“Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo, e tenho medo de viver o que não entendo – quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação. (...) E como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não era o que eu pensava e sim outra – como se antes eu tivesse sabido o que era!”
Clarice Lispector
Uma manhã ensolarada de segunda-feira, o centro da cidade de repente a paisagem em que passaríamos nossas próximas infinitas manhãs. A fachada imponente da faculdade inaugurando o que costumam chamar de os cinco melhores anos da nossa vida.
Centenas de gigantes coloridos com seus tubos de tinta, bebidas, músicas e preconceitos. Para alguns de nós, a novidade completa: longas viagens de outros cantos do país, quem sabe do mundo, para uma São Paulo imensa de solidão, sujeira e o barulho tentador escapando dos bares, teatros, cinemas.
Nosso deslumbramento ocupava cada espaço que se abria na faculdade, a bateria retumbando nos corredores entre flashes e cartazes. E essa noite desce bonita por sobre aquela manhã. Chega amadurecida, profunda, e cheia dos dilemas que o nosso torpor inicial nem imaginava.
Esta noite é a concretização de um sonho; se não o nosso sonho mais sincero, ao menos o que sonhou aquele adolescente que se afastou de nós dia após dia, como se cada aula, cada evento fossem golpes furtivos da maturidade em nossos olhos. É o sonho de um adolescente que viveu o inesquecível alumbramento do começo dos tempos de faculdade, e que agora não pode estar aqui para rir o mesmo riso livre e chorar a emoção leve das primeiras conquistas. Porque esta noite traz uma história que cinco anos de inúmeros códigos e livros não são capazes de narrar.
Nas primeiras semanas de aula, aprendemos o que é porão, jurisprudência e e-group: o cantinho eletrônico em que nos carregamos até a última prova. A sala virtual em que tivemos um contato solidário e turbulento, que às vezes desaparecia nos intervalos, sumia nos ruídos do pátio como se não nos conhecêssemos.
Hoje, é assombrosa a agilidade do tempo, a distância instransponível entre as primeiras manhãs e a opressão sombria de preencher qualquer coisa que não a palavra “estudante” no campo "profissão" do formulário da videolocadora. Lembramos com nostalgia as risadas escandalosas embaixo da bandeira franciscana nos primeiros Jogos, as danças sobre a mesa da sala de aula, as manhãs de começo de férias numa conversa de bar que não deveria terminar nunca. E alguns vínculos se estreitando em longos beijos, namoros, viagens e conversas que, se não nos fizeram melhores juristas, com certeza construíram muito do que há de humano em nós.
Embora a faculdade de direito nos tenha mostrado o que há de pior no mundo, com certeza trouxe também o que há de melhor. Pessoas incríveis, que farão a diferença em cada uma das nossas decisões. Juízes, advogados, bêbados, músicos, filósofos, loucos; todos atrasados para o escritório, para a prova, procurando a lista num canto da sala, chorando na fila dos banheiros químicos, aplaudindo em pé na sala dos estudantes. É por esses nossos amigos que sorrimos agora, com toda a sinceridade.
Sentamos todos juntos, durante cinco anos, e compartilhamos incansavelmente nossas ansiedades e expectativas. Anos lendo nossos nomes nas tábuas, frases cômicas pra expiar o desencanto. Quanto àqueles que conseguiram se encontrar, cinco anos emprestando cadernos, digitando as aulas num empenho que trouxe muitos de nós até aqui. E cinco anos registrando na mente momentos de tão pura alegria que, se fecharmos os olhos agora, fica no fundo a fotografia de um encontro banal pelas arcadas, que deixou a imagem indelével de uma amizade que, por mais que alguém ouse dizer que não, vai com certeza durar pra sempre.
Ainda que todos tenham passado pelo mesmo preparo, o diploma traz uma luz diferente ao cenário de cada um. Alguns vão se tornar bacharéis e, realizados, vão sentir o alívio da independência que se desenha já tão nítida. Vão responder às dúvidas dos mais novos, assinar o primeiro caso como profissionais de verdade, e de repente perceber que agora quase tudo está em suas mãos.
Mas muitos de nós ainda estamos num limbo desconfortável, entre o projeto que fomos e o que talvez já devêssemos ser. E neste lugar ainda há muito o que compreender. Vamos continuar explicando para as famílias que ainda não sabemos resolver tudo, que ainda precisamos de um tempo, mais um tempo e mais uma ajuda pra entender as coisas.
E quais seriam agora os nossos planos? Um tempo pra fazer planos, preencher o vazio simbólico desse canudo de hoje. Para perder o medo terrível de assistir à rápida debandada dos grandes amigos pelos concursos, nossa festejada mas tão dolorida dispersão por todo o país. Medo de com eles ver partir a estrutura que construímos juntos nesses anos, e descobrir que o Direito que conhecíamos dependia do grupo, dos longos cafés depois das provas.
Um tempo para aceitar o dia-a-dia sem um intervalo breve no sol do pátio, ou sem encostar as costas na pedra gelada das arcadas num fim de noite agitado de polêmicas. Difícil se desprender aos poucos do porão, onde de repente um amigo aparecia com duas cervejas e uma novidade digna de muitos brindes; um porão de uma época em que podíamos sempre deixar tudo para o dia seguinte, depois correr pra casa antes que o metrô fechasse.
