Papéis antigos, livros
acumulados, anotações, gavetas despertam uma forte e irrefreável crise, mas não
é qualquer crise, é uma crise alérgica. E não são quaisquer papéis ou gavetas,
são aqueles em que você não mexe há anos justamente porque estavam muito bem
onde estavam e porque talvez revolvê-los despertasse a pior das crises, que é
precisamente a alérgica.
Ontem enquanto eu separava quais
mereciam o lixo – e depois não consegui jogar nenhum --, quais mereciam uma
pasta, e quais mereciam simplesmente ir
comigo para o caso de um dia precisar, ela me atacou do mais profundo recôndito
dos infernos, onde fica à espreita ao menor sinal de alguém revolvendo o pó das
lembranças.
A crise alérgica vem quando você resolve
mexer no que ficou empilhado em outro tempo, como se os restos do que já
não vive se espalhassem pelo ar ao mínimo toque. E não basta abrir as janelas,
lavar os olhos, fugir do ambiente, quando ela vem é porque os papéis, registros,
bilhetes já entraram irremediavelmente fundo nos olhos, narinas, há qualquer
coisa seca presa entre os cílios, uma ardência a repelir o que não deveria ter
sido revisto.
E então por mais que você se
livre logo de tudo sem nem olhar direito – e é isso que a Alergia queria – e corra
pra casa sabendo que nunca mais vai olhar pra nada disso, continua uma dor
forte no peito, que escapa em espasmos, espirros violentos, escoa, enfraquece,
e os olhos pequenos num sono fora de hora, porque tudo que a crise alérgica quer é que
você durma e desista de pensar, revolver, dispensar. Que você não perceba que
tudo que era o seu dia-a-dia foi virando história, passado, e poeira.
A crise alérgica vem quando você
se põe a enfiar o nariz onde não deve. Ela vem para afastar o olhar de tudo o
que ficou guardado e agora vai doer. Vem pra proteger a alma contra aquilo que
nem o corpo aguenta.