domingo, 13 de dezembro de 2009

Discurso de Orador - Turma 178 diurno - Direito USP


“Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo, e tenho medo de viver o que não entendo – quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação. (...) E como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não era o que eu pensava e sim outra – como se antes eu tivesse sabido o que era!”
Clarice Lispector

Uma manhã ensolarada de segunda-feira, o centro da cidade de repente a paisagem em que passaríamos nossas próximas infinitas manhãs. A fachada imponente da faculdade inaugurando o que costumam chamar de os cinco melhores anos da nossa vida.
Centenas de gigantes coloridos com seus tubos de tinta, bebidas, músicas e preconceitos. Para alguns de nós, a novidade completa: longas viagens de outros cantos do país, quem sabe do mundo, para uma São Paulo imensa de solidão, sujeira e o barulho tentador escapando dos bares, teatros, cinemas.
Nosso deslumbramento ocupava cada espaço que se abria na faculdade, a bateria retumbando nos corredores entre flashes e cartazes. E essa noite desce bonita por sobre aquela manhã. Chega amadurecida, profunda, e cheia dos dilemas que o nosso torpor inicial nem imaginava.
Esta noite é a concretização de um sonho; se não o nosso sonho mais sincero, ao menos o que sonhou aquele adolescente que se afastou de nós dia após dia, como se cada aula, cada evento fossem golpes furtivos da maturidade em nossos olhos. É o sonho de um adolescente que viveu o inesquecível alumbramento do começo dos tempos de faculdade, e que agora não pode estar aqui para rir o mesmo riso livre e chorar a emoção leve das primeiras conquistas. Porque esta noite traz uma história que cinco anos de inúmeros códigos e livros não são capazes de narrar.
Nas primeiras semanas de aula, aprendemos o que é porão, jurisprudência e e-group: o cantinho eletrônico em que nos carregamos até a última prova. A sala virtual em que tivemos um contato solidário e turbulento, que às vezes desaparecia nos intervalos, sumia nos ruídos do pátio como se não nos conhecêssemos.
Hoje, é assombrosa a agilidade do tempo, a distância instransponível entre as primeiras manhãs e a opressão sombria de preencher qualquer coisa que não a palavra “estudante” no campo "profissão" do formulário da videolocadora. Lembramos com nostalgia as risadas escandalosas embaixo da bandeira franciscana nos primeiros Jogos, as danças sobre a mesa da sala de aula, as manhãs de começo de férias numa conversa de bar que não deveria terminar nunca. E alguns vínculos se estreitando em longos beijos, namoros, viagens e conversas que, se não nos fizeram melhores juristas, com certeza construíram muito do que há de humano em nós.
Embora a faculdade de direito nos tenha mostrado o que há de pior no mundo, com certeza trouxe também o que há de melhor. Pessoas incríveis, que farão a diferença em cada uma das nossas decisões. Juízes, advogados, bêbados, músicos, filósofos, loucos; todos atrasados para o escritório, para a prova, procurando a lista num canto da sala, chorando na fila dos banheiros químicos, aplaudindo em pé na sala dos estudantes. É por esses nossos amigos que sorrimos agora, com toda a sinceridade.
Sentamos todos juntos, durante cinco anos, e compartilhamos incansavelmente nossas ansiedades e expectativas. Anos lendo nossos nomes nas tábuas, frases cômicas pra expiar o desencanto. Quanto àqueles que conseguiram se encontrar, cinco anos emprestando cadernos, digitando as aulas num empenho que trouxe muitos de nós até aqui. E cinco anos registrando na mente momentos de tão pura alegria que, se fecharmos os olhos agora, fica no fundo a fotografia de um encontro banal pelas arcadas, que deixou a imagem indelével de uma amizade que, por mais que alguém ouse dizer que não, vai com certeza durar pra sempre.
Ainda que todos tenham passado pelo mesmo preparo, o diploma traz uma luz diferente ao cenário de cada um. Alguns vão se tornar bacharéis e, realizados, vão sentir o alívio da independência que se desenha já tão nítida. Vão responder às dúvidas dos mais novos, assinar o primeiro caso como profissionais de verdade, e de repente perceber que agora quase tudo está em suas mãos.
Mas muitos de nós ainda estamos num limbo desconfortável, entre o projeto que fomos e o que talvez já devêssemos ser. E neste lugar ainda há muito o que compreender. Vamos continuar explicando para as famílias que ainda não sabemos resolver tudo, que ainda precisamos de um tempo, mais um tempo e mais uma ajuda pra entender as coisas.
E quais seriam agora os nossos planos? Um tempo pra fazer planos, preencher o vazio simbólico desse canudo de hoje. Para perder o medo terrível de assistir à rápida debandada dos grandes amigos pelos concursos, nossa festejada mas tão dolorida dispersão por todo o país. Medo de com eles ver partir a estrutura que construímos juntos nesses anos, e descobrir que o Direito que conhecíamos dependia do grupo, dos longos cafés depois das provas.
Um tempo para aceitar o dia-a-dia sem um intervalo breve no sol do pátio, ou sem encostar as costas na pedra gelada das arcadas num fim de noite agitado de polêmicas. Difícil se desprender aos poucos do porão, onde de repente um amigo aparecia com duas cervejas e uma novidade digna de muitos brindes; um porão de uma época em que podíamos sempre deixar tudo para o dia seguinte, depois correr pra casa antes que o metrô fechasse.
Difícil para quem passou boa parte da vida acadêmica tentando aprender cada detalhe para ajudar da melhor maneira possível as pessoas que diariamente compõem a fila no Departamento Jurídico XI de Agosto. Difícil pra quem tirou do próprio relógio o tempo pra gerir o centro acadêmico, um tempo doído do gelo das bebidas servidas na correria das festas, e dos insultos, sempre tão frios. Mais difícil ainda para quem já fechou os olhos a qualquer coisa que pudesse vir da faculdade de direito, e agora precisa começar de novo, com olhos de calouro num corpo de adulto, numa nova faculdade que já vem sem a ingenuidade de antes, mas com a mais genuína das esperanças.
Longe da universidade, encastelados no centro da cidade, muitas vezes nos sentimos o centro do mundo, resguardados atrás de altas muralhas. Mas o retrato matinal da miséria no próprio Largo São Francisco construiu um pouco do sociólogo que não pudemos ser. A faculdade foi o nosso castelo majestoso e encantado, com seu emaranhado de portas e salas pelas quais nos perdemos durante um tempo que temíamos acabasse assim, sem satisfações em doze badaladas que nos trazem de volta à abóbora num encerramento que sempre soubemos aconteceria, mas que fizemos questão de esquecer, e simplesmente viver.
Nesses cinco anos, alguns professores nos fizeram sentir no estômago a aflição de escutar propagações centenárias de erros e injustiças, transmitidos aos alunos no tom enfastiante da superioridade catedrática. Professores que fecharam os ouvidos ao choro do mundo, e passaram a utilizar a Lei como uma baba eletrônica, capaz de anunciar cada lamento. Professores que, pela idolatria à regra, fecharam as portas das salas, levantaram a voz, não olharam nos nossos olhos. Ou, pelo desapego, simplesmente não vieram; esqueceram os alunos tantas manhãs com seus cadernos e mágoas.
Mas a faculdade nos trouxe também professores e palestrantes cujas reflexões reacendiam nossa vontade de compreender, transformar. Pessoas que abriam diante de nós a janela para um país que, sozinhos, não conseguiríamos ver. E nos faziam debruçar, até quase cair, para ver as multidões, as cadeias, as filas; para enxergar de perto as casas com suas mães sozinhas e crianças nos quartos, nas ruas; para ver os divórcios com seus gritos, suas mentiras; para ver o abandono. Pessoas que mostraram que a realidade tem recônditos que o braço curto e mecânico da Lei não consegue alcançar. E nos fizeram ver que o ser humano é capaz de aprender o que a Lei não aprende.
Por esses professores, pelos amigos, pelas pessoas que apertaram nossas mãos à procura de justiça durante esse aprendizado, nós vamos nos lembrar daqueles que fecham a porta, que não escutam, não cuidam, e vamos perceber que não é desse tipo de profissional que o Direito precisa. Não é esse tipo de gente que o mundo quer. Vamos lembrar que a careta autoritária é triste e vazia. O intransigente balançar da cabeça de quem não escuta esmaga de raiva e desamparo aquele que busca ajuda. Nós vamos lembrar essa careta e as palavras duras, e, então, seremos juristas de olhos e ouvidos abertos, queixo humilde, mão acolhedora e coração sábio. E só assim poderemos estar onde a Lei não alcança.
É preciso lembrar que o direito é uma estátua viva no centro da cidade, que de repente se move e se revela, e preenche o nosso caminhar apressado – é preciso reparar nesse movimento. É preciso saber que nos corredores dos fóruns, nos tribunais, atrás das pilhas de processos existe uma criança, um menino rindo e correndo descalço pelos arquivos e pintando com os dedos as paredes dos escritórios, estampando em guache as digitais nos inquéritos. Ele aparece quando as histórias estão prestes a virar apenas palavras, mostrando que há muita vida naquilo com que estamos lidando.
Hoje vamos ficar cara a cara com esse mundo que até agora apenas sobrevoamos. Olhar no fundo da vesguice da Justiça e se ainda houver uma faísca da nossa velha coragem, vamos mostrar que não estamos aqui à toa. Guardar a cada história um pouco da dor e do injusto, e sugar do Direito o que houver de quente, vivo. Vamos pisar na lama e sentir o molhado do barro nos nossos próprios pés, descendo desse salto que nos eleva, ilibados, distantes, indiferentes.
E quando chamarem aqui o nosso nome, vamos nos perguntar se estamos preparados, se realmente entendemos o que esta noite está tentando mostrar no seu balé melancólico. E se ainda não temos os tais planos, não vamos nos contentar com subterfúgios triviais; nosso plano é grande demais pra caber numa resposta qualquer nas festas de fim de ano. Nosso plano é grande demais.
Vamos nos despedir aos poucos da fragilidade, do manto condescendente que encobria nossos erros com o encanto estudantil. Mas vamos continuar com essa mesma energia, nesse mesmo desejo de dar aos amigos e a nós mesmos o melhor de cada instante. Vamos continuar com esse sorriso de agora, porque temos a força e a vontade pra fazer desses anos que começam, estes sim, os melhores anos de nossas vidas.
O soar das badaladas anuncia o fim do nosso encantamento. Mas lembraremos que, ao sair assim correndo desse castelo, deixamos cair pelas escadas, por acaso, algo nosso, que fará com que esse tempo ainda incompreensível possa nos reencontrar – à maneira de cada um.
Um bom começo a todos.

