tragicômico na minha história.
Quando você vier dormir aqui, vai me entender um pouco mais, vai sentir as minhas coisas sempre tão sozinhas nesses móveis cor-de-rosa, de manhã vai fazer um pãozinho com suco velho, pensar em descer pra piscina. Vai deitar na rede e fechar os olhinhos como se aqui também fosse o lugar de acordar, a coisa mais natural do mundo.
Quando você vier dormir aqui vai ser como se a gente tivesse todas as idades ao mesmo tempo, quem sabe brincar de lego e construir a nossa casa no chão do quarto, assaltos à geladeira. Vamos planejar a família em listas, sempre as listas, os nomes dos filhos, dos maridos, dos edifícios, nomes dos livros que eu ainda vou escrever um dia. Vamos falar do ano que vem, das nebulosas expectativas, e rir, rir muito da minha falta de jeito com as tarefas do mundo adulto. Rir do abismo fundamental entre os nossos ritmos.
Quando você vier dormir aqui é a vida toda que vem passar um tempo íntimo comigo, porque é você quem ouviu todo o meu passado e está irremediavelmente presente no meu futuro ainda que decida desaparecer em reservas indígenas a quilômetros daqui. Vai ser a noite em que mais vou demorar pra dormir, a criança que planeja a impossível noite em claro pra aproveitar cada segundo. Mas vai ser, com certeza, a noite em que vou dormir realmente completa.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Para que as mocinhas e os gatos possam amar completamente



Nós precisamos de você. Precisamos que abra os olhos e diga sorrindo que viveu festas incríveis de fim de ano num sonho profundo e confuso de contusões e plaquetas mas que tudo foi regenerando feito os fígados heróicos dos nossos grandes mitos. É necessário que você levanta-te-e-anda porque não podemos conviver com essa lenta revelação do retrato da nossa vulnerabilidade, surgindo aos poucos num quarto avermelhado.
É preciso que você resista porque nós, nós estamos acostumados a ver nossos homens morrerem de fome, de acidente, de tragédia, de deus, diabo, bomba, de amor e de ódio. Bastava que houvesse um motivo, uma razão e desligaríamos nossas televisões quase satisfeitos, a repetir incredulidadezinhas cansadas sobre a barbárie e o caos. Saberíamos que há estrupícios que golpeiam inocentes porque são negros, homossexuais, ou porque têm o dinheiro cobiçado num assalto malsucedido, ou porque aconteceu qualquer uma das nossas tantas razões que nos preenchem da resignação e automação dos lamentos de elevador.
Mas você não, é preciso que tudo isso passe ou que alguém descubra a razão dos golpes repentinos, um motivo que seja, quem sabe você estivesse lendo justamente o livro que o homem queria ver. É preciso um motivo ou uma salvação antes que você escancare diante de nós o grande paradigma dessa dolorida efemeridade.
Desde que você desmaiou assim fundo, dói sentir a preparação inútil dos dias. Cada segundo de estudo, trânsito, cada partícula de plano para um pseudofuturo parece ingênua e tristemente ridícula porque um dia qualquer desses tudo acaba em três golpes gratuitos, e é tão angustiante ficar aqui perdendo tempo nesse buraco quente que é o metrô ou nessas salas fedidas onde a gente tem de trabalhar.
É preciso que você acorde e conte que isso tudo é uma brincadeira, porque não é possível que as pessoas, que tudo isso que elas constroem dentro de si, que acabe tudo assim como nos videogames, mas até os bonecos do videogame têm explicação para o gameover. E o seu silêncio por enquanto só me dá vontade de largar tudo, qualquer coisa que se assemelhe a um planejamento. Largar o trabalho, o estudo, e ficar todo o tempo que ainda me pode restar fazendo o que tiver de mais imediato, de mais despretensioso, só para não ser enganada por essa coisa horrível do acaso.
Mas aí eu lembro que era isso que você estava fazendo, dando um tempo pra você, uns minutos de um livro colorido num canto da livraria. E então eu só consigo pensar que é preciso que você acorde e diga que está tudo bem, e restabeleça a ordem das coisas. Senão vou viver pra sempre feito a mocinha que não começa nunca a se arrumar: o pânico de o namorado cancelar o passeio – cabelo, batom, maquiagem, vestido, quanto mais trabalho maior a dor do tempo perdido.
Não quero ser abandonada pela vida já trajada para o triunfo e sem receber as medalhas prometidas, largada numa cama quando ainda houver tanta dança, tanta música me esperando nas festas. Enquanto você não acordar, nós vamos viver feito um gato reticente, num canto escuro da sala, estranhamente distante do dono, tamanho o medo indisfarçável de, de repente, amar mais do que sete vidas poderiam suportar.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Texto do Reveillon do ano passado



2009 – O que não quero em 2059

Em 2059 não quero uma neta
distante
há duas gerações de anos luz de mim
desfilando novos dilemas mesquinhos
novas tendências da moda música política
computadores biônicos
tridimensionais
Não quero visitas
Caridade
Filhos ocupados mas diligentes
Evitando tabus
-- porque velhos são cheios de tabus
Mesmo eu –
Novos tabus
das novas tendências
que eu não vou entender
Não quero os jovens
achando que sabem qualquer coisa
que eu não sei
não lembro
ou nunca vi
Eu que sei coisas
Que nem em 2059 os meus netos vão saber
Eu que em 2009 penso que sei bem mais que os meus avós
Em 2059 não vou querer que me respeitem
Que me poupem
Dos novos assuntos
cabeludos
me desligando pouco a pouco do que há de bom
Em 2059 vou passar o ano novo pelada
em cima de alguma mesinha de centro cafona
rugas nos seios barriga bunda sexo
-- muitas e muitas rugas no sexo--
serei um disparate uma barbaridade um vexame
Vou devorar a vida o tempo as festas do colégio da minha filha
--vai ser tão bonita, a minha filha --

