sábado, 27 de fevereiro de 2010

quando ela vier dormir aqui

quando você vier dormir aqui, vou esconder num armário as montanhas de papéis neuroticamente empilhados por cinco anos, a jurista incrível que deveria ter sido e não foi. Vou ajeitar os ursinhos pra você sentir a fofura do meu espaço, minhas reminiscências da infância que era ontem mesmo.
Vou arrumar os livros, deixar mais perto dos olhos os mais marcantes, porque uma hora você vai olhar e perguntar com o interesse integral que dedica a todas as perguntas – essa minha mania deselegante de perguntar e me esquecer de prestar atenção à resposta. Vou contar a história de um deles, quem sabe um Stephen king e vou ter um pouco de medo na hora de dormir.
Quando você vier, vou comprar frutas de todas as cores e fazer os sucos mais bonitos, comprei canudos de acrílico. Você vai chegar contando da baliza e meio esquecendo a mochila nas costas, cachinhos esmagados sob as alças.
Vai ficar de calça e tênis até quase meia noite, pegando o jeito da casa, uma vez vai abrir a geladeira atrás de uma coisa inexistente. Vai ser uma noite fresca, rede e suco na varanda. O cachorro vai pedir um carinho desajeitado e depois desistir num cantinho perto da porta.
Depois você vai entrar no escritório e olhar os porta-retratos, você de cabelo liso e uma bolsinha dourada nas mãos. A gente vai arrumar as camas e falar do passado, cada vez mais passado o passado da gente, as conversas ficando melancólicas. Mas depois umas risadas altas – meus pais estarão em Santos – e a gente vai lembrar que mesmo as fases mais trágicas eram as mais engraçadas, são as fases de hoje que são assim, estranhas, que não encaixam direito naquela coisa dos planos.
Você vai botar um pijaminha infantil e apoiar um travesseiro na parede atrás da cama, olhinho de sono e muita coisa ainda pra falar, vamos falar bem dos outros. Vou deitar no seu colo e você vai acabar tendo de me fazer algum carinho de vez em quando, e vou ficar assim até você parar de contar os segundos pra minha cabeça sair dali, até você começar a olhar as prateleiras e fazer perguntas, quem sabe até o diário dos 12 anos que é o que há de mais tragicômico na minha história.
Quando você vier dormir aqui, vai me entender um pouco mais, vai sentir as minhas coisas sempre tão sozinhas nesses móveis cor-de-rosa, de manhã vai fazer um pãozinho com suco velho, pensar em descer pra piscina. Vai deitar na rede e fechar os olhinhos como se aqui também fosse o lugar de acordar, a coisa mais natural do mundo.
Quando você vier dormir aqui vai ser como se a gente tivesse todas as idades ao mesmo tempo, quem sabe brincar de lego e construir a nossa casa no chão do quarto, assaltos à geladeira. Vamos planejar a família em listas, sempre as listas, os nomes dos filhos, dos maridos, dos edifícios, nomes dos livros que eu ainda vou escrever um dia. Vamos falar do ano que vem, das nebulosas expectativas, e rir, rir muito da minha falta de jeito com as tarefas do mundo adulto. Rir do abismo fundamental entre os nossos ritmos.
Quando você vier dormir aqui é a vida toda que vem passar um tempo íntimo comigo, porque é você quem ouviu todo o meu passado e está irremediavelmente presente no meu futuro ainda que decida desaparecer em reservas indígenas a quilômetros daqui. Vai ser a noite em que mais vou demorar pra dormir, a criança que planeja a impossível noite em claro pra aproveitar cada segundo. Mas vai ser, com certeza, a noite em que vou dormir realmente completa.

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