(mariana salomão carrara)

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Uma noite comigo



Fico comigo que eu me saio melhor a mim! ah tanto tempo perdido com os outros. Esta noite tenho um encontro comigo no quentinho do meu quarto avermelhado, depois de um banho comprido porque eu gosto de gente limpa – só de mim tenho certeza da higiene, vá lá saber dos recônditos suarentos dos outros.
Hoje me encontro comigo que tenho mais a dizer a mim do que você pode formular em mil jantares prolixos. Eu não tenho a letargia do álcool nas minhas idéias hiperativas, tu-não-te-moves-de-ti mas eu tenho um espaço larguíssimo pra flutuar em mim, música alta que quero dançar comigo, os passos certeiros na harmonia perfeita.
Fui feita para mim e é comigo que vou me entender. Eu sei exatamente onde e quando a minha mão por dentro do vestido, sei do meu tempo. E quando não estou para o assunto minha mão não questiona e já se dedica a outros afazeres menos mundanos, eu comigo posso mudar de conversa, trocar de livro – nos encontros comigo posso abrir livros sem que me censurem, sou absolutamente compreensiva com essa falta de etiqueta.
Esta noite vou conversar comigo sobre essa dor nos ombros, posso conversar deitada. Eu sei de mim as estrias novas do peito direito e estou perfeitamente consciente de quando devo e quando não devo me ver nua, apago as luzes. Neste encontro quero falar sobre esse meu cabelinho da testa que implicou em crespar, sobre o medo terrível que eu tenho de deixar de viver. Vou olhar nos meus olhos e não precisarei confessar que não paro um minuto de imaginar que a minha vida vai acabar de repente antes que eu chegue à mesa de docinhos, antes que eu dê o meu maior grito, antes que eu tire a minha roupa até sair a pele, antes que me vejam assim, exposta. É bom ficar comigo porque uma pessoa que sabe dessa angústia jamais me espremeria o tempo com vicissitudes diárias e desejozinhos banais.
Neste encontro posso falar o tempo que quero, calar sem explicação – porque é impressionante a comunicação tácita que tenho comigo. Posso fazer desenhos na minha barriga enquanto me pergunto por que razão insisto em querer estar com outros se comigo o momento é tão profundo, eu que entendo do meu sexo, da minha fome, das minha dores nas costas. Eu que posso conversar comigo durante incansáveis horas, descobrir de mim segredos cômicos, rir sincera desse meu senso de humor. Logo eu que sou capaz de subir na cama e mostrar a língua pro espelho e depois perguntar se eu não posso ficar mais um pouquinho comigo.
Hoje você pode atirar o seu tempo nas mãos de quem você quiser, já falei que tenho um encontro comigo. E no final das contas você pode correr para os braços dos outros que tu-não-te-moves-de-ti, sabe-se lá se chega a mover-te de mim. Pode lutar para sincronizar os diálogos tão disparatados, as máscaras azedinhas dos vínculos sociais, pode ir que eu fico aqui comigo que eu sei chorar comigo quando tenho vontade. Sei o jeito certo de se aproximar de mim, olhinhos fechados na concentração da imagem.
Pode ir que fico a noite inteira comigo, porque a única coisa que não sei fazer comigo é dormir. Pra isso ficamos aqui, juntas, esperando você voltar.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Mirtáceas cor-de-rosa



--Não sei, não, Ana, talvez fosse melhor o preto.
--Não, menina, nesses lugares vai todo o mundo de preto, fica uma maçaroca de gente igual, vai com este aqui mesmo, comprou pra isso!
Mirta acaricia o vestido com as mãos e joga na cama. Belisca as pernas reclamando do espelho, uma noite linda dessas e as mulheres inchando assim, homem é que devia inchar, explodir de hormônio. A calcinha aperta de leve os lados mas a amiga diz que está tudo em ordem, é preciso ir logo com isso. O rímel ágil em piscadelas entre as obscuridades do espelho mofado, a chapinha esquentando na escrivaninha.
--Mania de se maquiar pelada. Depois mancha o vestido.
--Um calor, Aninha, assopre!
Mirta estica o vestido na pele úmida e confere as costas num torcer desconfiado de lábios, o batom acumulando nos cantos.
--Está linda. Uma flor.
--Não está marcando?
--Marca o que tem de marcar. Uma flor bem rosa, as mirtáceas são cor-de-rosa?
Mirta aperta a franja na chapinha e assopra o próprio colo.
--Um calor, virgem santíssima! Já pode abrir a janela.
--Olha só, a goiabeira é uma mirtácea.
--A hora, aninha, desliga o computador! E eu agora sou a goiaba da festa.
--A romã também é.
--Romã fica mais charmosinho.
Mirta encaixa com dificuldade o fecho da sandália e rebola diante do espelho. Saltos de alegria súbita que ela contém num muxoxo.
--Será que ele vai gostar?
--Vai ficar de boca aberta, sempre te vê tão sem jeito com essa cara de dia-a-dia. Coloca uma fivela aqui, desse lado, pra enfeitar o cabelo.
--Não, falta o colar ainda. Olha só, já vou perder a primeira aula.
--Você devia faltar, como é que vai de lá até a festa sozinha com esse vestido.
--Ele vai me buscar na faculdade, Aninha! Disse até que vai levar um capacete rosa.
Mirta espirra um perfume azulado atrás da orelha e entre os seios e espera o positivo enfático da amiga.
--Linda! Vamos!
--E se ele não vier, Ana, ele pode não vir. Todo esse tempo aqui...
--Aí a gente fica na faculdade, bebe um pouco com o pessoal, alguém vai te achar lindíssima e você vai triunfante pra outra festa.
Mirta brinca com as pulseiras num desânimo distraído. De repente apaga a luz e sai desfilando nos paralelepípedos, a mão da amiga equilibrando o salto.
Mas a faculdade não acha bonito. Brincadeiras, assobios. Mirta busca o apoio nos olhos da amiga e não sabe se o coro a corteja ou insulta. Rebola para entrar no jogo, depois puxa a saia até esticar o pano sobre as coxas que ardem nos olhos de inquisição.
E foge da fúria azeda e calorenta da massa. O rosa murchando seco entre eucaliptos gigantes.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Receita antitédio para senhores e senhoras carentes


