sábado, 2 de janeiro de 2010

MIMETÓS


A contração discreta no cenho a cada puxada insistente nos fiozitos ainda rentes do rosto, o queixo já na vermelhidão dos poros doídos. A última inspeção no zoom do espelho que embaça à mínima respiração,
—Porcaria de espelho.
As primeiras palavras da manhã saem irremediavelmente escuras, espremidas no inchaço da laringe. Cobre o pescoço com as mãos e procura no reflexo um ângulo bom, um charme de cabeça que esconda a bolinha quase galinácea na frente da garganta.
Lara irrompe no quarto em busca compenetrada por um sapato,
—Você viu o outro pé deste?
mas já desiste calçando qualquer coisa roxa,
—Meu Deus, Nima, você ainda está assim! Desse jeito não chegamos nunca.
Nima não abala a pose no espelho, sente a pele das bochechas com o dorso da mão.
—Fica sempre uma sensação de carcaça...
E se ressente da voz que desmonta o jogo na aridez indisfarçável do acordar masculino.
—Está uma graça, e veja se vamos logo, Nima, seja um pouquinho sensata e abra mão da meia hora da maquiagem, anda.
Nima se ergue sem mudar o ritmo, traz o estojo de maquiagem com um sorriso de travessura.
—Falo sério, criatura. Hoje estou irritadíssima e você de novo pensando que mulher é assim, o tempo todo saiazinha e enfeitinho na cara, ah, faça-me o favor, cansei desse atraso de vida.
Nima abre o olho com os dedos e molha o lápis na ponta da língua, Lara minúscula espera de pé já com a bolsa no ombro.
—Ah, Larinha... Sabe o que eu sempre quis ser? – guarda o lápis e puxa do estojo um conjunto de sombras — Um manequim, uma boneca dessas de loja, sabe? Sempre achei lindo imaginar as vendedoras diligentes colocando os braços nas mangas dos vestidos, as mãos de gesso em posição de balé. Depois ajeitam as perucas, avaliam as combinações, ajustam o tecido à cintura com alfinetes... Fico pensando que elas devem ter até nomes, essas bonecas.
—Ah, não, Nima! Rímel, não! Anda logo, senão vou sozinha. Olha pra mim, está vendo algum rímel, vestidinho, esses seus saltos altos impossíveis!? Não precisa ser mais mulher que todas as mulheres que você conhece!
—Lara, Lara... Tudo tão automático pra você, minha pequenininha. Você pode abrir mão do que você quiser que continua tendo qualquer coisa nos olhinhos que dá conta de dizer tudo. — aperta os cílios no curvador e sorri melíflua olhando a outra pelo espelho — Eu só vou poder abrir mão disso tudo no dia em que todas as mulheres de todo o país tiverem outras manias, e quando todos os homens tiverem outras manias sobre todas as mulheres. — Abandona o espelho e num salto infantil estende um vestido à amiga — Mas por enquanto sou uma manequim sempre na moda, pode me vestir que eu fico bem quietinha na vitrine.
Lara enfia os braços dela nos buracos das mangas e passa com força a gola pela cabeça, a maquiagem num quase-borrão desastroso.
—Mas você acredita, Larinha, que eu descobri que as vendedoras arrancam os braços, colocam a roupa na manequim, e depois encaixam de novo?? A doida ainda se demorava um tempão de conversa pro ar e a desgraçada ali me olhando sem braço toda sumida num camisolão...
—Anda, Nima, não te tirei braço nenhum.
—Não tirou porque não precisa... Experimenta inventarem aí que mulher-que-é-mulher não anda por aí com braços. Ah! Eu era a primeira a ter de tirar os meus.
—Vira mulher de uma vez então, Nima. Vai lá, dinheiro é o que não falta. Não agüento mais, parece que não quer ser mulher inteira, credo.
—Já falei que não faço de jeito nenhum. — Sobe o zíper e procura um sapato na desordem colorida dos gavetões — Mania sua de achar que mulher é só cavar um buraquinho, eu disse, a qualquer hora me arrancam os braços pra enfiar mais fácil o vestido. Depois me arrancam o sexo, revestem tudo com uma pele fria e eu saio por aí, a mais genuína das infelizes... De jeito nenhum, Lara. Pode ir chamando o elevador, só falta trocar de bolsa. De jeito nenhum... Você pode negar o quanto quiser, mas meu pênis é bem feminino.
—Ah meu deus... Vem logo, o elevador já está aqui. Daqui a pouco você me aparece com um pacote de absorventes.
Nima se detém um instante no espelho da passagem, alisa o rosto num carinho apaixonado.
—E quando o ódio agride, Lara, quando o mundo vem com cinco pedras na mão pra cima de mim, eu preciso de um homem sempre pronto a revidar cada soco, a ameaçar os monstros com golpes cegos de braços. E esse homem leal eu só acho em mim.

Mari Carrara - inspirado no estudo de Hélio R. S. Silva

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