Cinqüenta anos em mim serão cinqüenta anos a menos no mundo.

sábado, 2 de janeiro de 2010

MIMETÓS


A contração discreta no cenho a cada puxada insistente nos fiozitos ainda rentes do rosto, o queixo já na vermelhidão dos poros doídos. A última inspeção no zoom do espelho que embaça à mínima respiração,
—Porcaria de espelho.
As primeiras palavras da manhã saem irremediavelmente escuras, espremidas no inchaço da laringe. Cobre o pescoço com as mãos e procura no reflexo um ângulo bom, um charme de cabeça que esconda a bolinha quase galinácea na frente da garganta.
Lara irrompe no quarto em busca compenetrada por um sapato,
—Você viu o outro pé deste?
mas já desiste calçando qualquer coisa roxa,
—Meu Deus, Nima, você ainda está assim! Desse jeito não chegamos nunca.
Nima não abala a pose no espelho, sente a pele das bochechas com o dorso da mão.
—Fica sempre uma sensação de carcaça...
E se ressente da voz que desmonta o jogo na aridez indisfarçável do acordar masculino.
—Está uma graça, e veja se vamos logo, Nima, seja um pouquinho sensata e abra mão da meia hora da maquiagem, anda.
Nima se ergue sem mudar o ritmo, traz o estojo de maquiagem com um sorriso de travessura.
—Falo sério, criatura. Hoje estou irritadíssima e você de novo pensando que mulher é assim, o tempo todo saiazinha e enfeitinho na cara, ah, faça-me o favor, cansei desse atraso de vida.
Nima abre o olho com os dedos e molha o lápis na ponta da língua, Lara minúscula espera de pé já com a bolsa no ombro.
—Ah, Larinha... Sabe o que eu sempre quis ser? – guarda o lápis e puxa do estojo um conjunto de sombras — Um manequim, uma boneca dessas de loja, sabe? Sempre achei lindo imaginar as vendedoras diligentes colocando os braços nas mangas dos vestidos, as mãos de gesso em posição de balé. Depois ajeitam as perucas, avaliam as combinações, ajustam o tecido à cintura com alfinetes... Fico pensando que elas devem ter até nomes, essas bonecas.
—Ah, não, Nima! Rímel, não! Anda logo, senão vou sozinha. Olha pra mim, está vendo algum rímel, vestidinho, esses seus saltos altos impossíveis!? Não precisa ser mais mulher que todas as mulheres que você conhece!
—Lara, Lara... Tudo tão automático pra você, minha pequenininha. Você pode abrir mão do que você quiser que continua tendo qualquer coisa nos olhinhos que dá conta de dizer tudo. — aperta os cílios no curvador e sorri melíflua olhando a outra pelo espelho — Eu só vou poder abrir mão disso tudo no dia em que todas as mulheres de todo o país tiverem outras manias, e quando todos os homens tiverem outras manias sobre todas as mulheres. — Abandona o espelho e num salto infantil estende um vestido à amiga — Mas por enquanto sou uma manequim sempre na moda, pode me vestir que eu fico bem quietinha na vitrine.
Lara enfia os braços dela nos buracos das mangas e passa com força a gola pela cabeça, a maquiagem num quase-borrão desastroso.
—Mas você acredita, Larinha, que eu descobri que as vendedoras arrancam os braços, colocam a roupa na manequim, e depois encaixam de novo?? A doida ainda se demorava um tempão de conversa pro ar e a desgraçada ali me olhando sem braço toda sumida num camisolão...
—Anda, Nima, não te tirei braço nenhum.
—Não tirou porque não precisa... Experimenta inventarem aí que mulher-que-é-mulher não anda por aí com braços. Ah! Eu era a primeira a ter de tirar os meus.
—Vira mulher de uma vez então, Nima. Vai lá, dinheiro é o que não falta. Não agüento mais, parece que não quer ser mulher inteira, credo.
—Já falei que não faço de jeito nenhum. — Sobe o zíper e procura um sapato na desordem colorida dos gavetões — Mania sua de achar que mulher é só cavar um buraquinho, eu disse, a qualquer hora me arrancam os braços pra enfiar mais fácil o vestido. Depois me arrancam o sexo, revestem tudo com uma pele fria e eu saio por aí, a mais genuína das infelizes... De jeito nenhum, Lara. Pode ir chamando o elevador, só falta trocar de bolsa. De jeito nenhum... Você pode negar o quanto quiser, mas meu pênis é bem feminino.
—Ah meu deus... Vem logo, o elevador já está aqui. Daqui a pouco você me aparece com um pacote de absorventes.
Nima se detém um instante no espelho da passagem, alisa o rosto num carinho apaixonado.
—E quando o ódio agride, Lara, quando o mundo vem com cinco pedras na mão pra cima de mim, eu preciso de um homem sempre pronto a revidar cada soco, a ameaçar os monstros com golpes cegos de braços. E esse homem leal eu só acho em mim.

Mari Carrara - inspirado no estudo de Hélio R. S. Silva