Ando pensando que pode ser que tenha alguém apaixonado por mim que eu nem desconfie. Pode ser que todo o mundo tenha, e pode ser que seja muito bom pensar o tempo todo que tem alguém perdidamente apaixonado por nós.
Pode ser uma delícia imaginar essa pessoa encostadinha num sofá da festa e a gente dança cigana-odalisticamente sem sapato e com os cabelos desvairados de admiração. Decidi que definitivamente existe uma pessoa apaixonada por mim, que me busca nos corredores, nas salas, bares, publicações, computadores.
Vou começar a andar mais altiva, meus passos tão desengonçados e pragmáticos vão se alimentar dessa elegância de passarela, desses olhinhos encantados me observando as coxas, os ritmos. Vou lembrar esses ouvidos ocultos nas rodinhas me auscultando o coração, os segredos, piadas. Vou começar a falar só de coisas interessantes, vou contar bem alto minhas taras, pesadelos, filmes.
Quero que esse meu admirador tenha certa fobia afetiva, que me diga bom-dias insignificantes que não me despertem a menor suspeita. Que tenha dificuldade de dizer os sentimentos, de fazer amigos, e que seja paradoxalmente incapaz de um crime passional. Quero que leia esse texto com o coração rufando debaixo da língua, como se a cada frase eu chegasse mais perto de desmascará-lo.
Quero que você me espere numa cadeira de praia na Augusta numa noite de quinta lendo um livro de ponta-cabeça. Se for mulher, quero que esteja de vestido roxo, óculos e alguma coisa maluca no cabelo. Quando eu vir você, quero que saia correndo. Quero que me espere no meu ponto de ônibus vestido de coelho da Alice, e quando eu chegar quero que diga que é tarde, muito tarde, e desapareça num desses becos. Eu nunca tenho coragem de entrar.
Depois quero que você esteja presente em todos os meus sucessos, puxe as palmas, acabe com a ansiedade desses meus aniversários que invariavelmente antevejo vazios e tediosos. E também nos meus fracassos vou saber que você está lá, e sua admiração inabalável vai me reconfortar. E vou sentir qualquer coisa de bonito num perfil triste que vou lançar ao léu, na esperança de que você registre o meu charme numa imagem precisa que vai fenecer brumosa no seu sono inquieto.
E quando eu morrer tragicamente deixando família e amigos completamente traumatizados, você vai se doer e contorcer até flutuar por sobre os meus espaços. Por um tempo, você vai fazer esse amor fiel colorir a melancolia das muitas saudades que eu deixei. Depois, vai sumir aos poucos, tons pastéis, até morrer por completo; irremediavelmente parte de mim.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Sou


Sou a minha oscilação exaustiva de hormônios

Sou o gráfico trágico da minha comunicação ovariana,

a resposta depressiva do meu útero vazio.

Sou os meus cistos gigantes,

sou o estouro ardido desses meus líquidos indevidos,

o retorcer doído de um sistema inábil.

Sou o fraquejar esquisito de uma coluna angulosa,

sou curvilínea.

Sou a dor perene na contração dos músculos,

na constipação do ventre,

no pulsar insistente das paredes da cabeça.

Sou a minha irritação pré-menstrual,

meu desamparo,

meu inchaço dolorido.

Sou o meu acúmulo nos quadris,

minhas varizes,

minhas estrias se esticando brancas

na minha existência imensa:

sou minhas trombadas nas portas,

nos bancos dos ônibus,

minhas cabeçadas nesses tetos baixos,

nessas escolhas fatais.

Sou minha fome excessiva,

minha dependência.

Sou minha cesárea às pressas

Meus cortes, rasgos, costuras

o-s-t-e-o-p-o-r-o-s-e

Sou a minha menopausa ardilosa,

que me tolhe os anseios

e me murcha a boca.

Sou meus calores sufocantes

Sou minha transpiração humilhante sobre o rímel preto,

minha insônia incansável:

sou meus olhos secos abertos no tictac insistente dessas noites quentes

Frias

Quentes

Sou a minha oscilação exaustiva de hormônios

Sou o gráfico íngreme da minha comunicação ovariana,

a resposta depressiva do meu útero vazio.

E escondo tudo num preto básico

Em taças de vinho

Em bases, corretivos, colares

Em saltos altos firmes

Em saltos.

E assim, no espelho do elevador,

No corredor, celular, casamento, hospital, enterro, restaurante, escritório, mercado, creche, motel, bar, livraria, avenida, fórum, ônibus, maternidade, eventos, consultas, teatros,

nos faróis

Sou um aceno breve

Sou tudo-bem-e-você.


sexta-feira, 25 de setembro de 2009

textinho para o "yearbook"...



Saio da São Francisco num estouro de espuma de champanhe, tantos anos contida nessa garrafa, no formato preciso da minha angústia. Transbordo para todos os lados, o estrondo da rolha nos ouvidos – apenas um estalo inaudível na imensidão urbana. Um brinde ao mais novo ano da minha vida: a primeira vez em que nada é previsível na próxima etapa. Diretamente da garrafa para o mundo.
Vou acompanhar com coragem a diáspora repentina dos amigos pelos concursos federais. Vou traçar o meu caminho florido entre as leis e as letras, quem sabe num passeio bonito que traga à Justiça qualquer coisa de verdadeiro.
Vou seguir repudiando a hipocrisia todas as vezes em que notar o seu aceno sarcástico por trás das cabeças que se corrompem patéticas nas próprias fantasias. E vou lembrar desses cinco anos com seus gritos, suas provas, suas imagens, paixões, devaneios, suas vontades de atirar a garrafa ao mar com mensagens de socorro, e seus momentos de fascinação e alimento para muitos outros anos de luta pelo que pode haver de melhor no Direito.
A faculdade é um túnel de um tempo veloz que transforma: saio Alice desorientada e deslumbrada com um mundo que se abre em trapaças e maravilhas. Um coelho louco que me diz que é tarde, é tarde e eu tenho muita pressa para entender esse túnel, encontrar os caminhos e viver com toda a energia essa coisa de olhar de repente a minha faculdade pelo lado de fora.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Notas para a definição de um leitor ideal - ALBERTO MANGUEL

O leitor ideal é o escritor no exato momento que antecede a reunião das palavras na página.
O leitor ideal não segue uma história: participa dela.
Um famoso programa da bbc sobre livros infantis começava, invariavelmente, com o animador perguntando: "Vocês estão sentados confortavelmente? Então vamos começar". O leitor ideal é também o sentador ideal.
Para o leitor ideal todos os recursos são familiares.
Para o leitor ideal todas as brincadeiras são novas.
"É preciso ser um inventor para ler bem." Ralph Waldo Emerson.O leitor ideal tem uma aptidão ilimitada para o esquecimento. Ele pode afastar de sua memória o conhecimento de que Dr. Jekill e Mr. Hyde são a mesma pessoa, que Julien Sorel terá sua cabeça cortada, que o nome do assassino de Roger Ackroyd é Fulano de Tal.
O leitor ideal sabe aquilo que o escritor apenas intui.
O leitor ideal subverte o texto. O leitor ideal não pressupõe as palavras do escritor.
O leitor ideal é um leitor cumulativo: sempre que lê um livro ele acrescenta uma nova camada de lembranças à narrativa.
Todo leitor ideal é um leitor associativo. Lê como se todos os livros fossem obra de um autor intemporal e prolífico.
Depois de fechar o livro, o leitor ideal sente que se não o tivesse lido o mundo seria mais pobre.
O leitor ideal tem um senso de humor perverso.
O leitor ideal jamais contabiliza seus livros.
O leitor ideal é ao mesmo tempo generoso e ávido.
O leitor ideal lê toda literatura como se fosse anônima.
O leitor ideal gosta de usar o dicionário.
O leitor ideal julga um livro por sua capa.
Ao ler um livro de séculos atrás, o leitor ideal sente-se imortal.
Paolo e Francesca não eram leitores ideais, pois confessaram a Dante que depois de seu primeiro beijo pararam de ler.
Leitores ideais teriam se beijado e continuariam lendo. Um amor não exclui o outro.
O leitor ideal compartilha a ética de Dom Quixote, o desejo de Madame Bovary, a luxúria da esposa de Bath, o espírito aventureiro de Ulisses, a integridade de Holden Caufield, ao menos no espaço textual.
O leitor ideal percorre as trilhas conhecidas. "Um bom leitor, um leitor importante, um leitor ativo e criativo é um leitor que relê." Vladimir Nabokov.
O leitor ideal é politeísta.
Robinson Crusoe não é um leitor ideal. Lê a Bíblia para encontrar respostas. Um leitor ideal lê para encontrar perguntas.
Todo livro, bom ou ruim, tem seu leitor ideal.
Para o leitor ideal, cada livro é lido, até certo ponto, como sua própria autobiografia.
Às vezes, um escritor pode esperar muitos séculos para encontrar seu leitor ideal. Blake demorou 150 anos para encontrar Northrop Frye.
O leitor ideal de Stendhal: "Eu escrevo para apenas cem leitores, para seres infelizes, amáveis, encantadores, nunca moralistas ou hipócritas, aos quais eu gostaria de agradar; só conheço um ou dois deles".
O leitor ideal conhece a infelicidade.
Os leitores ideais mudam com a idade. Aquele que aos catorze anos foi o leitor ideal dos Vinte poemas de amor de Neruda já não o é aos trinta. A experiência apaga o brilho de certas leituras.
Pinochet, que proibiu Dom Quixote por pensar que esse livro incitava à desobediência civil, foi seu leitor ideal.
O leitor ideal jamais esgota a geografia do livro.
O leitor ideal nunca pensa: "Se ao menos...".
Anotações nas margens indicam um leitor ideal.
O leitor ideal faz proselitismo.
O leitor ideal é capaz de se apaixonar por um dos personagens do livro.
O leitor ideal não se preocupa com os anacronismos, com a verdade documentada, com a exatidão histórica, com a precisão topográfica. O leitor ideal não é um arqueólogo.
O leitor ideal é um cumpridor implacável das regras e normas que cada livro cria para si mesmo.
"Há três tipos de leitor: um, que aprecia o livro sem julgá-lo; três, que o julga sem apreciá-lo; outro, no meio, que o julga enquanto o aprecia e o aprecia enquanto o julga. O último tipo verdadeiramente reproduz uma obra de arte; seus exemplos não são numerosos." Goethe, em carta a Johann Friedrich Rochlitz.
Os leitores que cometeram suicídio depois de ler Werther não eram ideais, mas simplesmente leitores sentimentais.
Os leitores ideais quase nunca são sentimentais.
O leitor ideal quer chegar ao final do livro e ao mesmo tempo saber que o livro jamais terminará.
O leitor ideal nunca se impacienta.
O leitor ideal não liga para os gêneros.
O leitor ideal é (ou parece ser) mais inteligente do que o escritor; o leitor ideal não usa isso contra ele.
Há um momento em que cada leitor se considera o leitor ideal.
Boas intenções não são suficientes para produzir um leitor ideal.
O Marquês de Sade: "Só escrevo para quem é capaz de me entender, e eles me lerão sem perigo".
O Marquês de Sade está errado: o leitor ideal está sempre em perigo.
O leitor ideal é alguém com quem o autor não se importaria em passar uma noite bebendo uma taça de vinho.
Um escritor nunca é seu próprio leitor ideal.
A literatura não depende de leitores ideais, mas apenas de leitores suficientemente bons.