Difícil para quem passou boa parte da vida acadêmica tentando aprender cada detalhe para ajudar da melhor maneira possível as pessoas que diariamente compõem a fila no Departamento Jurídico XI de Agosto. Difícil pra quem tirou do próprio relógio o tempo pra gerir o centro acadêmico, um tempo doído do gelo das bebidas servidas na correria das festas, e dos insultos, sempre tão frios. Mais difícil ainda para quem já fechou os olhos a qualquer coisa que pudesse vir da faculdade de direito, e agora precisa começar de novo, com olhos de calouro num corpo de adulto, numa nova faculdade que já vem sem a ingenuidade de antes, mas com a mais genuína das esperanças.
Longe da universidade, encastelados no centro da cidade, muitas vezes nos sentimos o centro do mundo, resguardados atrás de altas muralhas. Mas o retrato matinal da miséria no próprio Largo São Francisco construiu um pouco do sociólogo que não pudemos ser. A faculdade foi o nosso castelo majestoso e encantado, com seu emaranhado de portas e salas pelas quais nos perdemos durante um tempo que temíamos acabasse assim, sem satisfações em doze badaladas que nos trazem de volta à abóbora num encerramento que sempre soubemos aconteceria, mas que fizemos questão de esquecer, e simplesmente viver.
Nesses cinco anos, alguns professores nos fizeram sentir no estômago a aflição de escutar propagações centenárias de erros e injustiças, transmitidos aos alunos no tom enfastiante da superioridade catedrática. Professores que fecharam os ouvidos ao choro do mundo, e passaram a utilizar a Lei como uma baba eletrônica, capaz de anunciar cada lamento. Professores que, pela idolatria à regra, fecharam as portas das salas, levantaram a voz, não olharam nos nossos olhos. Ou, pelo desapego, simplesmente não vieram; esqueceram os alunos tantas manhãs com seus cadernos e mágoas.
Mas a faculdade nos trouxe também professores e palestrantes cujas reflexões reacendiam nossa vontade de compreender, transformar. Pessoas que abriam diante de nós a janela para um país que, sozinhos, não conseguiríamos ver. E nos faziam debruçar, até quase cair, para ver as multidões, as cadeias, as filas; para enxergar de perto as casas com suas mães sozinhas e crianças nos quartos, nas ruas; para ver os divórcios com seus gritos, suas mentiras; para ver o abandono. Pessoas que mostraram que a realidade tem recônditos que o braço curto e mecânico da Lei não consegue alcançar. E nos fizeram ver que o ser humano é capaz de aprender o que a Lei não aprende.
Por esses professores, pelos amigos, pelas pessoas que apertaram nossas mãos à procura de justiça durante esse aprendizado, nós vamos nos lembrar daqueles que fecham a porta, que não escutam, não cuidam, e vamos perceber que não é desse tipo de profissional que o Direito precisa. Não é esse tipo de gente que o mundo quer. Vamos lembrar que a careta autoritária é triste e vazia. O intransigente balançar da cabeça de quem não escuta esmaga de raiva e desamparo aquele que busca ajuda. Nós vamos lembrar essa careta e as palavras duras, e, então, seremos juristas de olhos e ouvidos abertos, queixo humilde, mão acolhedora e coração sábio. E só assim poderemos estar onde a Lei não alcança.
É preciso lembrar que o direito é uma estátua viva no centro da cidade, que de repente se move e se revela, e preenche o nosso caminhar apressado – é preciso reparar nesse movimento. É preciso saber que nos corredores dos fóruns, nos tribunais, atrás das pilhas de processos existe uma criança, um menino rindo e correndo descalço pelos arquivos e pintando com os dedos as paredes dos escritórios, estampando em guache as digitais nos inquéritos. Ele aparece quando as histórias estão prestes a virar apenas palavras, mostrando que há muita vida naquilo com que estamos lidando.
Hoje vamos ficar cara a cara com esse mundo que até agora apenas sobrevoamos. Olhar no fundo da vesguice da Justiça e se ainda houver uma faísca da nossa velha coragem, vamos mostrar que não estamos aqui à toa. Guardar a cada história um pouco da dor e do injusto, e sugar do Direito o que houver de quente, vivo. Vamos pisar na lama e sentir o molhado do barro nos nossos próprios pés, descendo desse salto que nos eleva, ilibados, distantes, indiferentes.
E quando chamarem aqui o nosso nome, vamos nos perguntar se estamos preparados, se realmente entendemos o que esta noite está tentando mostrar no seu balé melancólico. E se ainda não temos os tais planos, não vamos nos contentar com subterfúgios triviais; nosso plano é grande demais pra caber numa resposta qualquer nas festas de fim de ano. Nosso plano é grande demais.
Vamos nos despedir aos poucos da fragilidade, do manto condescendente que encobria nossos erros com o encanto estudantil. Mas vamos continuar com essa mesma energia, nesse mesmo desejo de dar aos amigos e a nós mesmos o melhor de cada instante. Vamos continuar com esse sorriso de agora, porque temos a força e a vontade pra fazer desses anos que começam, estes sim, os melhores anos de nossas vidas.
O soar das badaladas anuncia o fim do nosso encantamento. Mas lembraremos que, ao sair assim correndo desse castelo, deixamos cair pelas escadas, por acaso, algo nosso, que fará com que esse tempo ainda incompreensível possa nos reencontrar – à maneira de cada um.
Um bom começo a todos.
(mariana salomão carrara)