(Alberto Manguel, À mesa com o Chapeleiro Maluco - ensaios sobre corvos e escrivaninhas - grifos e resumo meus)

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Melhor amigo (para ler teatral-histericamente)

Lorde, olha pra mim, Lorde, não é possível que você não me escute nunca. Eu não consigo entender, cachorro, o que foi que eu te fiz, não consigo. As pessoas dão risada mas quando eu paro pra pensar tudo isso é muito sério, tudo isso dói, você me dói, Lorde. Não acredito que você não tenha pena, os cachorros costumam ter pelo menos um pouco de piedade. Olha pra mim! Animal sádico.
Não finge que não está me ouvindo, sua bola peluda, seu monstrinho, agora vai ser assim aqui nessa casa, vou tratar você como merece... Continua me ignorando, o bichinho. Não, Lorde, é sério mesmo, vem aqui olhar pra mim quando falo. Você vai viver mais o quê? Uns dez anos! Dez anos com esse cachorro, um estranho dentro da minha casa.
Mais dez anos do seu lado passeando na calçada sem que você seja capaz de um bom-dia, uma lambida, uma orelha erguida que seja. Escuta, Lorde, o mundo se divide em pessoas que compram gatos e pessoas que precisam de cachorros. Eu procurei um cachorro, você entende? E eu não sei o que querem de mim com essa tortura, eu precisei de um cachorro, mas você parece um cretino de um gato que vai passar dez anos na minha casa sem cruzar os olhos nos meus. Os gatos pelo menos encaram, erguem o rabo assustadores. Olha pra mim, pelo amor de deus!
O que querem de mim? O que foi que eu fiz, eu nunca ergui um dedo contra você! Se eu estivesse sozinha, sozinha é diferente. A gente chega em casa exausta, esquenta a janta, toma uma ducha, dia-sim-dia-não liga a tevê. Mas eu, eu abro a porta da sala e vejo você no fim do corredor, e não é capaz de abanar um segundo a porra do rabo! Estático, casmurro, pedante. Eu detesto você, Lorde, você não tem o direito de fazer isso comigo!
Quantos meses você ainda vai passar com o focinho embaixo dessa porta? Ele não volta, cachorro, aceita isso! Escuta, ele não volta! Que coisa, o homem chegava tarde da noite, fazia um afago distraído na sua cabeça e reclamava de deitar você naquela barriga enorme, porque você espera nessa maldita porta?!
Eu devo ser insuportável mesmo. Dez anos assim, meu deus. E se eu te achar morto no meio da casa um dia, hein? Vai ser que nem achar uma mariposa, viva ou morta, tanto faz. Só vou tirar você dali e esquentar a comida, vai ser assim, Lorde? E se um dia você me achar morta, hein? Vai ser capaz de dar um mísero latido pra chamar o vizinho?
E à noite? E à noite, Lorde? Eu não suporto mais as noites. Termina o filme e eu saio do quarto devagar, silenciosa, sempre com a esperança de que vou encontrar você feliz trazendo um brinquedinho, de que você veio fazer amizade, veio roçar o nariz no dorso da minha mão e pedir colo com manhas de cachorrinho. Depois eu finjo pra mim que não me importo e busco água na cozinha. No caminho, sua respiraçãozinha agitada e esses olhinhos vidrados na porta da sala, ele não volta, pelo amor de deus, entende isso e vem dormir aqui dentro. Olha só, Lorde, eu forrei sua caminha bem quente, olha o ossinho, Lorde! Olha essa porcaria de ossinho!

quinta-feira, 23 de julho de 2009

The Sea

Olho o mar sozinha com o poodle cansado no colo. Um americano imaginário senta ao lado com o ar cinematográfico de indiferença.
-- Do you think it's beautiful?
--what? the sea? ... well... i've never heard of anyone who said it wasn't beautiful... It's a whole bunch of water that moves itself. Water moving itself has gotta be beautiful.
--like the rain, maybe...
--yeah, but the rain is just water falling from the sky. The sea is not falling. The sea knows perfectly what it's doing.
O americano desapareceu e o poodle continua cansado olhando pra mim, não para o mar. Tenho a impressão de que as pessoas em volta se perguntam se o cachorro entende mesmo inglês.
Não posso ficar tanto tempo sozinha.

sábado, 4 de julho de 2009

Para falar em cima de uma mesa qualquer


A gente marca a passagem do tempo traçando a altura da criança no batente da porta e vendo fotografia, mas hoje eu vi o tempo estampado, carpido na minha cara-de-pau. É isso que mostra a idade, a indiferença às situações tão desafiadoras da infância.

Eu queria que o pizzaiolo me desse um tantinho de massa pra brincar na mesa. Ele sempre dava, era só pedir, mas eu importunava a minha mãe até que ela mesma fosse até ele e entregasse na minha mão o montinho cheirando a ovo com farinha.

Com 14 anos eu morria de vergonha de comprar os bonequinhos coloridos de açúcar, Ai, moço, não sei, acho que ele gosta do Bob Esponja... desse peixe também, isso, o Nemo, pode colocar dois Nemos e um desse cachorro, ele adora cachorrinho. Com 16, ganhei um celular, e a conversa absurda já começava na fila, Lindinho, acho que hoje não tem do Barney, não serve um palhacinho? Você disse que os de cor forte são mais gostosos, não são? então!

Entrar na farmácia para comprar camisinha era uma missão coletiva, chamava as amigas para que a conversa ficasse mais rica em detalhes: um irmão folgado que talvez tivesse encomendado um pacote de preservativos. Umas lixas de unha, xampu e um desodorante pra disfarçar, É só ele ouvir que estou vindo na farmácia que já vem pedir favor. A mera idéia de que o caixa pudesse me imaginar transando tornava a compra insuportável, se tivesse troco, então! Com certeza ele aproveitaria pra subir os olhos da minha cintura até a minha boca, sempre esse, o trajeto. Mais tarde, o que me perturbava era a idéia de que o caixa achasse que eu poderia eventualmente estar constrangida.

O tempo passou tirando uma a uma minhas vergonhas graciosas, enchendo de pragmatismo minha rápida passada na farmácia, quarenta e cinco centavos para facilitar o troco. Não deixei de comprar bonequinhos coloridos de açúcar, mas a moça já sabe que quero os de cores fortes, Esse vermelho daqui, o jacaré, o ursinho, ah não é ursinho? isso, o sapo. Não percebo os pensamentos dos outros, o tempo apagou o riso perverso e o lúdico que eu via no rosto de todo o mundo. Hoje o meu cheiro depende do que está no mostruário de perfumes da Onofre – se algum vendedor me oferece ajuda digo que vou espirrar no pescoço pra depois ver se meu namorado gosta, Quanto custa esse mesmo? O tempo que me tirou o frio na barriga e me encheu de apatia e pressa.

Mas agora, quando me imaginei subindo aqui e dizendo o que quer que fosse pra vocês, percebi que o tempo não me deixou, e talvez nunca vá me deixar imune a esse tipo de vertigem. Pânico só de pensar no olhar de vocês, na maneira como os pés se voltam um para o outro, ou como a minha barriga marca o elástico da calcinha quando eu respiro, desespero imaginando que iam rir de mim quando eu não soubesse onde pôr as mãos.

Algumas situações ainda fazem a gente se sentir uma adolescente comprando camisinhas.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

MINHA BELA DA TARDE

Queria que ela deitasse a cabeça
caracóis pretos no meu colo
entregasse o ventre
carente
saudosa
e esquecesse todo o mundo que ainda pode chegar.
Queria que ela viesse correndo e girasse nos meus braços
e aceitasse os meus carinhos todos
e gostasse
e esperasse ansiosa a hora de me encontrar.
Queria que ela não ficasse inquieta
esperando
procurando
escapando
e se aconchegasse tranqüila no meu edredom
Mas chego e ela faz uma festa morna
retorce o corpo pra eu não segurar
salta da minha cama sem disfarce
-- cabeçadas na porta até eu abrir --
e espera por eles na sala,
posso chamar chamar chamar que ela não volta.

ouve o elevador e a chave no trinco
late aflita de amor
minha bela, minha Belinha,
e passa quarenta minutos de rabo abanando lambendo as canelas da minha mãe.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Astronauta



Fujo para o cinema e fico escondida no frio da sala num filme que depois me deixa atônita falando sozinha em inglês — o teatro o cinema o livro todos eles me arregalam os olhos e me deixam pulsando e me enchem a cabeça de pipocas coloridas que querem virar milho em espiga na tela do computador. Mas nos guias para os adolescentes tinha até gerente de festas mas não tinha escritor, nem diretor, e talvez nem ator porque se aos 17 anos você quer uma coisa dessas deve ser porque não está preocupado com nada dessa história de futuro que de repente chegou.
É bonitinho o menininho que diz Astronauta e as tias aplaudem rindo gordas mas aos 17 é preciso ter os pés na Terra, o mundo da lua explodindo cinzento, cinza nos nossos hormônios contidos de repente em roupinhas ridículas de adultos geométricos. Detesto adultos geométricos. Detesto adultos. Quero ser menina, menininha, quero ser pequena, minúscula como nunca tive a chance de ser: sempre o corpo alcançando o botão do elevador antes do tempo, as amigas balançando os pezinhos na cadeira escolar e meus pés gigantes ancorados no chão gelado sentindo a firmeza do solo, a frieza de pisar o tempo todo e alcançar sozinha os recônditos das prateleiras do armário. Acho que compro livros pela internet só pra encontrá-los de repente sobre a mesa da sala, largar a bolsa no chão e abrir afoita o papelão exagerado, o durex que não solta e pego desajeitada a faca em gestos violentos até meu pai acudir e abrir o presente que eu mesma me dei e já sei o que é e me entregar curioso, perguntar o nome, perguntar se é pra faculdade, depois me dar o plástico-bolha com um afago na cabeça sabendo que eu vou passar mais tempo me divertindo com o plástico-bolha do que lendo o livro.
Depois fujo do cinema — falando sozinha em inglês — e quero me esconder das pessoas, fico pensando onde toda essa gente passava as noites antes dos cinemas inventarem as promoções dos dias úteis. Quero fugir dos rostos conhecidos, impressionante como a Paulista noturna me joga na cara esses rostos de passado que rendem no máximo um sorriso constrangido, uma reparada no corte de cabelo, na roupa, e uma breve reflexão sobre o que pode ter se tornado a juventude alheia— principalmente daqueles que aos 17 desafiaram as tias sonhando com a lua em delírios sombrios de sublimação pela arte. É romântico idolatrar a dificuldade financeira nessa idade, adorar a singeleza de Demy Moore e o maridão antes da proposta maldita.
O Jardim Miriam chegou rápido de novo. A gente desenvolve uma relação delicada com o ônibus que leva a gente toda noite do cinema pra casa. Uma espécie de afeto freudiano pela imponência das rodas imensas, a porta que me acolhe abrupta aos trancos e depois oferece um assento quase macio. Encosto a cabeça no ombro do ônibus e agradeço esse instante de carinho, esse apoio desinteressado. Vai me levando pelo mesmo caminho de sempre e sinto que ele sabe a minha rotina, sabe os dias que venho cedo, sinto que tem vontade de me perguntar onde é que eu estava até uma hora dessas no meio da semana.
Hoje sonhei com o Jardim Miriam, eu esquecia a bolsa no banco e tinha de correr atrás do ônibus na descida da minha rua, ele não me via e eu gritava chorando mas ao mesmo tempo ria porque inúmeros bracinhos saíam da janela me chamando, seguravam a bolsa e vozes de incentivo me fizeram descer até o ônibus com seus braços quase humanos que me entregaram contentes a bolsa vermelha e continuaram sua jornada sem mim. Mas a gente pega esse afeto e esquece que o ônibus tem olhos que espreitam por baixo da saia durante o instante interminável do degrau, olhos de catraca vigilantes no entreperna, espreitando o menor sinal de conforto enquanto deito a cabeça no ombro do ônibus esperando um afago paterno que tire os objetos cortantes de perto da menina pequena e desajeitada que inspira ternura infinita com seus sonhos lunáticos de astronauta.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

texto bem velho sobre o mamão da mila! - revivendo o HD antigo



Mamão

Ela se sentou sobre o pé direito, na cadeira da sala, e deixou o outro pé balançar entre as unhas do gato. Deitou a cabeça no braço apoiado na mesa de vidro, e foi comendo, displicente, a pequenas colheradas, um mamão. Aos poucos percebeu que o mamão a contentava naquela manhã; quem sabe até ele merecesse que o comessem direito. Ajeitou-se na cadeira, livrando sua meia preta das patas do gato e cruzando os pés. “Perna de índio!”, ouvira tantas vezes na escola e outras tantas já dissera quando dava aulas.
Foi comendo o mamão com cada vez mais avidez, admirada da doçura da fruta. A colher raspando tímida no pomo e trazendo rugas alaranjadas à boca. Chegava a sorrir, a menina do mamão doce. Via a fruta emagrecendo aos poucos, e pensava até que à última colherada me faria um telefonema -- você não sabe que mamão doce acabei de comer!
Acontece que, quase ao fim da refeição, um azedo insopitável lhe fez cuspir sobre o restante. Ficam nela uns lábios contraídos para o lado, uns olhos arregalados e uma testa franzida de explícita decepção. Ela olha o mamão traiçoeiro, com a última mordida cuspida com rancor dentro dele, e vê nele todo o mundo que algum dia já conheceu. Os amigos, os pais, professores de infância: todos grandes e frustrantes mamões. Tão doces na superfície, tão apaixonantes, até que chegava ao âmago deles e doía na língua o amargo, a podridão.
Quando me contou sobre os mamões de sua vida, primeiro pensei no meu âmago e temi que lhe tivesse azedado na língua. Depois temi que ela jamais tivesse me cavado tão fundo com sua colherzinha displicente, sem nunca sentir na boca todo o meu amargo.
Depois, pensei que meu mamão é diferente do dela. As minhas pessoas chegam totalmente desinteressantes, poucas me levam à primeira colherada. À segunda, quase nenhuma! Vão abrindo aos poucos o meu apetite, a colher indo e voltando mais fundo. Cuidadosa, embora com mais e mais vontade. Quase todas endurecem ou estragam antes de dar à minha colher suas energias mais íntimas. E o pequeno azedo na ponta da língua me dá mais encanto do que todas as camadas doces, o azedo escancarado sem disfarces, entregue sem vergonhas. Revelar o açúcar, qualquer um revela! Especial é o mamão que me deixa chegar àquilo que procura esconder. Quero um mamão que me deixe realmente prová-lo até o final, doce ou azedo. Nu e descascado à minha frente. E que, de tão devorado, não tema mais nada e se faça cada vez mais doce na minha colher.
Depois, ainda na mesa do mesmo bar em que ela reclamou das frutas da sua vida, lembrei, com desgosto, de que simplesmente detesto mamão.

domingo, 12 de abril de 2009

Mago


Quando eu tinha 13 anos arranjei um namorado que tinha quase 17, espinhas, boné e walk man. Eu decidi que a gente se apaixonaria um pelo outro, porque era assim que as coisas tinham de ser. Eu infernizava a vida dele com perguntas constantes e labirintos adolescentes dos quais ele nunca escapava sem me machucar: se um mago surgisse e revelasse que eu seria muito mais feliz com uma outra pessoa, você me levaria à festa e me deixaria do lado do homem e sumiria pra minha vida dar certo? Então ele pensava uns instantes -- ou fingia que pensava -- e depois respondia que sim, que me levaria, e eu chorava o resto do dia em discussões inférteis porque na verdade ele tinha desapego, não lutaria por mim, abriria mão de um grande amor sem qualquer sofrimento. Ou então ele dizia que não, que não me deixaria, e eu chorava porque ele tinha um amor egoísta, estava me usando e não se importava que eu não fosse feliz com ele.
Amando ou não esse menino cresceu do meu lado, quase cinco anos reprovado em testes de amor e devoção, mas não largava porque precisava de alguma coisa em mim. Talvez dos meus anseios pueris por um amor arrebatador, ou da minha própria devoção. Precisava de mim pra desligar a televisão e censurar as refeições gordurosas de moleque teimoso, precisava de alguém que não soubesse absolutamente nada da vida material, do funcionamento dos objetos, dos países, dos animais, do mundo. Alguém a quem ele pudesse inventar as respostas, ensinar jogos de baralho que ele aprendia na vida, na noite, nas viagens, e vinha mostrar à sua Penélope encantada. Precisava de alguém que risse de tudo que ele dizia, precisava de um retrato na carteira, cartas apaixonadas. Cinco anos porque precisava de alguém para os jogos mais femininos no videogame, alguém pra comprar cuecas, alguém pra dividir um cachorro, alguém pra lembrar o tempo todo, o dia inteiro, que era preciso amar.
Hoje eu encontro o moleque já sem espinhas e já com a televisão desligada, bebemos duas cervejas e eu dou risada de absolutamente tudo que ele diz e continuo não sabendo nada da vida material, que ele me explica com meias-verdades que eu absorvo sorrindo e depois reproduzo aos trancos preenchendo os vazios da memória e dizendo aos amigos que foi ele que disse. Hoje eu encontro o moleque e entramos nas mesmas discussões inférteis, qualquer coisa no sangue que ferve no borbulhar da argumentação. Mas já sabemos que, quando um mago explicou, pela última vez, que seríamos mais felizes assim, cada um foi pra sua festa encontrar os seus. Ele me levou pela mão e olhou fundo nos meus olhos quase adultos desejando boa sorte, e depois de umas cabeçadas e de um medo quase virginal, a gente caminhou muito bem.
Hoje encontro o moleque e durante a cerveja ou vinho ele me explica alguma coisa que eu não sei e eu dou risada de algo que mais ninguém riu, entendo errado qualquer frase óbvia, pergunto da frieza dos homens, e ele estuda a fragilidade das mulheres, seus pequenos bibelôs de ferro. E às vezes eu penso que era isso que o mago queria, era exatamente isso que o mago sabia que a gente precisava encontrar.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Continho

Pensei no celular, com a bateria quase acabando. Mas pensei de um jeito diferente, de um jeito literário. Quando um pensamento vem de um jeito literário ele vem gostoso, vertiginoso, a imagem se forma de repente num canto diferente do cérebro e eu fico com medo de que ela suma sem que eu tenha tempo de ver tudo, mas também não posso olhar demais se não a nitidez estraga todo o prazer sombrio de alguma coisa que promete ser mais do que está sendo. Pensei na bateria que talvez fosse o motivo de eu estar voltando pra casa, os dois ou três dias de duração da bateria são a medida das minhas idas e vindas.
Pensei na minha mãe, querendo saber se hoje eu vinha dormir, se amanhã, se ontem, e pensei em mim pensando que devia ir pra casa senão ficaria sem celular todo o feriado. E essa idéia da mãe que sabe que a filha volta quando acaba a bateria flutuou cor pastel no fundo da cabeça e eu decidi que encaixaria no próximo Exercício, talvez ainda hoje.
A Mila costumava perceber quando o pensamento vinha literário na minha cabeça, qualquer coisa no meu olho que se perdia e um frio na barriga e talvez porque nela também viesse o pensamento ela fungava feito um cão farejando o ar e brincava que sentia cheiro de continho em volta de nós. Minhas melhores vertigens são quando a Mila de repente vira um pensamento literário no fundo da minha mente e eu tenho pouco tempo pra chegar em casa e digitar a Mila embaçada atrás da cabeça, na fumaça do cigarro.
Mas depois pensei que é que nem fazer cocô. Se me vem a inspiração não posso demorar, não posso pensar muito nisso, tenho de ir até o banheiro fingindo pra mim que não sei de nada, que nada está acontecendo. Vou chegando e me convencendo de que vai ficar tudo bem se não der certo, outra hora quem sabe, não foi dessa vez. Mas na verdade eu sei que fico carregando pesado no corpo todos os cocôs e todos os textos que não deram certo.
Vou me aproximando e a idéia que eu fingia pra mim que não existia e ao mesmo tempo não podia deixar sumir no túnel escuro infinito de mim pode dar certo e pode não dar. Meu pai diz que eu escrevo que nem ele faz cocô. Mas, pra mim, fazer cocô é incrivelmente difícil.

terça-feira, 24 de março de 2009

Da velha volúpia de me sentir translúcida (luiz, você ainda está por aí?)

Hoje à noite o ônibus me fez pensar um monte de coisa a meu respeito, coisa boba que ninguém sabe mas fiquei pensando que é um absurdo ninguém saber. Quero ser um pêssego descascando numa puxada só, óbvia e doce na vermelhidão em volta do caroço.

Ninguém sabe que há dias – melhor dizer há anos, há todos os anos – boto o fone de ouvido no ônibus e. Primeiro vou dizer que todos os meus fones de ouvido têm fases bem delineadas de suas vidas: primeiro estão novos e pouco a pouco me convencem de que o antigo era melhor; depois de um mês, um dos lados perde a cabecinha de borracha, e eu continuo enfiando no ouvido com o metal arranhando e quase soltando; depois essa lado quebra de vez e eu fico escutando de um lado só, até me frustrar com o silêncio total e me dedicar a encontrar o próximo. E é essa dinâmica que me faz parar de ouvir as mesmas três músicas e passar para as próximas três.

Todos os dias tenho colocado o fone que está na fase de funcionar só do lado esquerdo e ouço Living La Vida loca do Rick Martin no último volume, e me imagino fazendo coreografias de musicais Broadway, geralmente tenho saias muito curtas e faço movimentos rítmicos completamente alheios à minha realidade física. Depois ouço a mesma música de novo, e pela terceira vez, e imagino que alguém que não me conheça muito bem esteja assistindo maravilhado, querendo entrar na minha vida louca.

Eu podia guardar essas coisas pra mim e pulverizá-las todas entre os meus personagens pouco a pouco, mas não seria honesto, nem me satisfaria, e além disso ia aumentar a paranóia insuportável dos meus amigos de procurar vestígios de mim nas minhas criaturas como inspetores ardilosos à caça de digitais engorduradas na cena do crime. Quando eu era pequena imaginava uma câmera que me seguia, e meus conhecidos eram fiéis telespectadores. Quando eu era pequena, isso devia ser falta de amor-próprio, e hoje em dia deve ser amor-próprio demais: vocês não podem perder um detalhe desta maravilha que sou eu.

Algumas pessoas ouviram falar, mas ninguém desconfia o quanto minha cachorra me magoa quando não se importa comigo e foge de mim. Minha cachorrinha me evita. Aliás isso já está no livro novo que eu estava escrevendo, e dane-se o próximo inspetor que tentar me algemar com essa história de me expor nos meus personagens, eles todos fazem isso, todos os escritores que eu amo, todos aqueles que eu daria tudo pra ser.

Aliás, ninguém sabe que esse meu próximo livro está parado por algumas razões, talvez eu não saiba que é porque não estou pronta para falar de um amor de lésbicas como aquele. Ou talvez seja porque eu estava gostando muito e fiquei com medo, o maior medo do mundo de o meu namorado não gostar. E ele morre de medo de não gostar, cada palavra que eu escrevo é uma contorção nos olhinhos aflitos, Ai meu deus o que eu vou dizer se eu não gostar, o que eu vou fazer, eu não estou gostando, meu deus alguém me ajude isto está uma porcaria, socorro! E ele é o único que ainda diz alguma coisa quando não gosta, os outros ficam em silêncio, e meu deus como eu detesto o silêncio de vocês, isso é outra coisa que vocês têm que saber.

Outra coisa que ninguém sabe é que eu gosto, sim, de direito. Daquela partezinha que eu fico fingindo pra mim que um dia vou poder mudar. E que eu queria que acabassem de uma vez por todas com essa história de reputação ilibada pra algum dia eu virar juíza, eu poderia sim virar juíza e fazer de um jeito diferente, avisar todo o mundo que não precisa de terno, fazer tudo ao contrário – e ficar condenada ao interior do interior do estado para sempre. Mas não vão tirar a reputação ilibada – e isso tudo fica no Google em cachê sabe-se lá por quanto tempo, e além do mais eu sou um pêssego descascando ao mínimo toque – e a Justiça nunca vai chegar na lama, nunca vai entender a lama, nunca vai chafurdar, espirrar, engasgar na lama e olhar pro mundo com os mesmos olhos embaçados de lama. Um amigo meu – cuja profundidade na lama me impede de compreendê-lo – sempre diz que está com os pés na lama e ninguém vai entender nada disso com os pezinhos no salto alto ilibado da reputação.

Quero que todo o mundo saiba exatamente o quanto eu amo, porque embora o amor seja uma das coisas que eu mais repito, demonstro, insisto, exijo, às vezes me parece que é o que mais se esconde no superficial dos meus exageros teatrais. Queria que todo o mundo entendesse que se eu dou um sorriso sincero no elevador da faculdade, se eu puxo algum assunto, se eu me esforço, se eu adiciono no Orkut, se eu pego o telefone (aí você ultrapassou todos os limites da conquista, pergunte pra Rafaela!), se eu reagi com a minha própria voz (eu tenho uma voz detestável quando estou detestando a conversa) é porque eu amei, é porque eu amo, é porque eu gostaria muito de que você tivesse uma câmera pra assistir a cada pedacinho nervoso de mim, e queria que você tivesse uma câmera em você pra eu saber tudo bem rápido e não perder nada dessa coisa rara e tão refrescante que é gostar das pessoas.

(O Lucas – pronto, falei o nome e qualquer coisa poética-padrão perdeu-se no ar --, o Lucas reclama que eu não sou solícita e simpática com todo o mundo, perdão, muitos demoram e outros nunca me encantam, é bom pra valorizar a simpatia que vocês têm de mim. O legal de escrever um texto assim maluco é que eu posso fingir que estou falando de mim e ficar falando de vocês, ou melhor, falar de mim por horas fazendo de conta que falo de vocês.)

E uma coisa que todo o mundo sabe é que eu preciso de você, de todo o mundo, e isso fica evidente já no amarelo azulado das batidas doídas na casca do pêssego. E talvez por isso, pelo explícito dessa necessidade, desse machucado, desse roxo na pele exposta, que você, que todo o mundo, que a minha cachorrinha somem um pouco de mim.

texto velho, do outro blog:

a volúpia de me sentir translúcida. cada vício exposto sem rodeios nas rodas, nos encontros, nos bares. deixar meus trejeitos inflamarem no brilho das telas nos computadores de cada quarto. a tranqüilidade de ser uma só e sempre a mesma, seja às colegas, ao avô cristão, ao chefe ou ao psiquiatra. falar alto dos meus mais entranhados medos, e deixar ao capricho do acaso as cartas, os e-mails, as opiniões. publicar desejos indiscretos num receio vertiginoso de que os vínculos mais leves se afastem assustados por uma verdade que é tão comum, e se desmanchem em fofocas vazias. e deixar que me descubram despida de máscaras, sem educação, sem limite.
feito um menino espreitando a prima mais velha, entregar-me à concupiscência de observar pelo buraco da fechadura o novo amor no meu quarto, meu diário aberto no colo, numa leitura tão afoita quanto constrangida. deliciar-me nos seus rostos de susto, vê-lo enraivecer a cada confissão, a vontade de fugir agitando os seus pés sobre o tapete cor-de-rosa. e, sem entender nem consentir, vai se apaixonando a cada página, muito de mim numa overdose indefensável.
render-me ao deleite de pulsar nos lábios de quem descobre muito de mim em pouco tempo, e me dilatar nos olhos de quem esperava uma fantasia discreta de uma moça que quer ser aceita, mas encontra a indecência de quem não tem absolutamente nada a esconder. sentir o vento gelado ao escancarar a própria vida. pulverizar minha intimidade em metralhadoras e alto-falantes. derreter-me sob o calor dos olhares na pele tão transparente, e o encanto de me confiar, inerme, à curiosidade invasiva de quem quer que seja.
depois de tanta revelação, vulnerável ré de minha autenticidade, poderei alegar, realizada, aos berros, às gargalhadas, que só disse a verdade, nada-mais-que-a-verdade. e os que ali me julgarem guardarão, em suas pesadas consciências, a plena noção de que condenam a verdade em prol de sua própria e sempre viva hipocrisia.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Resumo de uma Quarta Qualquer


Muito triste, amor, vem aqui, faz passar, me faz feliz?
Como? – meio distraído, qualquer coisa colorida que se mexe na tela.
Não sei, faz alguma coisa, faz passar. (trecho pós censura familar -- parentes internautas!)
Metrô. Trabalho. Computador ON, quatro horas, Computador OFF — um dos meninos presos fazia aniversário justo hoje, podia já ter sido solto mas faltava a minha manifestação —
Celular com sinal no metrô, é preciso aproveitar cada segundo:
Lindo adivinha só já estou chegando, me encontra na esquina da augusta com a paulista na frente do
Não, preciso fazer cocô.
Ele cocô e banho e eu livraria — comprei mais um livro para adiar minhas leituras obrigatórias.
Oi, amor, que livro é esse?
Não sei, gostei e comprei, sobre um cara que queria ser escritor quando jovem e não virou nada.
Um lanche light no barulho da Augusta
Uma professora da faculdade no cine sesc, e uma outra figura bizarra que sempre encontramos
— e o velho clichê são-paulo-pequena-não-a-renda-que-é-concentrada —
Um filme de contos eróticos da idade média — ele ri daquele jeito dele que me dá uma vergonha carinhosa.
Subimos a ladeira e chego arfante porque subi falando, a gente fala demais.
Um ônibus até o outro cinema e reclamo do bilhete único que acaba muito rápido, saldo R$ 0,25
— ele inspeciona minha carteira à procura de um ímã que esteja desmagnetizando o cartão —
Ele paga menos no ingresso porque o total dá treze e eu só tinha uma nota de dez.
Amor, pra quê a caixinha dos óculos escuros agora?
Tinha dinheiro, da praia...
Esse dinheiro era meu! (risos — rs rs?) então me compra uma água, vai.
Nossa, que água cara.
Um filme lindo, abraço e aperto a mão dele toda vez que o casal sofre — ele cochicha promessas de amor pra me acalmar, diz que não vai ser chato como o homem do filme, e eu achando uma graça o homem do filme.
"A angústia do futuro diminui a felicidade do presente", ou algo do gênero, o filme diz que é um provérbio de um povo que não consigo lembrar. Nem ele.
Tão bonito!
Você também, linda.
Não você, o filme! você também...
Tomar algo antes do último ônibus?
Naquele bar que não existe!
Descemos a ladeira, o bar existe mas é um inferno, futebol ligado, todos de pé. Saímos? Saímos.
Subimos a ladeira, Estamos fechando, Só vinte minutos, Estamos fechando.
Quatro bares lotados, sentamos no último, cardápio cheio de cervejas, muitos homens vendo futebol.
É que hoje é quarta-feira!
Bosta.
Gritos, muitos gritos, algum gol maldito, os homens se deslocam para ver de perto, estamos cercados de sovacos palmeirenses.
E se a gente mudasse de bar?, Futebol em todos, Vamos no Black Dog tomar um suco.
Ah não, fila pra comprar, de pé.
Então vamos só namorar no ponto de ônibus esperando o meu Jardim Miriam, vai demorar mesmo.
Estamos chegando no ponto, ofereço uma bala de melancia porque quero dar um beijo enorme na boca.
Amor!! o Jardim Miriam ali, o que eu faço??
Ele corre chamando o ônibus, eu imagino que ele vai entrar e dizer surpresa-vou-dormir-na-sua-casa.
Uns segundos sem jeito, eu ainda segurando a minha bala, um tapinha rápido nas costas, um tchau-amor!
Um olhar cinematográfico pela janelinha, a cobradora está dormindo na minha frente.
Lembro com prazer que o bilhete único de adulto dura três horas, débito R$ 00,00.
Essas coisas me dão muito prazer.
Olho de novo a janelinha mas ele já vai, listrado, paulista afora, não vai lembrar das três horas do bilhete e vai voltar a pé só pra economizar R$ 2,30 — até agora não sei se chegou são e salvo. Não sabemos.
Ligo o MP3 na pasta Triste porque acho que estou no clima, The Last Time I saw Richard, na versão do Renato Russo pra combinar com a noite mal-acabada.
Ponho a bala de melancia melada na boca.
Justo o Jardim Miriam, que sempre demora tanto pra passar.
Chego em casa louca pra escrever esse dia, por algum motivo sei que vou lembrá-lo pra sempre.
Pra sempre. Os bares frustrantes, o ônibus prematuro, o gosto de melancia, o beijo que não deu tempo.
—isso sim é um beijo roubado —
Quero correr para o computador e escrever tudo.
Mas chego em casa e tem primeiro o cachorro com sua felicidade, e meu pai escovando os dentes e perguntando se o filme era bom, e minha mãe querendo saber algum detalhe bobo do meu dia que nem coube neste resumo.
Não tem problema, eu lembro cada segundo.
Computador finalmente e ainda o gosto de melancia.
Vou lembrar pra sempre.

Justo o Jardim Miriam, que sempre demora tanto pra passar!
Vou ligar pra ver se ele chegou bem.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Chá, biscoitos e trovoadas no fim da tarde


Não sei de onde a coragem, meu santo, é capaz que nem abram a porta, fico assim gelada na entrada espiando pela janela gritando Helena, quem sabe roubá-la e levá-la ao meu reino, dois povos em guerra pela mulher mais bela do mundo. Desculpe entrar assim molhada, saí depressa e esqueci o guarda chuva, como é que ela está?
O olho arregalado e a respiração de ódio como se eu um guerreiro disposto a qualquer coisa, Quem foi que te chamou aqui? A sala escura tem uns móveis novos e um gato de madeira que devem ter trazido daquela viagem misteriosa, quero gritar Helena-Helena-Helena mas alguma coisa na sala pesada me oprime. Desculpe a saia pingando, olha aí, estou molhando tudo, bem que eu tinha ouvido a previsão chuva-intensa-com-trovoadas-no-fim-da-tarde, vim apenas saber se ela piorou, senti um aperto e vim, será que.
Estou tão abalada que tenho vontade de abraçar você, minha querida bruxa amarga, abraçar e chamar de mãe, mãezinha, você me oferecia chá com biscoitos de abacaxi, não lembra? Depois perguntava gentil se as meninas não queriam ver um vídeo ou coisa assim, tão gentil, mãezinha, que parecia a velhinha rechonchuda da embalagem de pães de queijo congelados, agora eu só quero ver a minha Helena, querida bruxa azeda, olheiras roxas do tamanho do buraco nesse seu coração. Você não entra aqui, eu já disse.
Vontade de dizer pra você mãezinha que uma coisa dessas não se faz nem com um bicho feito eu, implorar, ajoelhar assumindo o pecado que você quiser na sua fogueira maternal, Se ela entendesse que eu estou aqui ia querer que eu entr., Ela não entende! De repente a mãezinha num choro convulsivo, o lábiozinho gorducho tremelicando e quero mesmo abraçá-la, não precisa desse ódio, Dona Solange, a gente tem de se ajudar, lembra quando eu dormi aqui a primeira vez? Liguei pra minha mãe no meio da noite chorando, medo, muito medo de dormir, quem sabe um defunto ensangüentado embaixo da cama, você me sentou no seu colo e cantou até passar o choro. Hoje mais medo ainda, Dona Solange, minha segunda mãezinha, você me olhando com essa cara de nojo como se eu um monstro, uma aberração, Eu só quero vê-la, percebe? olhar pra ela um pouco, quem sabe ela me veja e fique bem consciente!
Dona Solange dois olhos redondos vermelhos, as veiazinhas desenhadas feito um mapa de guerra, eu o alvo imóvel, talvez ela pense que o meu fim seja o fim de todos os problemas dela, a Helena acordando linda e sem doença e com um namorado perfeito, quem sabe um médico formado e um consultório salmon-pastel do ladinho de casa, e ainda por cima homem, já imaginou que maravilha, ahn, mãezinha, você deve ter emagrecido dez quilos nas últimas semanas. Nesse momento ela deve ficar só com a gente, acabou a farra, mocinha, vai embora agora.
Acabou a farra. Vontade de explicar que ela não conhece a Helena, não conhece, três anos, mais de três anos, um apartamento lindo, se você tivesse ido visitar uma só vez teria se encantado, nosso quarto vermelho e ela pintava coisas lindas na parede. Numa hora dessas devia estar com quem a conhece, mãezinha, no meu colo no meu peito no meu travesseiro rindo o riso louco da doença, só eu entendo as febres os tremores.
A Helena experimentando meu vestido preto e reclamando do quadril pequeno, ah se ela soubesse como é ruim ser assim toda grande, esbarrando nos móveis, a infância inteira a Cinderela com seu sapatinho minúsculo sapateando na cabeça, só quero a minha menina pequena, minha Helena tão linda, os cabelos que ela prendia e me esticava o pescoço pra eu sentir o perfume novo, naquele dia a gente foi no teatro e ela já tinha a doença mas acho que não sabia, no meio da peça um desmaio discreto, parecia que tinha apenas deitado a cabeça de leve no meu colo, eu cochichei Helena-levanta-que-vexame-isso mas ela nada, ali deitada em mim, escolheu o meu colo pra desmaiar macia. Ainda bem que eu sempre fui grande e ela tão pequena, peguei no colo feito noiva de novela e ela acordou no táxi, acordou boa já dando ordens, queria voltar pra peça, imagina hospital, que coisa maluca de jeito nenhum.
Esse gato de madeira, quem sabe esse gato não tem a ver com a doença, ahn? Cada vez que vinha almoçar com vocês voltava pra casa mais doente, dizia Carla-Carlota-ando-tão-fraquinha-cuida-de-mim e eu beijava tudo, mãezinha, beijava o peito arfante, a respiraçãozinha curta, cancelava reunião, salário, viagem e não largava a mão quente sempre úmida, culpa desse gato sinisitro que ia sugando as forças aos poucos, Eu vou entrar, Dona Solange, a senhora não perde nada com isso.
Emagreceu dez quilos e envelheceu dez anos na última semana, a velha. Já disse que de jeito nenhum, Carla! A vozinha trêmula me lembra o chá com biscoito e a gente tão pequena pedindo deixa-a-gente-brincar-na-chuva, a Helena sempre tarada por chuva. Ano passado mesmo na praia quis sair na chuva, o cabelo encharcado e ela rindo, tropeçou na areia e aquilo foi virando lama, precisava ver que coisa nojenta, detesto areia molhada.
Ia dar tudo tão certo, mãezinha, a gente estava até vendo de ter um nenê, olha aí, já estou ficando nervosa de novo, vou acabar ajoelhando e implorando e isso não é do meu feitio, um nenê rosinha e você ia acabar aceitando, uma hora ia perceber como era lindo, a Helena completamente apaixonada e mãe, os seios miúdos crescendo de leite, ou quem sabe o meu peito já tão grande e o bebê se empanturrando, lambendo, sugando, pedindo mais e mais e você toda avó oferecendo chazinho e biscoitos de abacaxi, teria sido tão simples, não teria? Esses desmaios, meu santinho, e essa velha aí de pé achando que é tudo castigo de algum deus macabro que ela alimenta em rezas solitárias.
Se ela estivesse consciente, Dona Solange, se tivesse forças já teria voltado pra casa, só quero ver, só isso, não encosto, pelo amor de deus, duas semanas chorando sozinha, olha o que vocês fazem comigo, olha essa roupa rasgada, molhada, sente o meu hálito de fome porque só o estômago sente fome e o resto não, a cabeça teimosa só quer chorar, telefonar, doer doer doer. Eu queria acompanhar os exames, queria explicação do médico, sentir a mão do doutor no meu ombro e o olhar compenetrado e sem eufemismos, eu mereço essa mão no meu ombro, está me entendendo?
Empurro a mãezinha de leve e vou direto ao quarto, tanto tempo esses corredores e ainda lembro os caminhos todos, essa mulher correndo furiosa atrás de mim como se a casa uma loja de cristais e eu uma criança rebelde desgovernada entre as prateleiras. Helena na escuridão só com a luzinha azulada da televisão num filme-desenho que assistíamos juntas nas férias, agora o capitão diz Voce-tem-um-último-desejo-antes-de-morrer? e o coelhinho muito perspicaz responde sim-senhor-gostaria-muito-de-continuar-vivo, e então o capitão, distraído e apressado, vai dizer que-seu-desejo-seja-atendido e quando perceber a derrota o coelho vai arrematar com e-batatas-fritas-por-favor.
Helena, Leninha, acorda, olha quem está aqui! Acorde logo, olha sua mãe no telefone, vai saber para que autoridade policial está ligando. dona Solange, ela não gosta das almofadas assim, pelo amor de deus, o pescoço caído assim pra trás, ela usa no mínimo três, lá em casa tem uma em formato de coração que ela punha na lombar. não, Leninha, não deixa o pescoço assim, abre o olho, Helena, pelo amor do nosso santinho, está me escutando eu vim te ver, pense no nosso nenê, ahn? ano que vem quem sabe a gente faz um berço multicolorido do jeito que você queria. dona Solange, desliga esse telefone e vem depressa aqui, me abraça, me ajuda, dona Solange, não, não grita assim, faz aqueles biscoitos de abacaxi que a gente adora. eu te concedo um último desejo, Helena, abre o olho bem bonito pra mim, Leninha, por favor, só essa última vez.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Estado de Sítio



Estado de Sítio

Uma casa pequena e os oito ali contentes, cada vez um era a Branca de Neve varrendo lavando servindo os sete anõezinhos bêbados com barrigas doendo de rir de piada, de alegria, de bobos. Vontade de cerrar os portões e as estradas e nunca mais sair do meio do bosque com as criaturas fantásticas entre as árvores, águas, teias de aranha.
A sala e o tapete que tinham cheiro de mato e foram ganhando perfumes, álcool, brigadeiro e tabaco – o cheiro de férias impregnado nas roupas, e as cinzas acidentais entre as páginas do livro. Esconderijos molhados no barro das moitas, atrás do carro, da geladeira, o vento frio de infância e na verdade sete anões gigantes e uma branca de neve qualquer desprezando a maçã e molhando a saia amarela rolando bêbada na grama.
A casa pequena e o relógio guardado festejando a virada do ano no tempo de cada um, no tempo do forno controlado ao acaso pelo tempo do estômago. O tempo dos passarinhos que acordam todos juntos. O som do champanhe estourando no escuro, velas e os votos para um ano que nasce mimado em berço de loucos e engatinha febril e sabe-se lá aonde vai se não ficar ali quietinho quente entre os cobertores e pernas, dormindo com o barulho dos grilos.
As risadas ainda no fundo do ouvido e estou de volta à cidade de repente e a segunda-feira doendo como nunca doeu. A segunda-feira uma garganta inflamada escancarada me engolindo, mostrando a língua numa zombaria infantil, vomitando suas incertezas sem pássaros, grilos, risadas.
Fecho a porta de casa, completamente sozinha, e nunca o silêncio urbano trouxe tanta solidão. O ano letivo – esse macarrão insosso – deitado imóvel e pegajoso na minha cama, empoeirado na pilha de papéis que resistiram ao ano passado. Dois mil e nove desmaiado nas obrigações todas tão desprezíveis que se eu fechasse os olhos e dormisse por um ano – um dia um príncipe e um beijo pueril na boca e uma viagem no lombo do cavalo e o happy-ever-after –, se eu dormisse assim aqui, sozinha embaixo da cama, até o final do ano, o mundo continuaria exatamente igual. A segunda-feira, minhas obrigações desprezíveis, a casa pequena do sítio vazia e escura, e a minha mala aberta com as roupas cheirando a cinzeiro, vinho e chocolate.